sábado, 30 de novembro de 2013

Depois de uma noite feita de "Oh, les beaux jours" (ou "Happy Days")

        Só por ter sido trauteada, hoje a música não me sai da cabeça.

     A meio da representação de "Ah, os dias felizes" (1960-61) surgem os acordes da "Viúva Alegre" (1905), composta pelo austríaco Franz Lehár (1870-1948).
      Beckett construiu a personagem Winnie enquanto mulher que faz o balanço de um percurso de vida, composto das memórias, lembranças que o discurso e a linguagem permitem reconstituir; na encenação de Nuno Carinhas, associou-se-lhe a música e uma das composições ouvidas é a de Lehár.
      É dessa melodia que hoje não me livro:


      No dueto do tenor espanhol Plácido Domingo e da soprano porto-riquenha Ana Maria Martinez, fica esta versão da valsa que popularizou Lehár.

     Melodia para uma história de amor feita de encontros e desencontros, principalmente construída para emocionar”.

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Uma noite com "Ah, os dias felizes"

      A noite foi de Beckett, para um texto desconcertante e uma representação dominantemente monologada por Emília Silvestre.

     Na reflexão feita sobre a vida e a condição humana, dois atos dão a ver uma mulher presa a uma pedra, com tanto de verticalidade na aspiração e elevação dos anseios como de horizontalidade sugestiva na laje sepulcral. No fluir do discurso, há um balanço de vida feito das lembranças que a memória ainda consegue reconstruir. Repetem-se alguns gestos - os possíveis, já que alguns vão sendo perdidos com a passagem do tempo. Espera-se (não por Godot, mas pela morte), na progressiva prisão que a monumental rocha vai moldando ao corpo, até que só há cabeça, pensamento e discurso; até que os olhos fecham e nada mais se ouve dizer.
      A isto assiste o espectador até que, no vaivém do diz ele-diz ela (um par de vultos evocados do passado), se sente invadido, observado por Winnie - como se a realidade estivesse com ela e o teatro passasse a ser vivido na plateia e nos varandins. À maneira de Beckett, representa-se a vida rotineira e banal pelo que esta tem de universal. A universalidade humana, afinal, reflete essa mesma vida sedenta de comunicar com o outro; de sentir a presença de alguém; de ver e de ser visto; de procurar ler o que não se consegue ver; de agarrar e organizar repetidamente aquilo que vai acabar por ficar invisível, mas que se vai 'saber', ainda assim, que estará sempre lá. É este, tem sido assim (como antigamente), o percurso que a Humanidade inscreve na sua vida, com a composição de sons ora alegres ora chorosos, ora pacíficos ora convulsos; com a nota de solidão (apesar das comunhões construídas); com a dimensão individual nos dilemas e receios (não obstante os laços afetivos que se mantenham, sejam estes presenciais sejam eles limitados à recordação). E no meio de tudo, há sempre o som estridente do despertador, compassando o tempo; marcando o acordar para a vida e para a construção dos atos.
     A profundidade humana surge equiparada às entranhas da terra, ligada a ela. Ambas são concretas, compostas, numa sedimentação que resiste até à ameaça do incerto, do desconhecido e do incompreensível, tornado fragmentário, nas camadas que as compõem.
     Pelo poder das palavras e do discurso produzido por Winnie, aqui e além acompanhado por Willie, ganha-se consciência da reflexão produzida: a do ser que vive na língua que usa, que o faz comunicar com os outros e consigo próprio (ocupando o tempo e o espaço que o circundam). A morte chega quando, mais enterrada na pedra, Winnie vai quebrando esse fio de pensamento e de expressão até ao momento em que não produz qualquer som para representar ou para (se) ouvir.
      "Ah, os dias felizes", numa fidelidade maior à tradução francesa de Happy Days (Oh les beaux jours), é o título para a convergência no gosto de um passado (como antigamente ou à moda antiga) e no sentido de vida voltado para um canto (mesmo que seja o lendário canto do cisne).
       A dissolução do ser faz-se, assim, na ansiada harmonia do inefável.

    "E no entanto ela move-se" é a máxima galileiana para se referir ao movimento da Terra que outros queriam negar; pode também valer para significar a progressão da vida, por mais que esta seja vivida nessa ideia de que a fração do segundo seguinte é igual à do anterior (o mestre Caeiro já nos ensinou que não, atento que estava à eterna novidade do mundo em cada instante).

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

De mais e de menos, quando é a mais ou a menos

      Há casos que se revelam tão críticos que só os trataria com exemplos muito bem escolhidos, até porque há realizações que não são fáceis de resolver nem tão simples de entender.

      Não fujo aos pedidos de ajuda, mas não se pode dar soluções (rápidas) para aprendizagens que são morosas, pois convocam uma rede de relações muito complexa e diversa no processamento a fazer (nomeadamente no ensino a promover) e nas condicionantes de realização a ativar.

     Q: Vítor, estava a preparar uma ficha de trabalho com alguns pares de palavras / expressões conflituosos. No que diz respeito a "demais", enquanto advérbio de intensidade, fiquei com dúvidas. Há frases (Ele come demais) que posso transformar, dizendo o antónimo "de menos" e, por isso, acho que o mais correto seria dizer "Ele come de mais." Quando puderes, diz qualquer coisinha.

        R: Este é, por certo, terreno crítico, de areias movediças, pelo que a ficha terá de clarificar e jogar com dados muito explícitos face a algumas realizações que possam admitir as duas formas de escrita.
       O caso da palavra 'demais' é relativamente pacífico quando configura um advérbio de intensidade (sinónimo de 'excessivamente', 'demasiado', 'muito', para modificar um adjetivo, verbo ou advérbio), como em 1; um advérbio conectivo (com o sentido de 'além disso' ou ' de resto'), como em 2; um pronome indefinido (na lógica de quantificação associada ao significado de 'os outros', 'os restantes), como em 3:

  1)   Aquele rapaz é inteligente demais! / Nunca é demais avisar dos perigos / As más notícias chegaram cedo demais.

