terça-feira, 31 de outubro de 2017

Num fim de verão em dias de outono

       Agora que se anuncia o fim do verão em pleno outono...

      ... há um fogo no céu que não cheira ao queimado da terra nem faz arder mais o pouco que esta já tem. É o calor a cobrir o oceano, num pôr-do-sol que o céu vai enegrecendo em pinceladas de noite esfumada ao final de uma tarde.

Fogo de verão outoniço - (Foto VO)

       Tudo acaba para que tudo recomece, cedo ou tarde (para não dizer 'assim que anoitece').

      Lá, na linha do horizonte, está a fronteira: nem o fogo tem o azul do mar nem as ondas se deixam queimar. Só as estações (dos tempos) se (con)fundem.

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Como?! Assim?!

       Isto de fonética e fonologia tem tudo a ver com SONS.

       Não com letras!
      Os grafemas estão para a escrita. Os sons estão para a oralidade. E se uma letra admite vários sons (veja-se a letra 's' que admite quatro realizações sonoras: [s] em 'sapato', [z] em 'rosa', [ʃ] em 'espinho' ou [Ʒ] em 'as batatas'), quando se faz o estudo da fonética e da fonologia é ao nível sonoro que tudo interessa. Portanto, há que distanciar da escrita e da tirania que esta apresenta quando se fonética e fonologia se trata.

         Q: A passagem de 'assi' para 'assim' pode ser um exemplo de paragoge?

        R: Claramente não. Trata-se de um exemplo perfeito de nasalização.
          Ninguém lê 'assim' como [ɐ'sim], mas sim como [ɐ'sĩ]. Ou seja, não é o som [m] que está em causa, mas sim a nasalização da vogal 'i' (que deixa de ser apenas oral para passar a oral nasal). É a aparência da grafia que parece apontar para o adição final de um som; contudo, não é isso o que acontece. É a vogal final que adquire um traço diferencial (de ressonância nasal) na sua produção.
         A letra 'm' pode ser lida como o som [m] em 'mesa' ou 'acima'. Por sua vez, em 'assim', 'fim' ou 'importar', a escrita não pode confundir o som transmitido - e que é sonora ou foneticamente a representação feita por um til ([ɐ'sĩ], ['fĩ], [ĩpur'tar]), a marcar o traço da nasalidade.

         Mais um caso que mostra que nem tudo o que parece é (não é processo fonológico de adição, mas sim de alteração na natureza da vogal oral que já lá está /estava e que passa / passou a ter um traço novo - o da nasalidade).

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Cor de Ouro

        "O Sol dourava o céu."

        Assim o escreveu Cesário Verde no seu "Num bairro moderno", onde encontrou uma vendedeira toda regateira em pleno ambiente burguês citadino. A partir daí, o poeta transfigurador viu numa giga pedaços de vida humana como extensão da que decorre da natureza vegetal.
        Mal ele sabia que esse mesmo sol também dourava o mar, cobrindo-o das cores de um areal que o espera, num ir e vir a todo o tempo repetido.

Sol: esse intenso dourador (Foto VO)

        Um fim de tarde que pouco tem de outono, por mais que a ele pertença, fez lembrar o verão que se foi apenas como estação. É ainda este que se faz sentir no calor que nos aquece ou na luz que nos acompanha até ao adiantado da hora do pôr do sol.

      Bem razão tinham os alquimistas, que viam o dourado como símbolo de acesso ao coração de um ser. Com uma imagem destas, ao vivo, revitalizam-se a mente, as energias e a noite acaba menos escura, menos melancólica.

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Ingerir pode dar em má gestão de exemplos

       Tudo porque 'ingerir' precisa de contextualização.

       A pergunta surge na sequência de uma resolução de exercícios sobre formação de palavras e a constatação de que algo não batia certo com o ato de comer / ingerir (caso para se dizer que nem sempre se deve "comer" a papinha que nos dão):

      Q: Posso considerar 'ingerir' um verbo formado por prefixação (in+gerir)? Estou a trabalhar uma narrativa sobre o que um leão come e 'ingerir' é aproveitado para exemplificar um caso de derivação por prefixação.

        R: Na verdade, segundo o contexto facultado, não se trata de um bom exemplo. 
        A forma etimológica (latina) ingerĕre assim o dita, pelo que se trata de uma base, uma palavra que evidencia a pertença do português ao ramo das línguas provenientes do latim. Não se pode considerar, o 'in' como prefixo, por, já na origem latina, tal segmento estar incluso na palavra etimológica - daí não se poder falar propriamente de formação de palavra no português.
        Fosse o contexto outro (o de se estar a falar de má gestão) e o raciocínio seria completamente diferente. Usar o termo 'ingerir' como sinónimo de gerir mal representaria um bom exemplo de derivação por prefixação, com o prefixo de negação 'in-' a traduzir a gestão mal conseguida (a ingerência).
       Ingerir, no sentido de comer, engolir, consumir alimentos, quanto à formação da palavra, nada tem a ver com ingerir como sinónimo de administrar mal (esta última, sim, a marcar-se pela prefixação). São dois bons exemplos de palavras homónimas (base e formação bem distintas) e que têm de ser equacionadas no seu contexto significativo, sem hipótese de a formação de uma se poder explicar pela de outra.

