Em data tão importante para os livros e para os autores, fica o apontamento do dia.
Para começar, um pensamento em imagem:
Depois, só algumas curiosidades.
Diz-se que este dia está relacionado com o dia de nascimento e, coincidentemente, de morte de um dos mais conceituados autores da literatura mundial - o dramaturgo inglês
William Shakespeare -, mais o do enterro de um outro - o escritor castelhano Miguel de Cervantes Saavedra -, ambos no decurso do ano de 1616. Diz-se ainda que
Dom Quixote de la Mancha, da autoria do último, chega mesmo a ser uma das obras mais vendidas (esperemos que lida, também) no mundo.
Dos autores aos livros fica o caminho feito para a escrita e a leitura - percurso nem sempre linear. De tão sinuoso que é, tem tanto de virtuosa e virtualmente pacífico como de instigadoramente revolucionário; de atitude manifesta e pública como de ato sibilino e privado. Ainda assim, sempre com a potencialidade de (re)criar (re)encontros. Estes têm-se sucedido desde os anos 7000 e 4000 a.C., quando surgiram e se desenvolveram os primeiros registos escritos, em suportes tão diversos como pedras, ossos, tábuas de madeira, placas de argila húmida (posteriormente secas no fogo). A leveza de uma folha de papiro (ainda que em rolos com dezenas de metros) chega com o Antigo Egito e a invenção do papel, na China, torna a escrita menos pesada, em termos físicos; porém, a proliferação do livro na Grécia ou mesmo a difusão deste para lá dos limites do império romano não impedem a sua conceção como tesouro ou objeto de luxo. Manter-se-á assim em tempos de abadias, catedrais e mosteiros, principais centros de conservação de vários textos da antiguidade greco-romana.
A imprensa de Gutenberg, no séc. XV, aumenta a quantidade de publicação e a baixa custos, mesmo assim nada acessíveis senão às classes socialmente mais favorecidas. Aparecidas as primeiras edições impressas (os chamados incunábulos), tal não significa que se tenha atingido a vulgarização do livro. Esta é uma realidade relativamente recente.
Para fechar este apontamento, nada como um livro - o romance que mais me marcou como leitor e, até hoje, considero O LIVRO da minha vida. Talvez porque, no labirinto que a vida e a morte representam para qualquer humano, há sempre chegadas e partidas, abandonos e regressos, ecos do vivido e do imaginado como se de textos e intertextos se compusesse a existência, também feita de reflexos de uma realidade espelhada em páginas que se encontram sempre do outro lado dos olhos, tornando "o direito esquerdo e o esquerdo direito" (cap. VI, pág. 126, na 6ª edição da Caminho):
"Deixou a janela aberta, foi abrir a outra, e, em mangas de camisa, refrescado, com um vigor súbito, começou a abrir as malas, em menos de meia hora as despejou, passou o conteúdo delas para os móveis, para os gavetões da cómoda, os sapatos na gaveta-sapateira, os fatos nos cabides do guarda-roupa, a mala preta de médico num fundo escuro de armário, e os livros numa prateleira, estes poucos que trouxera consigo, alguma latinação clássica de que já não fazia leitura regular, uns manuseados poetas ingleses, três ou quatro autores brasileiros, de portugueses não chegava a uma dezena, e no meio deles encontrava agora um que pertencia à biblioteca do Highland Brigade, esquecera-se de o entregar antes do desembarque. A estas horas, se o bibliotecário irlandês deu pela falta, grossas e gravosas acusações hão-de ter sido feitas à lusitana pátria, terra de escravos e ladrões, como disse Byron e dirá O'Brien, destas mínimas causas, locais, é que costumam gerar-se grandes e mundiais efeitos, mas eu estou inocente, juro-o, foi deslembrança, só, e nada mais. Pôs o livro na mesa-de-cabeceira para um destes dias o acabar de ler, apetecendo, é seu título The god of the labyrinth, seu autor Herbert Quain, irlandês também, por não singular coincidência, mas o nome, esse sim, é singularíssimo, pois sem máximo erro de pronúncia se poderia ler, Quem, repare-se, Quain, Quem, escritor que só não é desconhecido porque alguém o achou no Highland Brigade, agora, se lá estava em único exemplar, nem isso, razão maior para perguntarmos nós, Quem. O tédio da viagem e a sugestão do título o tinham atraído, um labirinto com um deus, que deus seria, que labirinto era, que deus labiríntico, e afinal saíra-lhe um simples romance policial, uma vulgar história de assassínio e investigação, o criminoso, a vítima, se pelo contrário não preexiste a vítima ao criminoso,e finalmente o detective, todos três cúmplices da morte, em verdade vos direi que o leitor de romances policiais é o único e real sobrevivente da história que estiver lendo, se não e como sobrevivente único e real que todo o leitor lê toda a história."
Eis uma narrativa sobre uma outra: a de uma vida que não foi concluída (Pessoa não matou o heterónimo; Saramago fê-lo, num labirinto ficcional cujas fronteiras com a realidade são a todo tempo ora respeitadas ora violadas). Eis um romance que combina e cita variadíssimos textos e autores da literatura nacional e estrangeira. Há em
O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), de José Saramago, um
prisma literário desassossegante e desafiador, a unir muitos pontos histórico-literários evocados e conjugados num jogo plurifacetado, intertextual onde também cabem versos, linhas prosaicas na forma e no registo, discursos múltiplos. Tudo isto, além de autores tornados personagens e criações que se afiguram mais reais e próximas da vida do que os próprios criadores.
Neste dia, registo que gostava de ter mais tempo para ler por prazer. Vai já algum tempo desde que o fiz pela última vez, com a liberdade em que o prazer se deve rever. Fico à espera de dias melhores.