   2) Chega de tanta brincadeira; demais, está na hora de sossegar, para toda a gente poder dormir.

   3) Alguns decidiram ir à discoteca; os demais foram ao cinema.

      O que constitui dúvida frequente é a homofonia presente no contraste do advérbio 'demais' e da locução adverbial 'de mais'. Esta última é usada em contextos permutáveis com a expressão 'a mais', numa lógica de quantificação comparativa implícita ('a mais do que o considerado normal') - daí a aproximação 'de mais' / 'de menos':

   4) Ele falou de mais (isto é, falou a mais do que é normal, focalizando um número de tópicos / assuntos ou a quantidade de tempo gasta), para compensar os dias em que falou de menos (ou seja, falou a menos).

   5) Ele comeu bolos de mais (ou seja, comeu bolos a mais, numa quantificação / pluralização  - ainda que indefinida - acima do considerado normal) e também bebeu de mais (ou seja, bebeu a mais, na lógica e no foco das quantidades consumidas).

   Quando o foco significativo é colocado em termos de intensificação e de excesso (inclusive na consideração do processo configurado no verbo), já será o advérbio 'demais' a ser utilizado, numa orientação aspetual associada a questões de duração e iteratividade. Daí a distinção, por exemplo, entre "Ele lê de mais nas férias" (para, comparativamente, se diferenciar de outros momentos em que lê de menos, perspetivando uma atividade levada a cabo num intervalo de tempo mais circunscrito e com foco num número, ainda que impreciso, de livros / obras lidos) e "Ele lê demais" (numa orientação mais focada para um entendimento do verbo 'ler' enquanto processo, sem intervalo de tempo nem quantificação definidos quanto ao número de objetos lidos e/ou de quantidade de tempo usada).
     Também é significativo o contraste "Ele viveu de mais" / "Ele viveu demais", conforme se oriente a leitura, respetivamente, para o sentido de alguém ter vivido muito tempo (foco na quantidade associada aos anos de vida - viver a mais, em contraste com viver a menos) ou para a intensidade quanto ao modo de vida adotado (independentemente do número de anos de existência).

     Há, portanto, no caso da modificação de verbos, variáveis a considerar para a seleção de 'demais' / 'de mais', com implicações semântico-pragmáticas de foco interpretativo muito distinto (nomeadamente, o da quantificação / intensificação pretendidas; o do sentido aspetual considerado na predicação).

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Oralidade no novo (?!) programa de Português do ensino secundário

    De regresso à nova proposta de programa de Português - Secundário, focalizando o domínio da oralidade e suas relações com outros que com ela convivem.

      A leitura comparativa dos três anos de escolaridade do nível / ciclo secundário fez-me levantar algumas questões, nas correspondências que procurei estabelecer na formulação das metas e dos objetivos. Depois da gramática, foquei a oralidade (na sua especificidade e nas suas articulações com outros domínios):
       Em síntese, novas tabelas de dados permitem-me verificar  mais alguns pontos críticos:

 
 
 
(Clicar nas imagens para visualização maior)

    Das questões e das constatações sublinho o seguinte: a oralidade (na súmula da compreensão e da expressão) surge num peso tão residual face à escrita, com objetivos e descritores tão desarticulados e inconsistentes entre si, que
    a) se evidencia o desaproveitamento que o tratamento / aproveitamento do oral (na sua natureza mais formal, planificada e estruturada) poderia ter de vantajoso para a própria produção escrita (enquanto passo preparatório, modelo ou ponto de partida para se trabalhar uma plataforma de integração do oral mais formalizado com a produção escrita);
    b) se secundariza a oralidade a ponto de este domínio, pela reduzida gestão de tempo atribuída, não poder aparecer implicado 
              . na resolução de questões críticas da escrita (relações fonia-grafia); 
              . no tratamento e análise da adequação pragmática dos discursos (para lá das questões de cortesia, que são praticamente as consideradas no programa) - o que resulta numa inconsistência grave pelo reducionismo a que a pragmática também está votada no domínio da gramática; 
            . no exercício de competências verbais e sociais (que mostram como ‘dizer’ é ‘fazer’ algo com os atos discursivos, sejam este diretos ou indiretos, implícitos ou explícitos) que possam ser produzidas, avaliadas e redefinidas em várias oportunidades de ativação em aula, abordagem e treino consistentes de práticas de raciocínio lógico e argumentativo;
     c) se definem objetivos e descritores cuja articulação, progressão e textualização são no mínimo dúbias quanto ao crédito que se lhes possa atribuir (exemplo: no objetivo cinco, o segundo descritor surge incompreensivelmente isolado no 11º ano, como se houvesse alguma justificação metodológico-didática ou cognitiva para os alunos de qualquer ano de escolaridade não o poderem cumprir; o descritor três desse mesmo objetivo, no 12º ano, aponta para o diferencial dos “marcadores discursivos que garantam coesão”, como se estes últimos não fossem um mecanismo de coesão e coerência previsto no 10º e 11º - sem qualquer especificação - e como se a coerência, agora, fosse questão de somenos importância e os segmentos coesos não fossem passíveis de ser avaliados como incoerentes); 
    d) se revelam relações críticas, mesmo em termos de conteúdos (exemplo: associar o princípio de cortesia ao princípio de pertinência / relevância é misturar focos de análise da interação distintos: respetivamente, ora focado na regulação dos interlocutores, por questões de educação / face e estratégia conversacional, ora orientado para mecanismos de ativação / seleção informativa ou cognitiva);
      e) aponta para a ausência de criteriação precisa nos descritores definidos para os objetivos, encarados como transversais ao ciclo (exemplo: no objetivo dois, sobre registo e tratamento da informação, aponta-se para um descritor relativo à organização da informação sem qualquer indicação de critério subjacente; no objetivo três, para planificação de intervenções orais, além de não se fazer nunca a distinção progressiva básica de discursos dialógicos / monológicos, imediatos / mediados, faz-se a progressão do descritor ‘pesquisar e selecionar informação’ para ‘pesquisar e selecionar informação diversificada’, como se este adjetivo fosse a marcada diferença para a evolução de competências – mesmo a sequencialização de tópicos, no objetivo seguinte, ao nível do 11º ano, não apresenta nenhum critério específico e/ou progressivo que apresente alguma aprendizagem significativa no processo).
     Complementarmente e pelo que pôde também ser lido no domínio tão priorizado da Educação Literária (quanto mais não seja pelo peso que lhe foi atribuído na própria gestão de tempos), registo ainda o seguinte: a listagem de conceitos implicados na abordagem do texto literário fica entre a repetição terminológica já familiar aos alunos do ensino básico (portanto, sem qualquer progressão significativa para o nível secundário – veja-se, por exemplo, a listada para a abordagem do texto dramático) e a reprodução de fragilidades comuns a programas antigos da disciplina (de que a noção de presença na ação, ao nível dos textos narrativos, é o exemplo mais evidente: mantém a confusão entre o que é a presença / ausência do narrador no discurso e a participação / não participação dele na ação, quando autores sugeridos no programa funcionalizam e ativam essa distinção de forma notória nos seus textos, como é caso de Garrett, Camilo, Herculano ou mesmo Saramago).

