Esta cidade, Tebas (velha cidade de Cadmo) ou outra, maior ou mais pequena, remota ou atual, deveria sempre ter esta pergunta, para a busca da resposta.
A tarde foi passada no auditório da Academia Contemporânea do Espetáculo (ACE) - Teatro do Bolhão, em boa companhia e com grande representação.
Num anfiteatro (qual encosta de degraus não de terra nem de pedra, mas de cadeiras - quase poltronas - voltadas para um palco), frente a um palco dominado pela essencialidade minimalista de um cenário e por um grupo de ótimos atores (a que não faltou um coro, enquanto personagem múltipla, cujo canto ritmado servia de comentário à ação dramatizada), assisti a Édipo, de Sófocles. Com encenação de Kuniaki Ida, o elenco contava com as participações de António Capelo (Édipo), João Paulo Costa (Tirésias, Jocasta e Servo), João Cardoso (Creonte e Mensageiro), além de Pedro Lamares (Corifeu) e um coletivo de jovens artistas.
Nas primeiras décadas do século XXI reencontrei-me com alguns sinais do último quartel do século V a.C. Foi o caso da representação assente em três atores masculinos (o protagonista, o deuteragonista e o tritagonista); da figura do Corifeu liderando o coro; do tom e do conteúdo trágicos do texto; da conciliação dos opostos (um homem que se sente livre, mas que só o é enquanto percorre um caminho fatalmente determinado; a modernidade de adereços conjugada com a clássica máscara em Jocasta mais a sugestão de trajes e o calçado de sola espessa dos sacerdotes que prestavam culto a Dionísio; o conhecimento e a consciência portadores da desonra fatal, das maldições que fazem sucumbir o Homem). Junta-se-lhes o sentido didático e emocional da peça (com confrontos explicitamente demonstrados e publicamente partilhados, suscitando, perlocutoriamente, o terror e a piedade), a força do destino que aprisiona o Homem àquilo de que o próprio possa tentar fugir ou contrariar - tudo ingredientes típicos para um género marcado como a maior expressão literária da antiguidade, conforme o evidenciavam as práticas teatrais dionisíacas (as mais conhecidas), com representações diárias de três tragédias, fechadas com a apresentação de uma comédia.
Sófocles foi grande figura nestes eventos tão religiosos quanto cívicos. Édipo foi um dos seus textos, do ciclo tebano (acerca da fundação da casa real de Tebas, por Cadmo), retratando a tragédia de caracteres, composta pela pretensa individualidade espelhada na vida social da pólis.
Desde o início da obra, a questão da atualidade impõe-se, pelo diálogo mantido entre o Corifeu e Édipo. É a crise, o drama da cidade revelados:
O percurso cénico do despojamento de Édipo - da túnica do poder ao pé descalço de uma figura voluntariamente cega e desamparada - é o caminho de um decifrador de enigmas que tudo quer saber e se agarra à vontade de não fugir à verdade; o do conhecimento ou da consciência que se revela ignorância, na interpretação errada de sinais e na fuga que não dá lugar ao afastamento ou à distância do indesejável - antes à proximidade e à concretização trágica das profecias dos oráculos.
Num anfiteatro (qual encosta de degraus não de terra nem de pedra, mas de cadeiras - quase poltronas - voltadas para um palco), frente a um palco dominado pela essencialidade minimalista de um cenário e por um grupo de ótimos atores (a que não faltou um coro, enquanto personagem múltipla, cujo canto ritmado servia de comentário à ação dramatizada), assisti a Édipo, de Sófocles. Com encenação de Kuniaki Ida, o elenco contava com as participações de António Capelo (Édipo), João Paulo Costa (Tirésias, Jocasta e Servo), João Cardoso (Creonte e Mensageiro), além de Pedro Lamares (Corifeu) e um coletivo de jovens artistas.
Nas primeiras décadas do século XXI reencontrei-me com alguns sinais do último quartel do século V a.C. Foi o caso da representação assente em três atores masculinos (o protagonista, o deuteragonista e o tritagonista); da figura do Corifeu liderando o coro; do tom e do conteúdo trágicos do texto; da conciliação dos opostos (um homem que se sente livre, mas que só o é enquanto percorre um caminho fatalmente determinado; a modernidade de adereços conjugada com a clássica máscara em Jocasta mais a sugestão de trajes e o calçado de sola espessa dos sacerdotes que prestavam culto a Dionísio; o conhecimento e a consciência portadores da desonra fatal, das maldições que fazem sucumbir o Homem). Junta-se-lhes o sentido didático e emocional da peça (com confrontos explicitamente demonstrados e publicamente partilhados, suscitando, perlocutoriamente, o terror e a piedade), a força do destino que aprisiona o Homem àquilo de que o próprio possa tentar fugir ou contrariar - tudo ingredientes típicos para um género marcado como a maior expressão literária da antiguidade, conforme o evidenciavam as práticas teatrais dionisíacas (as mais conhecidas), com representações diárias de três tragédias, fechadas com a apresentação de uma comédia.
Sófocles foi grande figura nestes eventos tão religiosos quanto cívicos. Édipo foi um dos seus textos, do ciclo tebano (acerca da fundação da casa real de Tebas, por Cadmo), retratando a tragédia de caracteres, composta pela pretensa individualidade espelhada na vida social da pólis.
Desde o início da obra, a questão da atualidade impõe-se, pelo diálogo mantido entre o Corifeu e Édipo. É a crise, o drama da cidade revelados:
«Visto que desejas continuar no trono,
bem melhor será que reines sobre homens
do que numa terra deserta.
De que vale uma cidade, de que serve um navio,
se no seu interior
não existe uma só criatura humana?»
O percurso cénico do despojamento de Édipo - da túnica do poder ao pé descalço de uma figura voluntariamente cega e desamparada - é o caminho de um decifrador de enigmas que tudo quer saber e se agarra à vontade de não fugir à verdade; o do conhecimento ou da consciência que se revela ignorância, na interpretação errada de sinais e na fuga que não dá lugar ao afastamento ou à distância do indesejável - antes à proximidade e à concretização trágica das profecias dos oráculos.
Entre a cegueira do Homem e a insegurança da condição humana revê-se um dos mitos gregos de maior relevo.
Assim se traça a complexa procura e revelação da identidade de um herói lendário grego (que matou o pai e procriou com a mãe), mais ajustado ao que de anti-herói tem (pelo entrecruzamento da fragilidade humana no sacrifício supremo do autoconhecimento, com a marca do fatalismo, da crueldade e da determinação do destino).