Termino o mês com um recomeço... de leitura.
Refiro-me à releitura de uma obra que li há já muitos anos, depois de, muitos mais ainda, ter assistido a um filme que apreciei bastante. O título do filme era homónimo da obra (O Carteiro de Pablo Neruda), mas as semelhanças são poucas no que ao enredo diz respeito. Entre pormenores aqui e além bem distintivos (o nome do protagonista, a localização temporal e espacial, a relação familiar Rosa-Beatriz, o percurso de Pablo Neruda, o contexto político representado), o final do livro nada tem a ver com o do filme realizado por Michael Radford (com mortes bem distintas).
Uma outra adaptação cinematográfica pode ser encontrada na realização de Antonio Skármeta - uma versão mais fiel à obra e ao contexto chileno representado. Curiosamente, esta versão cinéfila acontece em Portugal (entre a zona da Figueira da Foz e Mira), aquando do exílio do autor por terras lusas.
Uma outra adaptação cinematográfica pode ser encontrada na realização de Antonio Skármeta - uma versão mais fiel à obra e ao contexto chileno representado. Curiosamente, esta versão cinéfila acontece em Portugal (entre a zona da Figueira da Foz e Mira), aquando do exílio do autor por terras lusas.
Versão fílmica apresentada na Alemanha em 1984 (a partir do roteiro de Antonio Skármeta)
Desta feita, apoiando-me mais no livro e menos nos filmes, o prólogo chamou-me mais a atenção, destacando-se o anúncio da linha progressiva da intriga (do entusiasmo à profunda depressão), da "geografia erótica do poeta" (e não só), da identificação do herói, do tempo gasto na produção escrita (catorze anos), da fronteira de ficção e de realidade (tanto no contexto político representado como nas personagens construídas). São janelas e portas de entrada na leitura do designado ora romance ora novela, segundo classificação do próprio António Skármeta, escritor agraciado com prémios literários de renome (Prémio Internacional de Literatura Bocaccio e o Prémio Nacional de Literatura do Chile).
De resto, foi a oportunidade de relembrar o há muito conhecido incipit da obra:
Em Junho de 1969 dois motivos tão afortunados como triviais levaram Mário Jiménez a mudar de ofício. Primeiro, o seu desamor pelas lides da pesca que o arrancavam da cama antes do amanhecer, e quase sempre quando sonhava com amores audaciosos, protagonizados por heroínas tão abrasadoras como as que via no écran do cinematógrafo de San Antonio. Este talante, juntamente com a sua consequente simpatia pelas constipações, reais ou fingidas, com que se escusava em média todos os dias a preparar os apetrechos do bote do seu pai, permitia-lhe retouçar debaixo das nutridas mantas chilenas, aperfeiçoando os seus oníricos idílios, até o pescador José Jiménez voltar do mar, encharcado e faminto, e ele aliviava o seu complexo de culpa preparando-lhe um almoço de estaladiço pão, sediciosas saladas de tomate com cebola, mais salsa e coentros, e uma dramática aspirina que engolia quando o sarcasmo do seu progenitor o penetrava até aos ossos:
- Arranja trabalho. - Era a concisa e feroz frase com que o homem concluía um olhar acusador, que podia durar até dez minutos, e que de qualquer modo nunca durou menos de cinco.
- Sim, pai - respondia Mario, limpando as narinas com a manga do colete.
Se este motivo foi o trivial, o afortunado foi a posse de uma alegre bicicleta marca Legnano, valendo-se da qual Mário trocava todos os dias o diminuto horizonte da calheta dos pescadores pelo quase mínimo porto de San Antonio, mas que em comparação com o seu casario o impressionava como faustoso e babilónico. A simples contemplação dos cartazes do cinema com mulheres de bocas turbulentas e duríssimos parentes de havanos mastigados entre dentes impecáveis, deixava-o num transe do qual só saía após duas horas de celulóide, para pedalar desconsolado de volta à sua rotina, às vezes sob uma chuva marítima que lhe inspirava épicas constipações.
Ao longo de O carteiro de Pablo Neruda, cruzam-se os sonhos e as expectativas de Mario Jiménez com a descoberta do poder das palavras, das metáforas e da poesia, para quem delas precisa. Acresce a aprendizagem e a conquista da amizade (com Pablo Neruda) e do amor (por Beatriz). A par destes ingredientes, há também o retrato político da década de 70 no Chile, assim como a recriação da vida política e poética de Pablo Neruda, o Nobel da Literatura no ano de 1971.
Entre a luta contra um confinamento ou determinismo social a que o protagonista parecia votado e a afirmação do sentido poético da vida, respira-se nas páginas da narrativa a vontade da libertação, que aparece ameaçada no final do livro (com o golpe militar e a revolta política; a deslocação do poeta até à janela para ver o mar agitado; a doença e morte de Neruda; o controlo e a "prisão" de Mario).
Uma obra que apela ao sentimento, à ousadia e ao humor, à plasticidade da língua (entre os registos mais coloquiais, familiares e os poéticos), à consciência política que (pode) traz(er) o perigo de uma agitação coletiva.