       Francamente, a antiguinha expressão de que a montanha pariu um rato parece-me a mais ajustada para, cada vez mais, haver a completa noção da regressão e da perda de tempo face a um trabalho (a proposta de documento) e a uma discussão estéreis.

sábado, 23 de novembro de 2013

Regresso aos modificadores

     A propósito do conhecimento (nomeadamente o gramatical), não interessa onde o ter.

    Contacto para nova frase:

     Q: Olá, Vítor, tiras-me uma dúvida, p.f.? Em "A planta é conhecida no Brasil.", "no Brasil" é Modificador do Grupo Verbal, certo?

   R: Certo. Numa frase passiva, o núcleo verbal (o verbo 'conhecer' no particípio passado) ativa a estrutura argumental de um verbo transitivo direto: alguém CONHECE alguma coisa. 
       Subjacente à realização ativa 'Alguém conhece a planta no Brasil', o segmento 'no Brasil' corresponde ao modificador do grupo verbal. O mesmo sucede na transformação passiva, cujo predicado é formado pelo verbo auxiliar ser mais o particípio passado do verbo principal (conhecer > conhecida) e, ainda, o modificador que integra o predicado (no Brasil).
        Entre os testes que evidenciam este último dado, constam os seguintes:

1) a possibilidade de o modificador integrar a resposta focalizada no processo representado pelo verbo 'conhecer':
- O que é que se passa com 'A planta'?
- É conhecida no Brasil.

2) a possibilidade de esse modificador integrar uma questão cuja resposta focalize o sujeito sintático:
- Quem é / O que é que é conhecida no Brasil?
- A planta.

3) a possibilidade de o modificador integrar uma questão do tipo sim / não, podendo a resposta negativa dar lugar a reformulação:
- É no Brasil que a planta é conhecida?
- Sim, é. / Não, não é. É na China.

      Ainda a este propósito, aconselho a consulta de apontamentos anteriores, nos quais a questão foi já abordada com outros exemplos (alguns dos quais bastante complexos no seu processamento e na sua distinção sintática).

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Viva o rigor e a excelência!

     Ou como diria o povo (de que faço parte), "No melhor pano cai a nódoa".

    Corre, via Facebook, algo que, no comum que tem, acaba por pôr cobro aos discursos ministeriais (há já muito) nada convincentes, no tema / assunto ou para o público a que se destinam. No contexto de inscrição de professores para um exame que lhes permitirá acesso à carreira, o Ministério da Educação, ou alguma das suas estruturas, parece não dar o exemplo, conforme se poderá depreender da leitura do apontamento seguinte:

(Conforme ao registo encontrado no Facebook)

      Errar é humano, é certo; mas, para quem assume um discurso de rigor e exigência necessários à profissão, parece ser o próprio "patrão" a falhar (ainda que por interposta pessoa).
      Assim, fica mais uma vez o crédito por mãos alheias. Podem os professores-corretores (e ainda bem que não fui convidado para tal) começar a cobrar a quem erra ortograficamente (ao redigir formulários indevidos).

       Fosse aluno meu e já estava a ler a palavra IDENTIFICAÇÃO dentro de um círculo vermelho, mais o pedido de escrita de duas ou três frases, nas quais o termo aparecesse bem grafado.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Uma questão de 'dor' (sem ser a dor de pensar ou a do fingidor pessoano)

    Pedem-me comentário sobre a nova filosofia desportiva introduzida por Abel Xavier no futebol.

    Perguntam-me, ainda, se dor não é um sufixo agentivo, no meio de tanto pontapé na bola e no jogo de tanta dor. Direi, desde já, que sim e não só.
    Entre risos e comentários, relembrem-se as palavras do treinador (que foi... já não é..., porque treinos destes ninguém quer!):

Abel Xavier explica... 