       Ingerir tem muito que se lhe diga: se comermos mal, a indigestão pode surgir; se gerirmos mal, a ingerência instala-se. A bem da morfologia, espero ter contribuído para que não haja ingerência (nem indigestão).

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Ser igual ao litro

       Em dia de aniversário de uma amiga, nada é igual ao litro.

      O dia começou com uma colega a perguntar a origem da expressão - sabia o sentido pragmático, mas queria conhecer como tudo começou (isto de regressar às origens tem muito que se lhe diga, quando à língua diz respeito).
      Com alguma pesquisa, deu para concluir que, em tempos idos, o litro servia como medida para quase tudo (dado ser uma medida de volume e não de líquidos propriamente ditos). Assim lembrei, por exemplo, de ir à feira e ouvir alguém pedir um litro de feijão. Além disso, cabe também aqui referir o valor de um salário (palavra que veio de 'sal'), fazendo-se a distinção entre o valor do salário bruto (ilíquido) e o do líquido (na verdade, a diferença não é igual ao litro, por certo). Isto para não deixar de considerar também que o líquido deu para medir o tempo - as clepsidras, ou relógios de água, foram exemplo disso. Estou aqui estou a recuperar o pensamento de Heráclito de Éfeso, quando este pré-socrático dizia que o homem não se banhava duas vezes na mesma água de um rio. De novo a água (líquido), em passagem, tal como o homem se revela diferente, em mudança. O tempo passa (conta) e tudo muda.
      É verdade que a amiga aniversariante também vê o tempo passar; também ela muda (até mudou de escola). E a colega curiosa vive a mesma condição de existência, no que à fluidez do tempo diz respeito. Também eu. Todos contamos o tempo - já não com clepsidras - e, nesse aspeto, custa a acreditar que tudo seja igual ao litro!
       Depois disto tudo, apetece-me concluir que 'dei o litro' (também para medir / quantificar o esforço) neste objetivo de explicar uma expressão idiomática e no de retomar o curso desta "carruagem".

      Duas outras amigas queixavam-se de esta "Carruagem 23" andar muito parada (que paradoxo, isto de 'andar parado!). Hoje, vai "circular" um pouco, porque a reclamação não me foi igual ao litro. O problema é que há também muitas outras coisas que não mo são. Talvez algumas delas até sejam (mesmo muito) importantes, mas, por momentos, vão ter de ser iguais ao litro. Dei-lhes peso (ou medida) relativo(a), porque há quem me mereça a consideração de também ser ouvido / escutado.

terça-feira, 10 de outubro de 2017

Lá vem a vírgula do vocativo, gente!

    Chamamento, vocativo, apóstrofe... na pontuação dá no mesmo.

    É mesmo isto!
   Cansado de ler "boa tarde / boa noite professor" - quando devia encontrar "boa tarde / boa noite, professor" -, nem me apetece responder quando não sou nem me sinto chamado.
   Quem chama, invoca ou apostrofa deve marcar, na escrita, esse mesmo ato: fá-lo com uma simples vírgula. Dos poucos casos em que a ausência desta constitui erro ou altera substancialmente o significado da frase, um é precisamente o aqui ilustrado:

Do assunto ao destinatário / recetor - uma questão de vírgula

    E se dizem "é só uma vírgula", "esqueci-me", apetece-me responder "OK! Tens sete. Era dezassete, mas só falta um '1'. Esqueci-me".
    É tão mais fácil não ser escravo da ignorância! Claro que não acredito que alguém possa acabar com o trabalho (soa a promessa política que ninguém pode / deve concretizar). Aposto mais na colocação da vírgula para verdadeiramente perceber que o patrão / o político / o responsável ou chefe nos vê como autêntico escravo do trabalho.

    Mais se diga: a diferença entre o assunto (falar ou escrever sobre algo) e o destinatário (falar com alguém / escrever a alguém) é frequentemente assinalada pela simples vírgula, no segundo cenário. Sim, porque uma coisa é falar sobre escravos; outra bem distinta é falar com eles. Percebido, minha gente?

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Pedra-mar

       Não é um quadro nem uma janela de pedra.

      Ao longo do caminho, há um muro de pedra onde muitos se sentam para ver o mar, respirar a maresia, olhar o céu pintalgado de várias cores e ver o sol esconder-se lá para a linha do horizonte.
      Ao nível dos tornozelos e dos pés, ficam uns mirantes tão baixos que alguns olhos não veem, de tão altivos e sobranceiros que estão para o que o chão lhes oferece.
        Baixo-me, deito-me e capto a paisagem:

Um retângulo de horizonte, céu e mar (Foto VO)
        
     Parece um quadro, uma moldura de pedra envolvendo um leito oceânico ondulante, que vem a terra e deixa o céu entregue às cores quentes de um sol que ninguém já vê.

        A pedra encaixilha os sulcos do mar, o céu alilazado e um horizonte dourado pelo sol posto.