sábado, 16 de outubro de 2010

120 anos de uma vida poética

    A ter existido, o criador assim o viu: "toda a emoção que não dou nem a mim nem à minha vida.» (in 'Cartas de Fernando Pessoa')

      Álvaro de Campos, o engenheiro naval (por Glasgow) propenso ao triunfalismo dos motores e da tecnologia, nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890. Surgido impetuosamente "Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda", muito do que é se revê na 'Ode Triunfal', esse exemplo poético feito da euforia e da força que culminam num sono, num cansaço e numa avaria impostos pelos excessos e pela exaltação heróica da máquina.

Foto de cartaz na Casa de Álvaro de Campos (Tavira)

   Ao heterónimo que quis "Sentir tudo de todas as maneiras", Pessoa não deixou de dar a oportunidade da busca incessante do Absoluto e da Verdade. Do registo finissecular e decadente, do vanguardismo futurista e sensacionista à angústia existencial, Campos viveu "de tudo em tudo" - entre a vitalidade transbordante e torrencial não deixou e experienciar a angústia própria de quem viveu todos os prazeres.

    Assim se cumpre mais um dia, um ano, um tempo "em que festejavam o dia dos meus anos!..."

sábado, 9 de outubro de 2010

Que desassossego!

    Entre o Livro do Desassossego, de Bernardo Soares, e o Filme do Desassossego, de João Botelho, há uma janela de vidro com a cara de Pessoa reflectida.

    Depois de assistir ao filme, no Teatro Nacional de S. João, consciencializei-me de que fui ao 'teatro' ver 'cinema' - um exemplo da possível confluência na exploração de movimentos, expressões e sentidos estéticos partilhados na Arte.
    Desassossego foi a palavra de ordem no balanço final: pela sucessão fragmentária de imagens a espelhar o registo e o estilo do livro de Bernardo Soares (desse ser que, não existindo, deixou obra); pela abordagem a uma interarte (dança, música, cinema, teatro, literatura, fotografia, ...), a um entrecruzamento artístico inspirado a partir do intertexto e intratexto pessoano ortonímico e heteronímico; pelo devaneio que constituiu todo o intervalo de tempo entre a cena inicial e a final, num bar, onde Pessoa se encontra (numa sugestão dessa desafiante ambiguidade que persiste entre Fernando Pessoa e o duplo Bernardo Soares, entre a ortonímia e heteronímia pessoanas); pela identidade e actualidade que as geniais reflexões de Bernardo Soares mantêm face à existência humana (nomeadamente à do homem moderno, cuja identidade está contingencialmente marcada pela alteridade); pela evocação fílmica da consciência e da inconsciência, do sensível e do inteligível pessoanos, a ponto de estes serem visibilizados no dialogismo dos discursos reflexivos.


     Se, como é citado no filme, a Literatura é a arte que casa com o pensamento, este não deixa de se alimentar do que toda uma herança cultural lhe oferece; do que as experiências vividas permitem reconhecer. Quanto ao sonho, há que libertá-lo do enleio que a vida às vezes (nos) apresenta.

    Entre o tédio, a angústia, a inquietação, tanto rasgo de lucidez chega a ser um desassossego; um filme feito do fragmentarismo e da profundidade de um discurso introspectivo não provoca desassossego menor.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Entre Tchékhov e Saramago: a vontade de demissão.

   Há pensamentos cuja coincidência e oportunidade chegam a ser perturbadoras.

      Há cerca de quinze dias, ri-me da representação feita da personagem de um professor a gritar em pleno teatro "Eu demito-me! Eu demito-me". Riso intrigante para um outro professor com vontade de fazer o mesmo num outro palco: o da vida.
      Há doze anos, neste mesmo dia, sentia orgulho por o Português tanto ser falado no mundo, em virtude da atribuição do Nobel da Literatura a José Saramago. Na altura, já tinha lido O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), Memorial do Convento (1982), A Jangada de Pedra (1986), Deste Mundo e do Outro (1971), Todos os Nomes (1997) e O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991) - precisamente nesta ordem -, reconhecendo o embalo oralizante dos romances e o estilo criativo na escrita; o jogo cúmplice, irónico e denunciador das desigualdades e fragilidades humanas criado com o leitor; a reflexão humanista reflectida numa relação da arte de pensar com o posicionamento ético que aspira a um ideal social que coloca o Homem no centro. A todo o tempo, estes eram ingredientes saboreados e sublinhados em segmentos e pensamentos colhidos no que lia.
      Há minutos, revendo alguns dos versos de Os Poemas Possíveis (1966), parei numa pequena composição que, no momento, muito me diz. Agora, não me rio; porém, não deixei de relembrar o riso e como, em 'A Gaivota' de Tchékhov, o grito do professor espelhava uma vontade dominada pelo mal-estar do momento.

        Demissão


               Este mundo não presta, venha outro.
               Já por tempo de mais aqui andamos
               A fingir de razões suficientes.
               Sejamos cães do cão: sabemos tudo
               De morder os mais fracos, se mandamos,
               E de lamber as mãos, se dependentes.

                                                                                                        José Saramago

         Mordido que me sinto, espero que não me venham lamber as mãos.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Nobel da Literatura: Mario Vargas Llosa

   O nome, familiar, fez-me lembrar um (re)encontro feliz.
   
   Anunciado o peruano Mario Vargas Llosa como o premiado com o Nobel da Literatura deste ano, voltei a pegar livro que li do autor, há já uns bons pares de anos: Pantaleão e as visitadoras (1973).
    Mais recentemente, no ano lectivo 2008/2009, o reencontro fez-se graças a um contrato de leitura apresentado por um aluno numa das minhas aulas de 10º ano.
    A obra, que figura na listagem do Ministério da Educação para alunos do ensino secundário,  foi considerada numa espécie de jogo de sorte e de azar; numa aproximação e descoberta ao autor e à sua obra. Ainda que houvesse a oportunidade de redefinir o contrato, o aluno achou por bem prosseguir. Deve ter encontrado qualquer coisa que o manteve fiel à sorte recebida.

    A história centra-se na personagem Pantaleão Pantoja (capitão recém-promovido do exército), responsável pela criação sigilosa de um serviço de prostitutas para as Forças Armadas do Peru localizadas na selva amazónica. Mudando-se para Iquitos, Pantaleão mantém-se afastado dos restantes militares, usa trajes civis e nada contar à mãe nem à mulher. A discreta missão transforma-se na maior empresa de prostituição do país, alterando completamente a vida local e a do próprio capitão (quando este é visitado pela bela e insinuante Colombiana). Rendido à paixão e ao desejo que sente, Pantaleão vê na sua 'visitadora' a própria força do desejo, da vida amazona selvagem.
     No contraste entre a selva e a cidade (mais propriamente a hipocrisia de uma sociedade convencional e puritana, representada na personagem da mulher oficial de Pantaleão), Colombiana torna-se metáfora do desejo e da volúpia livres de qualquer forma de puritanismo; a selva sem pudores contra a cidade pudica, casta e hipócrita. Assim se atinge o registo da farsa para uma época, para os seus costumes.

    Entre o social e o natural: o velho conflito romântico europeu revê-se, em língua hispânica, num contexto sul-americano, no percurso de um militar que se vê derrotado "na (humana) guerra do amor".