    O homem, não sendo linguista, até procurou teorizar um pouco sobre a formação das palavras. Tudo ao lado (claro está!), uma vez que tratou palavras derivadas como se fossem compostas; viu uma palavra (dor) onde só poderia ver um afixo (sufixo). Confundiu, logo, composição com derivação. 
    O sufixo '-dor', etimologicamente, deriva do latino '-(t)or', o que, em muitos casos, redunda num simples caso de evolução fonética apoiada na sonorização de [t] para [d] em contexto intervocálico: 'administrātor,ōris' > administrador; 'computātor,ōris' > contador; 'gubernātor,ōris' > governador; 'imperātor,ōris' > imperador. 
     A produtividade deste sufixo, entretanto, é evidente, no Português, pela sua adjunção a bases verbais, de modo a formar:
. nomes agentivos (ex.: acusador, armador, corredor, descobridor, nadador, operador, pescador, pregador, restaurador, trabalhador, vendedor) ou que implicam causatividade e processos de aspeto durativo (ex.: adestrador, afinador, polidor);
. nomes transferidos da agentividade para a designação de instrumentos de ação relacionados com causatividade (ex.: agrafador, aquecedor, elevador, espanador, regador, ventilador);
. adjetivos que denotam agentividade e/ou causatividade (ex.: admirador, enriquecedor, norteador, pensador, prosador, seguidor, sofredor).
    Caso para dizer que, à moda (inconsistente) de Abel Xavier (e só para ele), o 'amador' torna-se masoquista; persegue-se o 'salvador', para não salvar o que ninguém quer; 'doador' e 'dador' estão condenados, por doarem ou darem o que não se deseja; 'criador' é entidade maléfica, por certo. Heróis seriam, portanto, o 'traidor' e o 'torturador'. 
      Está visto que, perante tal 'treinador', qualquer um preferiria ser 'perdedor'. Daí ser treinador sem futuro.

    É na base dessa filosofia que entendo a minha predileção (face a determinadas interpretações abusivas) por um instrumento da sala de aula como o 'apagador'.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Estagnação, retrocesso e perda de tempo.

     Reagiu o Ministro da Educação às palavras daqueles que consideram a nova proposta de programa de Português para o ensino secundário "um retrocesso".

     A reação foi apresentada com fórmula retórica, numa interrogação que desarma todo aquele que possa achar os textos literários como produto de somenos importância. E nisso há muita razão. De facto, se é a literatura que nos ensina o que é o Homem, as suas tradições, os seus jogos criativos e reativos ao real, as suas construções simbólicas - esteticamente moldadas por uma teoria do gosto que se  projeta naquilo que ele é e no que as intersubjetividades compõem -, não há textos mais significativos e formativos, pelo que dão e pelo que permitem criticamente represent(ific)ar e/ou ficcionar. Não têm que ser os autores e os textos mais atuais, recentes a fazê-lo, como o referiu a Presidente da Associação de Professores de Português, apelando para uma aproximação a uma realidade que frequentemente, e por contraste ao opinado, é desejável que seja ultrapassada e permita algum sentido de possibilidade alternativa. Há muitos textos atuais e de autores conceituados que não têm a elastividade nem a profundeza necessária à formação do ser; só do leitor mais consumista e imediato.
     Assim é rebatido um argumento inconsistente e que nem sequer pode ser tomado como o que há de mais crítico na proposta de programa (e suas metas de aprendizagem, encaradas como referenciais orientadores das aprendizagens essenciais e implicadas em contextos de avaliação interna e externa). 
      Dela fiz já um comentário sucinto, na base de uma primeira e rápida leitura do documento recentemente publicitado.
      Numa análise comparativa e esquemática do que são as metas acerca do domínio da Gramática, não há progressão que se afirme (nem visualmente configurada nem concetualmente sustentada em qualquer articulação a fazer com outros domínios). Assim, impõem-se algumas interrogações imediatas, seja a nível apenas do secundário seja a nível de uma leitura vertical com as metas do terceiro ciclo.

Esquematização do domínio da Gramática, 
a partir da proposta de programa de Português (Ensino Secundário)

      Na procura de correspondências entre os objetivos e os descritores associados a cada um dos anos de escolaridade, assiste-se a:
. autênticos fossos / vazios de articulação, com abordagens atomizadas e insularizadas pela alocação num dos anos de escolaridade e/ou pelos tempos destinados ao seu tratamento (questões de variação e variedade linguística ficam-se pelo décimo ano, apenas numa perspetiva evolutiva; deixis só no 11º; anafóricos e catafóricos só depois, e no 12º ano, como se os mecanismos de retoma e de antecipação / anúncio de segmentos textuais pudessem assim ser planificados; semântica só no 12º, sabe-se lá porquê);
. descontinuidades entre o que seja o trabalho de 10º ano e o do 11º, o qual não apresenta progressões de metas gramaticais de nenhuma espécie relativamente ao ano de escolaridade antecedente; 
. focos orientados para aspetos gramaticais que deveriam ser objeto de abordagem progressiva, assente em critérios de processamento diferenciado, de complexidade constitutiva crescente, de articulação com plataformas de aprendizagem integradora (a sintaxe reduz-se praticamente a questões de funções sintáticas e de frase complexa - repetidas, face ao já lecionado nos 2º e 3º Ciclos -, sem articulação com aspetos semânticos ou com opções discursivo-textuais que os textos potenciam);
. apostas em conceitos que surpreendentemente se revelam específicos no tratamento gramatical a dar no nível secundário, conforme os assinalei a itálicos e negrito por não aparecerem nos anos ou ciclos precedentes (cf. "Identificar a função  sintática predicativo do complemento direto"; "Identificar e construir campos lexicais; "Reconhecer e utilizar adequadamente diferentes verbos introdutores de relato do discurso" - não só não comparecem no ensino básico como são preteridos face a outras funções sintáticas não nucleares ou internas já trabalhadas nos 8º e 9º anos; a campo semântico, no 8º ano; a neologismo e arcaísmo, no 9º ano, mesmo que até faça sentido ver o neologismo à luz de processos irregulares de formação de palavras - só previstos para o secundário); 
. objetivos associados exclusivamente a um tipo de descritores, quando qualquer estudo linguístico aponta para relações inevitáveis (por que razão não radicam as citações ou as modalidades de reprodução do discurso - no objetivo 18 - nos aspetos da dimensão pragmática do discurso - no objetivo 19?); 
. uma falta / falha estratégica numa área de intervenção prioritária em termos de ensino-aprendizagem de uma língua: a aquisição, o desenvolvimento e o domínio lexical (vocabulário geral e específicos, colocações, expressões idiomáticas, expressões fixas, provérbios, entre outros aspetos), mais o exercício de (re)construção ou transformação de enunciados com vocábulos e/ou estruturas de significado equivalente; o sentido de avaliação e de adequação de registos, na assumida distinção entre o que são aspetos pragmáticos centrados na informalidade / formalidade e no sentido de avaliação e adequação de discursos orais / escritos. 

