Coloquemos os pontos nos is e os acentos devidos quando de 'oblíquo' se trata... cruzando com posts já aqui apresentados.
Q: Afinal, o que é um complemento oblíquo? Uma colega diz-me que é o que se passa em casos típicos como os da frase "Eu estou na escola", com o 'na escola' a desempenhar essa função. É verdade?
R: A designação de complemento oblíquo corresponde à função sintáctica que, na primeira versão da TLEBS, se identificava com os complementos preposicionais e os complementos adverbiais, o que não tem a ver com o exemplo dado, seguramente (pois 'na escola', no contexto de precedência de um verbo copulativo, desempenha a função de predicativo do sujeito).
A designação de 'complemento oblíquo', não sendo muito familiar no campo da didáctica da gramática, é a que se relaciona com características ou universais linguísticos sintácticos: os verbos requerem argumentos para saturar o seu significado, sendo que uns se fazem acompanhar de complementos directos (os transitivos directos, isto é os que seleccionam complementos no caso acusativo), de complementos indirectos (os transitivos indirectos que admitem complementos configurados no caso dativo, substituíveis na terceira pessoa por 'lhe/lhes'), de complementos oblíquos (os transitivos indirectos que admitem complementos que não cabem em nenhum dos casos anteriormente considerados). Trata-se, portanto, de uma designação que articula as funções sintácticas com indicadores de caso.
A título de exemplo, são complementos oblíquos os segmentos em itálico propostos nas frases seguintes:
i) Nas férias passadas, fui a Barcelona. (> aí / lá; a esse sítio/local)
ii) O meu irmão adaptou-se à nova turma. (> a isso)
iii) Eu moro aqui, junto ao Estádio das Antas. (> neste sítio / local)
iv) Não gosto de esperar. (> disso)
v) Vou colocar os livros na pasta. (> aí / lá, nesse sítio)
Todos eles são segmentos seleccionados pelo verbo principal (ir, adaptar-se, gostar, colocar), configurados sob a forma de grupo preposicional (a Barcelona, à nova turma, de esperar, na pasta) ou grupo adverbial (aqui).
Em termos didácticos, considero que, para se trabalhar complementos oblíquos, há que seguir os seguintes passos, progressivamente equacionados na abordagem sintáctica de frases:
a) diferenciar complementos (elementos seleccionados pelo núcleo verbal da frase) de modificadores (elementos não requeridos pelo núcleo verbal da frase);
b) distinguir tipos de complementos considerados no predicado da frase - directos, indirectos, oblíquos (pela aplicação de testes de identificação: interrogação e pronominalização, por exemplo);
c) progredir na abordagem de complementos oblíquos (por exemplo, abordando inicialmente os que digam respeito a informação de localização temporal / espacial, num contraste típico entre o que sejam complementos oblíquos seleccionados pelo núcleo verbal e modificadores; depois, tratando os complementos que revelem outro tipo de informação, segundo o tipo semântico de verbos utilizado).
Assim, primeiro, é importante distinguir "Eu moro no Porto" (complemento oblíquo) de "Eu comprei uma casa no Porto" (modificador de valor locativo); depois, nada como abordar os complementos oblíquos pela sua própria especificidade, face a outros complementos, e com os valores semânticos distintos relativamente aos atrás considerados.
Parto, portanto, da possibilidade de a gramática poder ser ensinada segundo duas perspectivas: pela entrada de sentido (mais associada e articulada com as competências de leitura e escrita); pela entrada da reflexão da língua, numa perspectiva mais oficinal. Se os complementos oblíquos são importantes, para o primeiro caso, em contextos de regulação da escrita (com a preocupação na selecção adequada das preposições que acompanham determinados verbos – ex.: preferir X a Y; cuidar de Y, ir a Y, ir para Y, vir de Y, …), para o segundo, o trabalho centra-se mais na natureza distintiva destes complementos relativamente a outros já abordados (os directos e os indirectos, no primeiro e segundo ciclos; o oblíquo concluir-se-ia no terceiro).
Focalizando casos de complementação e sua distinção relativamente aos modificadores, é possível trabalhar oficinalmente o contraste da seguinte forma:
1. Atentar nas seguintes frases:
a) Os amigos meteram um papel numa garrafa.
b) Os miúdos puseram um papel numa garrafa.
c) Os meninos viram um papel numa garrafa.
d) Eles observaram um papel numa garrafa.
e) Eles leram um papel numa garrafa.
