Na base do que os próprios media nos oferecem, e sempre correndo o risco de ver quebrados os meus telhados de vidro, lá vai um bom exemplo do mau trato da língua.
Num texto que fala de crise... a da língua está mais do que instalada, difundida e sem fim à vista, mesmo que o texto aponte para o tema-título "Retiros espirituais":
in Jornal de Notícias, 14 de Junho de 2009, pág. 61
A menos que o leitor esteja num estado depressivo tal em que já não folheia para ler (só desfolha, pela simples vontade de destruir), diria que o exemplo não é novo. É clássico. Por várias vezes me referi a ele junto dos meus alunos (sim, porque, diziam eles, também desfolhavam livros, o manual... e eu, ironicamente, lá os acusava de destruidores implacáveis de bens publicados em suporte papel).
Para lá da questão da selecção lexical e da distinção significativa (no confronto do par desfolhar / folhear), este sempre é um bom caso para se trabalhar a morfologia: chamar a atenção para a formação da própria palavra 'desfolhar'.
À base 'folhar' (dicionarizada com o sentido de 'fazer criar folhas', 'cobrir de folhas' ou 'dar a forma de folha') é acrescentado um prefixo 'des-' que, geralmente, é considerado de negação (a par de 'in-' ou 'a-'); todavia, no caso concreto, associa-se mais ao significado de separação, orientação contrária ou complementar para um processo ou acção (na mesma lógica de ligar > desligar, instalar > desinstalar, fazer > desfazer, mascarar > desmascarar, abotoar > desabotoar, carregar > descarregar) e não tanto à negação prevista entre harmonia /desarmonia, confiança / desconfiança, cortesia / descortesia, proporcional / desproporcional, propositado / despropositado, acordo / desacordo, igual / desigual.
Um outro significado pode ainda associar-se a 'des-': reforço ou aumento de intensidade. É o que se pode encontrar em formas como 'desinquieto', 'desinfeliz' ou ainda o popular 'deslarga-me'.
Pelo trabalho de consulta dicionário, pode ser feita a construção de diferentes grupos com palavras (previamente fornecidas ou a pesquisar) que apontem para esta diferença de sentidos transmitida pelo mesmo prefixo:
(i) ser o contrário ou complementar a;(ii) ser a negação de;
(iii) ser muito.
Um caso de gramática a propósito de leitura. Valha o facto de sempre se aprender com os erros (os dos outros e os nossos também).
Enfim, uma utilização 'desinfeliz' :)
ResponderEliminarEu não diria melhor. Bem apanhado!
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