       Só por este domínio em concreto, basilar e estruturador de muito do trabalho necessário à oralidade, à leitura, à escrita e à própria educação literária, diria que esta proposta de programa é, no mínimo, um exemplo de estagnação nas aprendizagens (pelo menos, na passagem do que se espera no 3º Ciclo e do que se propõe para o Secundário); um evidente retrocesso face ao equacionado e explicitado no programa de Português em curso (com conhecimentos processuais e declarativos orientados para a ativação de competências e subcompetências de língua articuláveis com diferentes e amplas realizações); uma perda de tempo (como se os professores não tivessem que preparar, dar as suas aulas e considerar situações de um número cada vez maior de alunos) na discussão - ou na encenação dela - do que não é, por comparação com o que há e na substância científico-metodológica e didática, melhor para o ensino nem para as aprendizagens. 

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Todos ralham e ninguém tem razão

     E importa acrescentar que quem mais ralha não é porque não tenha o pão que (já) vai faltando.

    Esta reflexão surge na sequência de uma notícia hoje comentada no Jornal da Noite da SIC, num diálogo pouco ou nada esclarecedor do jornalista Rodrigo Guedes de Carvalho e o comentador Miguel Sousa Tavares.

Cartoon do cubano Angel Boligan, "El Universal".

    O facto diz respeito à tomada de decisão do juiz Rui Teixeira relativamente à utilização do Acordo Ortográfico (AO) nos documentos processuais do Tribunal de Torres Vedras. Segundo a notícia, o magistrado obrigou os serviços do Ministério da Justiça a reescreverem o relatório social de um detido, expurgando o texto das alterações introduzidas pelo AO. Na defesa de que os tribunais não estão obrigados ao cumprimento da resolução do Conselho de Ministros (acerca da adopção das novas regras em todos os serviços da administração pública), Rui Teixeira terá escrito que "Nos tribunais, pelo menos neste [de Torres Vedras], os 'factos' não são 'fatos', as 'actas' não são uma forma do verbo atar, os 'cágados' continuam a ser animais e não algo malcheiroso e a Língua Portuguesa permanece inalterada até ordem em contrário".
     Deste último registo, é absurdo fazer menção a situações completamente despropositadas: 'facto' mantém-se como sempre foi (dado que o 'c' é pronunciado na variedade portuguesa do continente europeu); a acentuação das palavras esdrúxulas não sofre qualquer mudança, pelo que é ridículo o exemplo adiantado do 'cágado'. Certeira é apenas a homonímia resultante entre o nome 'ata' e a forma verbal do verbo 'atar' (cf. "Ele ata").
     Não menos inconsistente é a orientação dos comentários: por um lado, a sapiência de Sousa Tavares a referir-se ao deputado "Mitchel Seufert" (que deve ser 'Michaele', a bem da sua ascendência paterna alemã) e à redação de um relatório que, entre outros pontos críticos, assume a falta de consenso social alargado sobre o AO; por outro, o jornalista e apresentador a despedir-se até à próxima segunda-feira, cito, "com maiúscula". É, portanto, do desconhecimento deste último (também escritor) que os dias da semana sempre se redigiram com minúscula (por razões de História da Língua) - à exceção dos contextos de abertura de frase / período -, e que não é o Acordo a mudar o 'statu quo'.
       Perante tão desinformadas e desacreditadas fontes jornalísticas e comentaristas, apetece continuar com um registo mais cómico e brincalhão que se lê no circuito das redes virtuais. Se Michael Seufert tem no seu blogue ("À vontade do freguês") escritos "sem acordos horrográficos", há outros jogos de palavras que se mostram mais coloridos pela sugestão - é o caso do que circula pelo Facebook, num apontamento intitulado

            «A cor do horto gráfico

                                                            já aprovado pelo novo Ministro do Saber

Última actualização do dicionário de língua portuguesa - novas entradas:

Arbusto: Busto com um certo ar
Testículo: Texto pequeno (embora, ache que devesse mais ser um teste pequeno)
Abismado: Sujeito que caiu de um abismo
Pressupor: Colocar preço em alguma coisa
Biscoito: Fazer sexo duas vezes
Bigode: Duplo Deus britânico
Coitado: Pessoa vítima de coito (por desconhecimento do que é a 'coita de amor')
Padrão: Padre muito alto
Estouro: Boi que sofreu operação de mudança de sexo
Democracia: Sistema de governo do inferno (cada vez mais verdadeiro!)
Barracão: Proibição de entrada de caninos
Homossexual: Sabão em pó para lavar as partes íntimas
Ministério: Aparelho de som de dimensões muito reduzidas
Detergente: Acto de prender seres humanos
Eficiência: Estudo das propriedades da letra F
Conversão: Conversa prolongada
Halogéneo: Forma de cumprimentar pessoas muito inteligentes
Piano: Ano Internacional da descoberta de Pi (3,1416)
Expedidor: Mendigo que mudou de classe social
Luz solar: Sapato que emite luz por baixo
Cleptomaníaco: Mania por Eric Clapton
Tripulante: Especialista em salto triplo
Contribuir: Ir para algum lugar com várias tribos (índias)
Aspirado: Carta de baralho completamente maluca
Assaltante: Um 'A' que salta
Determine: Prender a namorada do Mickey Mouse
Vidente: O que o dentista diz ao paciente
Barbicha: Bar frequentado por gays
Ortográfico: Horta feita com letras
Destilado: do lado contrário a esse
Pornográfico: Sinónimo de colocar no desenho
Coordenada: Que não tem cor
Presidiário: Aquele que é preso diariamente
Ratificar: Tornar-se um rato
Violentamente: Viu com lentidão

E

Língua "perteguesa"... PORQUE O SABER NÃO OCUPA LUGAR!