1.1. Indicar as frases nas quais se pode retirar “numa garrafa”, mantendo-se as frases correctas. (R: c, d, e)
1.2. Identificar as frases nas quais a expressão “numa garrafa” é pedida pelo verbo pertencente ao predicado. (R: a, b)
2. Os complementos de um predicado são exigidos pelo verbo principal; os modificadores não são obrigatórios.
2.1. Referir as frases que apresentam “numa garrafa” como modificador. (R: c, d, e)
Focalizando a distinção de complementos, poder-se-á estruturar um questionário da seguinte forma, para as mesmas frases:
1. Os predicados com elementos destacados a verde começam com um verbo que pede um ou mais complementos.
1.1. Identificar os verbos que precisam de dois complementos. (R: meter [X em Y], pôr [X em Y])
1.2. Indicar os verbos que só necessitam de um complemento. (R: ver [X], observar [X], ler [X])
1.3. Referir o complemento que pode ser substituído pelo pronome pessoal ‘(n)o’. (R: um papel)
1.4. Reescrever cada uma das frases começando-as por “um papel”. (R: Um papel foi metido pelos amigos numa garrafa,… [transformação passiva, enquanto mecanismo de identificação do complemento directo da frase activa, o qual se transforma em sujeito na frase passiva])
2. Considerar a expressão “numa garrafa” em todas as frases.
2.1. Assinalar as frases nas quais a expressão funciona como complemento. (R: 1a e 1b)
2.2. Verificar a possibilidade de “numa garrafa” poder ser substituída pelos pronomes ‘a’ ou ‘lhe’. (R: Impossibilidade nos dois casos)
3. O complemento directo de uma frase pode ser substituído, na terceira pessoa, pelos pronomes ‘o(s)/a(s)’, ‘lo(s) / la(s)’ ou ‘no(s) / na(s)’; o complemento indirecto, por ‘lhe(s)’.
3.1.Relacionar a conclusão anterior com a expressão ‘numa garrafa’. (R: não é complemento directo nem indirecto, em nenhuma das frases) .
Poder-se-á, então, concluir, depois de tanto trabalho indutivo (metodologia que prefiro, no que à abordagem da gramática oficinal diz respeito), que este complemento tem uma designação motivadamente distintiva (complemento oblíquo).
Mais um exemplo de como uma abordagem oficinal e a consideração de um critério de progressão poderão minimizar alguma estranheza que os alunos, munidos dos instrumentos e testes de identificação adequados, acabam por reconhecer a funcionalidade.
Há quem tenha a chuva oblíqua... mas, aqui também há sintaxe da mesma espécie! E muito bem explicadinha!
ResponderEliminarObrigada!
IA
Sempre ao dispor dos amigos e da amiga que tanto me reconhece (talvez mais do que o merecido) bem como ao pessoano jogo que se lê no "Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito". Pouco duradouro foi esse jogo poético, esse processo estético e ecfrástico; mais estruturadora e estruturante é a gramática no pensamento humano: para que se possa "sentir quando o pensar está arrumado" (nas sábias palavras de Óscar Lopes).
ResponderEliminarVamos partilhando... saberes, enganos e dúvidas, para que possamos crescer juntos e sentir melhor.
Meus amigos, antes de mais: 'oblíquo' PORQUÊ? Alguém me pode explicar por que razão decidiram reinventar uma terminologia que, embora em alguns casos ainda não havia sido consolidada, ao menos fazia sentido... Enquanto não me derem uma explicação válida (leia-se lógica) para mais uma trapalhada da seita linguística, continuarei a atribuir o mesmo nome aos complementos preposicionais e adverbiais, saudosamente recordando a clareza que senti quando no secundário os professores de Latim e depois de Portugês explicaram à turma os agora quase esquecidos 'complementos circunstanciais'. Entretanto, chamem-lhe o que quiserem, oblíquo, horizontal, x, simplesmente absurdo ou pura estupidez... Mudarei, evidentemente, de opinião se me convencerem da absoluta necessidade de empregar o termo 'oblíquo' no caso específico.
ResponderEliminarA resposta às questões do comentário anterior encontra-se no segundo parágrafo da minha resposta no 'post'. Trata-se de um termo de natureza sintáctica, coerentemente considerado pelo domínio de análise a que se encontra afecto (evitando, portanto, uma designação que compagina uma noção sintáctica - complemento - com uma outra centrada nos constituintes e/ou na classe de palavras - preposicional / adverbial). Sem a pretensão de querer convencer, sob uma só designação acabam por ficar abrangidas duas funções sintácticas que partilham uma propriedade comum: complementos que não entram na categoria dos directos ou indirectos.
ResponderEliminarDúvidas de sintaxe
ResponderEliminarNa frase "Parece que ninguém reparou na tristeza dele.", qual a função sintáctica de "que ninguém reparou na tristeza dele"? É de complemento directo? Ou, uma vez que estamos perante um verbo copulativo, funciona como Predicativo do sujeito?
Obrigada
Regina
Caríssima Regina,
ResponderEliminarDado o interesse e dada a dificuldade da questão, passo a colocar a resposta (e a pergunta) em apontamento autónomo.
Obrigado pelo desafio.