À hora da morte, há quem diga que se vai para o céu. Que céu é este?!
Ana Luísa Amaral, reconhecido nome nacional da poesia contemporânea, revelou--se apaixonada pela expressão poética, pela língua, pela palavra, num trabalho que encarou como "amor, angústia e necessidade". Recebeu o Prémio Rainha Sofia, em 2021, que lhe foi atribuído pelo Património Nacional de Espanha e pela Universidade de Salamanca, com o qual fica notabilizada junto de nomes da língua portuguesa como João Cabral de Melo Neto (1994), Sophia de Mello Breyner Andresen (2003), Nuno Júdice (2013), a par de muitos outros grandes autores da tradição e cultura iberoamericanas.
No seu percurso poético, iniciado com "Terra de Ninguém" (primeiro poema do seu primeiro livro - Minha Senhora de quê, publicado em 1990), há uma possível resposta para o entendimento do que é um "céu":
Um Céu e Nada Mais
Um céu e nada mais — que só um temos,
como neste sistema: só um sol.
Mas luzes a fingir, dependuradas
em abóbada azul — como de tecto.
E o seu número tal, que deslumbrados
neram os teus olhos, se tas mostrasse,
amor, tão de ribalta azul, como de
circo, e dança então comigo no
trapézio, poema em alto risco,
e um levíssimo toque de mistério.
Pega nas lantejoulas a fingir
de sóis mal descobertos e lança
agora a âncora maior sobre o meu
coração. Que não te assuste o som
desse trovão que ainda agora ouviste,
era de deus a sua voz, ou mito,
era de um anjo por demais caído.
Mas, de verdade: natural fenómeno
a invadir-te as veias e o cérebro,
tão frágil como álcool, tão de
potente e liso como álcool
implodindo do céu e das estrelas,
imensas a fingir e penduradas
sobre abóbada azul. Se te mostrasse,
amor, a cor do pesadelo que por
aqui passou agora mesmo, um céu
e nada mais — que nada temos,
que não seja esta angústia de
mortais (e a maldição da rima,
já agora, a invadir poema em alto
risco), e a dança no trapézio
proibido, sem rede, deus, ou lei,
nem música de dança, nem sequer
inocência de criança, amor,
nem inocência. Um céu e nada mais.
in Às vezes o Paraíso (1998)
Eis um "céu" que nos mostra que não somos ninguém ou que somos (apenas) o que podemos ser; um "céu" de que, entre o nível do quotidiano e o cósmico, se compõe a afirmação do real mais a negação do que esteja / seja mais do que simples "amor".
Cruzada esta mensagem com "Soneto científico a fingir" (in E muitos os caminhos, de 1995), este é, afinal, um "céu" que dá mote ao amor, a esse tema que, desviado, não deixa de posicionar o ser humano na condição que verdadeiramente o dignifica. Ou seja, estamos perante "um céu e nada mais" que pode ser tudo, numa leitura subversiva da negação, instaurada nos versos, mas (a)firmada na posição das possibilidades, do poder ser.
Um breve roteiro pela obra poética de Ana Luísa Amaral (1956-2022)
Cruzei-me com a professora nas salas da antiga Faculdade de Letras da Universidade do Porto e na expressão da poesia romântica em língua inglesa, por ela ensinada e convocada nas relações interartísticas e intertextuais que o mundo traduz; que aquele que a escreve faz representar; que o tempo (re)compõe e nela se atravessa, quando é grande.
Aos 33 anos, viu publicada a sua primeira obra; aos 66 partiu, ontem, desta vida terrena, com muitas publicações e estudos que ficam para nós, numa comunhão / comunicação feitas de humanidade e genuinidade - no fundo, ensinamentos que dão sentido à existência, apartados de tudo o que se mostre impertinente ou ferino.
Foi para o "céu"? Deixou-nos um "céu": o do pensamento; o das línguas, culturas, letras e humanidades, que serviu em todos os sentidos; o do respeito pela igualdade e solidariedade sociais, enquanto exemplo e testemunho de empenho cívico, num "amor" tão pessoal quanto coletivo.
Da literatura inglesa (e de expressão inglesa) à portuguesa - um caminho que também se faz de um "céu" comum, livre de fronteiras, e com uma poeta que revelou O Olhar Diagonal das Coisas (conforme no lo dá hoje a conhecer a Assírio&Alvim, numa compilação significativa e atualizada da sua obra poética).
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