Prontus
Usar o mais possível. É só dar vontade e podemos sempre soltar um 'prontus'! Fica sempre bem.

Númaro
Também com a vertente 'númbaro'. Já está na Assembleia da República uma proposta de lei para se deixar de utilizar a palavra NÚMERO, a qual está em claro desuso. Por mim, acho um bom númaro!

Pitaxio
Aperitivo da classe do 'mindoím'.

Aspergic
Medicamento português que mistura Aspegic com Aspirina.

Alevantar
O acto de levantar com convicção, com o ar de 'a mim ninguém me come por parvo!... alevantei-me e fui-me embora!'.

Amandar
O acto de atirar com força: 'O guarda-redes amandou a bola para bem longe'

Assentar
O acto de sentar, só que com muita força, como fosse um tijolo a cair no cimento.

Capom
Tampa de motor de carros que quando se fecha faz POM!

Destrocar
Trocar várias vezes a mesma nota até ficarmos com a mesma.

Disvorciada
Mulher que diz por aí que se vai divorciar.

É assim...
Talvez a maior evolução da língua portuguesa. Expressão que não quer dizer nada e não serve para nada. Deve ser colocada no início de qualquer frase.

Entropeçar
Tropeçar duas vezes seguidas.

Êros
Moeda alternativa ao Euro, adoptada por alguns portugueses.
Também conhecida por "aéreos"

Falastes, dissestes...
Plural de 'tu falaste', como dois em um. Ex.: eu falei, tu falaste, TU FALASTES, ele falou

Fracturação
O resultado da soma do consumo de clientes em qualquer casa comercial. Casa que não fractura... não predura.

Há-des
Verbo 'haver' na 2ª pessoa do singular: 'Eu hei-de cá vir um dia; tu há-des cá vir um dia...'

Inclusiver
Forma de expressar que percebemos bem um assunto. E digo mais: eu inclusiver acho esta palavra muita gira. Também existe a variante 'Inclusivel'

A forma mais prática de articular a palavra MEU e dar um ar afro à língua portuguesa, como 'bué' ou 'maning'. Ex.: Atão mô, tudo bem?

Nha
Assim como Mô, é a forma mais prática de articular a palavra MINHA. Para quê perder tempo, não é? Fica sempre bem dizer 'Nha Mãe' e é uma poupança extraordinária.

Parteleira
Local ideal para guardar os livros de Protuguês do tempo da escola.

Perssunal
O contrário de amador. Muito utilizado por jogadores de futebol. Ex: 'Sou perssunal de futebol'. Dica: deve ser articulada de forma rápida.

Prutugal
País ao lado da Espanha. Não é a Francia.

Quaise
Também é uma palavra muito apreciada pelos nossos pseudo-intelectuais... Ainda não percebi muito bem o quer dizer, mas o problema deve ser meu.

Stander
Local de venda. A forma mais famosa é, sem dúvida, o 'stander' de automóveis. O 'stander' é um dos grandes clássicos do 'português da cromagem'...

Tipo
Juntamente com o 'É assim', faz parte das grandes evoluções da língua portuguesa. Também sem querer dizer nada, e não servindo para nada, pode ser usado quando se quiser, porque nunca está errado, nem certo. É assim... tipo, tás a ver?

Treuze
Palavras para quê? Todos nós conhecemos o númaro treuze.»

      Apetece mesmo dizer que mais vale ler uma brincadeira com a língua do que tomar a sério o que querem dela fazer: caso televisivo sério sem nenhumas evidências de confiança no que é dito. Como diria Jorge Palma, "Deixa-me rir! Essa história não é tua!"

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Nova mudança no ensino do Português

     Ontem foi divulgada a proposta de novo programa de Português para o ensino Secundário, mais as respetivas metas curriculares.


     A leitura rápida do documento permite-me, por ora, dar conta de algumas notas que fui apontando à medida que tomava conhecimento de um programa, aqui e ali já comentado / adiantado até que foi ontem divulgado para um período de consulta, discussão e de apreciação crítica:

i) reconheço o princípio de integração que a publicitação simultânea do programa e das metas acaba por evidenciar, na pressuposta implicação e articulação das partes (ao contrário do sucedido no ensino básico, no qual se registam desajustamentos diversos, dada a posterior formulação das metas face a um programa nem sempre respeitado nos princípios metodológicos ou nos conteúdos);

ii) sublinho o interesse do texto justificativo que antecede a organização de conteúdos / obras para o nível de ensino secundário, numa orientação para alguns pressupostos pedagógico-didáticos que enformam o novo documento (nomeadamente, o da afirmação da centralidade do texto complexo e da sua abordagem segundo propostas não dependentes do que é o literal, o conhecimento inerte ou a aprendizagem na base da mera reprodução - apostando, portanto, na dimensão inferencial);

iii) considero a focalização da noção de género textual (estruturadora na construção do programa) como uma orientação reguladora linguisticamente aceitável, para a organização e planificação das aprendizagens ao nível tanto do texto não literário como do literário - mesmo que essa linha de ação não deva ser entendida como fechada (de modo a não significar a perspetivação crítica e as potencialidades singulares que os objetos textuais recriam, ao procurar ultrapassar o que possam ser dominantes tipológicas);

iv) aponto a valorização do texto literário como orientação relevante, ainda que alguns dos pressupostos da sua abordagem (contextualização das produções; organização diacrónica de conteúdos / obras; natureza estética, cultural, simbólica e estilisticamente motivada) convoquem estratégias que poderão ser revistas por alguns docentes como o regresso a práticas de história literária (como as que dominaram no tratamento de programas anteriores a 2001) em detrimento do princípio de fruição de leitura salientado pelo próprio texto justificativo do programa;

v) prevejo alguma justaposição / concorrência entre esta proposta de programa para Português e o programa em curso da disciplina de Literatura Portuguesa, apesar de o foco específico desta última não (dever) ser o que Português propõe;

vi) problematizo a gestão de tempos atribuídos aos domínios da oralidade, da escrita e da gramática, bem como o peso relativo atribuído a estes últimos, que ficam (no conjunto e sempre) com um valor total aproximado ao da educação literária - aliás, a constatação de que os tempos desta última mais os da avaliação formal são um total sempre superior à soma dos da compreensão e expressão oral, da leitura, da escrita e da gramática é reveladora do desequilíbrio e dos dilemas que antevejo nas práticas de ensino-aprendizagem: entre o trabalho de processualidades e (sub)competências associadas aos diferentes domínios contemplados (necessariamente morosas e de verificação lenta, quanto à apropriação, demonstração e avaliação de resultados) e o cumprimento de um conjunto de leituras (maioritariamente integrais, de complexidade considerável e de construção interpretativa densa, na referencialidade histórico-cultural, simbólica, estética e intemporal implicada);

vii) assumo como incompreensível a prioridade e a progressão (quase inexistentes, em termos práticos) dos aspetos gramaticais contemplados nos descritores das metas - por exemplo, como se as questões semânticas pudessem ser perifericamente relegadas para o 12º ano e, por exemplo, as questões aspetuais (pelos vistos só as gramaticais) possam ser tratadas num só tempo; como se não houvesse pragmática funcional / implicada nas lógicas inferidas na produção e na receção dos textos propostos para o 10º e 11º anos; como se a referência deítica pudesse ser alocada apenas num 11º ano, por contraposição à anafórica e catafórica conduzida para o 12º -, para não me referir concretamente à ausência de mecanismos sintáticos mais complexos explorados pelos textos e pelos discursos (literários ou não), pelas práticas tradicionais dos exames e com necessidade de consciencialização e explicitação óbvias (inversões, elipses, construções finitas e não finitas de sujeitos / complementos, processos combinatórios de coordenação e subordinação, só para mencionar alguns dos mais frequentes).

   E depois disto, quanto a classes de palavras, parece que a questão se tornou obsoleta no ensino secundário.
     Se estas metas são para levar a sério, tenho sérias dúvidas que tenha havido alguma validação científico-didática do documento. Por que motivo pedem aos professores que se pronunciem sobre uma manta de retalhos inconsequente, sem progressão e com uma gestão horária que qualquer professor no terreno, na prática real letiva, em contacto com alunos autênticos sabe que não faz sentido?
   Voltarei a esta reflexão, por certo, em futura oportunidade e com uma visão mais consistente do documento.

      No geral, entre as potencialidades e as fragilidades, esta proposta não se revela inovadora; instituinte de práticas muito diferenciadas, já por mim vividas ora como aluno de secundário (dos anos oitenta do século passado) ora como professor (na década seguinte). Curiosamente, vejo Saramago e um dos meus romances favoritos como uma das hipóteses de leitura a trabalhar: O Ano da Morte de Ricardo Reis.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

A propósito de metáforas

     É quando se procura distinguir o que é metáfora de uma comparação que os filmes (para não mencionar outras coisas) nos traem.

     Há um filme de coprodução francesa, belga e italiana, inspirado num pequeno romance chileno (ou novela, conforme também o designa o autor no prólogo), que procura representar o papel de um poeta (Pablo Neruda) a ensinar um carteiro acerca do que é uma metáfora, pelo recurso a comparações:

Excerto fílmico de 'O Carteiro de Pablo Neruda' (no original, 'Il Postino'), filme realizado por Michael Radford (1994),
com base na obra homónima de Antonio Skármeta, datada de 1985. 

   Contrariando o poeta (no papel do professor, ensinando ao aluno-carteiro) e o que muitos manuais explicitam (a metáfora enquanto comparação sem a partícula 'como'), evito que os meus alunos pronunciem tal coisa. Prefiro que falem de translação (conceito matemático que também devem aplicar noutras áreas de saber), transferência, reconstrução (por analogia, semelhança) do significado de uma palavra ou expressão por aproximação ou associação a um campo semântico distinto.
     Assim, ainda que a lógica possa ditar que à sequência comparativa "o jovem corria parecendo um lince" (ou 'o jovem corria como / tal qual um lince') corresponde a metáfora "o jovem era um lince na corrida", é bom que assentem a noção da metáfora pela associação e identificação de características que (por estranhas que pareçam) sugerem a rapidez da corrida (do lince) feita pelo jovem.

     É no plano da sugestão, mais do que no da definição, que a abordagem das figuras de estilo ou dos tropos retóricos se fundamenta. A funcionalidade significativa, os efeitos perlocutórios destes recursos ao nível da expressão (no fundo, o que se pretende transmitir com a utilização deles) são o essencial a explorar.

domingo, 3 de novembro de 2013

No meu canto

      A cantiga de Rita Guerra - incluída no álbum "Rita Guerra ao Vivo no CCB".

     O título admite várias leituras (homónimas): tanto é o resultado do ato de cantar como a posição periférica de quem se deixa ficar ao lado, ao canto, vendo passar...


     NO MEU CANTO

Sei que não te tenho,
Vou-te vendo a passar...
Sei que não aguento,
Mesmo assim vou esperar...

Guardo na memória
Um futuro que não passou
De um sonho bom...

E penso sempre
"Será que me viu?
Eu quero acreditar
Que sentiu

Esta paixão que me eleva
E devolve ao vazio..."

Eu grito,
Eu choro,
Sorrio
Em segredo

Eu quero
O fogo!
Que frio,
Que medo...!

Será que um dia
Sentirei Amor outra vez?
Queria ser a única
Mulher que tu vês

Para te abraçar e embalar
Nesse futuro que não passou
De um sonho bom...

E navego no sonho 
A sorrir
Desejo tanto que possas sentir
A verdade de cada palavra e ouvir

Que eu grito,
Eu choro,
Sorrio
Em segredo...

Eu quero
Esse fogo!
Que frio,
Que medo...

Não consigo libertar-me de ti...
És o livro mais lindo que li...
Vou ficando no meu canto à espera
Que olhes...
À espera que olhes p´ra mim...

      Este é o destino de quem se inspira no amor, compõe a letra e a música e se deixa ficar num sonho, à espera de um olhar. E até lá, canta... o seu canto... no seu canto.

      Uma balada para um outono chuvoso à espera de algum calor, nem que seja o do São Martinho.

sábado, 2 de novembro de 2013

Sena e Afrodite Anadiómena, mais outras experiências.

    Afrodite, saída das ondas, é mito clássico para figurar na mais criativa expressão da modernidade.

      Uma pintura anónima do primeiro século (79. d.c.) encontra-se em Pompeia, representando a divindade sobre as águas. A ascendência mítica remonta à civilização egípcia e à deusa Neith ou Nepte, Naus, Nuk ou Nut, numa nau celestial.


     Os versos de Arthur Rimbaud traçam-na com alguma abjeção, mesmo quando a figura poética tenha gravados, nas nádegas, os nomes Clara Vénus. A desconstrução do mito ou a sua reconfiguração preparam uma visão estética e poética assentes na metamorfose, na afirmação do desconhecido e na reinvenção da imagem cultural do mito.
    Na literatura portuguesa, Jorge de Sena tomará a poesia como a possibilidade de transformar o mundo e também a própria linguagem. Os 'Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena' escritos em 1961 são disso exemplo, além de outras experimentações em verso publicadas, por exemplo, em Peregrinatio ad loca infec-ta (1969), em Exorcismos (1972) ou, postumamente, em Visão Perpétua (1982) - todas elas rela-cionadas com a metamorfose da própria língua ao nível do sig-nificante (recorrendo a apócopes, síncopes, formações neológicas das palavras, colagens de segmentos, recuperação de arcaísmos e eruditismos, inversões, invenções lexicais, epítetos clássicos para referências mitológicas).
      Há quem veja neste trabalho criativo a aproximação de Sena a projetos de poesia experimental (na linha de Ernesto de Melo e Castro). Todavia, mais do que produções orientadas para uma dimensão semiótica a construir - nomeadamente, com signos não vocabulares -, a reconstrução da linguagem seniana não apaga muita da materialidade que a língua traz consigo, antes apostando na reminiscência de sonoridades e raízes gregas e/ou alatinadas; na possibilidade significativa da sugestão sonora e da organização morfossintática na própria dimensão sintagmática da língua; na invenção vocabular, potencial no português. 
   Graças a estes mecanismos, visa-se atingir uma significação nova, uma outra semântica, para a qual o poeta orienta, por exemplo, com as «Notas a alguns Poemas» (in Trinta Anos de Poesia, de 1972) ou ainda com as palavras citadas num ensaio de Gastão Cruz (cimo, à direita).

       Na recriação proposta, nas entradas que o leitor ativa para aceder à associação de imagens evocadas no texto (sonora, morfológica, sintática, conhecimentos enciclopédicos), a decifração do enigma faz-se, qual peregrino perseguindo locais e motivos poéticos que, na tensão do aparente nulo significativo, conduzem ao pleno infinito da significação; permitem a experiência radical de, pela conjugação de entradas de leitura, (re)construir um código feito do jogo poético composto de forças e redes de reiteração e dissonância.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Um mês que anuncia chuva

      Começado novembro, diz o povo "Cava fundo em novembro para semeares em janeiro".

     Não sei se ajuda muito no trabalho de tanto cavar, mas a verdade é que novembro me faz lembrar chuva. Anunciada que está para este fim de semana, ainda mais sentido faz a evocação da balada dos norte-americanos Guns N' Roses:


        NOVEMBER RAIN

When I look into your eyes I can see a love restrained
But darlin' when I hold you, don't you know I feel the same? yeah
Nothin' lasts forever and we both know hearts can change
And it's hard to hold a candle in the cold November rain

We've been through this such a long long time
Just tryin' to kill the pain, ooh yeah
But lovers always come and lovers always go
An' no one's really sure who's lettin' go today, walking away

And if we take the time to lay it on the line
I could rest my head just knowin' that you were mine, all mine
So if you want to love me then darlin' don't refrain
Or I'll just end up walkin' in the cold November rain

Do you need some time on your own?
Do you need some time all alone?
Everybody needs some time on their own
Don't you know you need some time all alone?

I know it's hard to keep an open heart
When even friends seem out to harm you
But if you could heal the broken heart
Wouldn't time be out to charm you?

Sometimes I need some time on my own
Sometimes I need some time all alone
Everybody needs some time on their own
Don't you know you need some time all alone

And when your fears subside and shadows still remain, oh yeah
I know that you can love me when there's no one left to blame
So never mind the darkness we still can find a way
Nothin' lasts forever even cold November rain

Don't you think that you need somebody?
Don't you think that you need someone?
Everybody needs somebody
You're not the only one, you're not the only one

      Axl Rose (vocalista) trabalhou-a e integrou-a no álbum "Use your Illusion I" (1992).

      Na ilusão de que está tudo bem lá fora (e chove), há quem, dentro, viva o incómodo de não poder sair (obrigações de ofício que me obrigam a muito cavar, para ver se encontro alguma coisa do que semeei).