sábado, 30 de abril de 2011

Vamos ao verso, para não ter reverso...

      Este é um dos casos tradicionais na análise formal poética (em verso).

     Q: Qual é a diferença entre o verso solto e o monóstico? Pode dizer-se de qualquer uma das formas?

     R: Há diferenças substanciais entre as designações. Não são sinónimos.
    Fala-se de 'verso solto ou branco' quando se está a tratar a questão da rima, nomeadamente de um verso que, numa estrofe ou em todo um poema, não encaixa na combinação de sons associada a um esquema rimático.
    O caso do monóstico é outro: é o de uma designação para uma estrofe constituída por um só verso.
    Comparem-se as situações dos seguintes poemas:


    Não há, portanto, que confundir 'verso solto' com o facto de este estar isolado entre uma sequência de versos e/ou de estrofes; está isolado sim, mas por não rimar com mais nenhum outro.

      E assim o que é unidade (um verso que não rima; uma estrofe com um só verso) passa a dualidade (por se utilizarem dois conceitos para dois domínios completamente distintos).

sábado, 23 de abril de 2011

Um clássico... um intemporal...

      É um clássico, um dos grandes da literatura mundial, que já mereceu referência neste espaço por outros motivos.

       Hoje é data reconhecida para o seu nascimento há 447 anos.
  E neste mesmo dia, quando Shakespeare se deu a conhecer à Humanidade, relembro uma representação de O Mercador de Veneza, peça do dramaturgo inglês (dos finais do século XVI - 1596/98), reposta, numa versão cénica fabulosa de Ricardo Pais e Daniel Jonas, no Teatro Nacional de São João do Porto, por alturas do início de 2009.
     Exemplo de uma "comédia" marcada pelo jogo trágico das acções e emoções humanas, só por ironia se pode falar num "happy end" ou, citando o próprio autor com o título de outro texto dramático, em "All's well that ends well". Há muita duplicidade, muito desafio, conflitos e percepções a minar relações, poderes que desafiam o protagonista do título (o mercador cristão António) e o do texto (o judeu Shylock).
    Numa Veneza mercantil, onde a lei dos homens bons impera pela inteligência das mulheres vindas de Belmonte, surge à frente do espectador uma rede de equívocos, enigmas, valores e temas que Shakespeare conseguiu compor numa coerência avassaladora, capaz de tocar o ser de qualquer humano. Entre a libra (ou o meio quilo) de carne; a história dos três cofres; a abordagem de temas como a questão do sexo, das raças, das crenças, das leis; o jogo do disfarce, todos impõem os valores básicos do bem e do mal, numa tensão que não deixa ninguém sem partido.
      Na multiplicidade de formas artísticas convocadas para os temas e para a obra, não é de menor apreço a adaptação fílmica de The Merchand of Venice, de  Michael Radford (2004), com destaque para as interpretações de Al Pacino (Shylock) e Jeremy Irons (António). Muito actual é o monólogo do judeu, pela reflexão que suscita face às diferenças:


    No fim, retoma-se um 'topos' shakespeariano: o da música harmoniosa e pacificadora, vinda da paradisíaca Belmonte - "Here will we sit and let the sounds of music creep in our ears".

Cuidado com as distâncias...

      Já tive oportunidade de, por várias vezes, me referir à natureza deíctica de certos termos.

      As questões persistem, porque em tudo dependem dos contextos discursivamente equacionados.

    Q: O advérbio «longe» é também um elemento deíctico, por exemplo, na frase «Tenho passado dias aflitivos longe de ti»? A mim, parece-me que não, porque acho que esse advérbio se refere sobretudo à distância que separa o locutor do interlocutor e não ao lugar em que aquele se encontra, mas nunca se sabe.

A porta, o espaço e o tempo,
arte digital surrealista de Marcel Caram
    R: A resposta, em função da frase, é mesmo assim variável, tendo em conta a circunstância de produção do discurso e as condições de interacção.
     Admitindo o cenário de alguém que escreve uma carta e introduz a frase em questão no discurso para constatação das dificuldades criadas com uma separação, é possível ler 'longe' como deíctico: por implicitação e por contraste face ao 'cá / aqui' do locutor (escrevente), distingue-se o 'longe' como marca vectorialmente orientada para o 'aí', como coordenada referente a um espaço distanciado, mediado e não compresente em que o interlocutor (configurado pelo pronome 'ti') se encontra.
     Uma outra situação diz respeito ao reencontro de duas pessoas que interagem compresencialmente. O locutor pode formular o enunciado para o seu interlocutor, no tempo e no espaço que partilham (estes últimos de natureza deíctica). Num presente, num 'aqui' e num 'agora' em que se confessa a aflição vivida num intervalo de tempo mais ou menos lato (cf. pretérito perfeito composto), pode acontecer que se faça referência a um outro lugar (no qual o interlocutor já não se encontra), traduzido pela locução prepositiva 'longe de'. Com esta última encenação, não ocorre um sinal de 'mostração' da construção do discurso; trata-se apenas de um indicador espacial de referência não específica, sem relação directa com a produção discursiva ou as coordenadas do 'eu' e/ou do 'tu'.

    Razão para se ter de explicitar o contexto o mais possível, por uma questão de distinção de coordenadas de localização na produção discursiva (deícticas) e coordenadas de referência (não necessariamente deícticas).

terça-feira, 19 de abril de 2011

Nem sempre o que subordina é frase

    De novo sintaxe, com a complexidade que as frases nos oferecem e que muita gente ainda discute.

    Porque há frases complexas que se configuram por encadeamentos a diferentes níveis, cá vem um exemplo em que as árvores (invertidas, com tronco no céu e ramos na terra) sempre podem dar frutos.

    Q: Como se classificam as orações da frase «Não gostei da maneira como ele olhou para mim.»? E qual é a classe de «como»?

    R: Para analisar a frase dada, marcada pelo mecanismo de subordinação, partiria da constatação de que há uma estrutura subordinante ou superordenada, que corresponde à da frase matriz ('Não gostei de X'). Entretanto, X surge configurado da seguinte forma: 'a maneira como ele olhou para mim'. 
    A relação de dependência que se constrói entre o segmento subordinante e o subordinado opera-se na base de um constituinte (grupo nominal 'a maneira') restritivamente expandido ('como ele olhou para mim').
    Esquematicamente, tem-se qualquer coisa como:


     O grupo nominal expandido (no segundo nível - vermelho) apresenta o elemento 'como' enquanto pronome relativo, palavra de retoma para 'a maneira' - o elemento subordinante, que se articula com o segmento subordinado. Há, assim, uma segunda oração introduzida por um pronome relativo, o que faz desta última uma subordinada relativa restritiva.
     De qualquer forma, e porque entendo a dúvida e o desafio implicados na questão, devo registar que, numa breve consulta de algumas referências, detectei uma informação relevante. Na primeira versão da Gramática da Língua Portuguesa, coordenada por Mira Mateus (1989: 298), é interessante ler-se o seguinte a propósito da análise de alguns enunciados: "Vemos assim que quando, enquanto, como se aproximam quer pela sua forma quer pelo seu valor sintáctico-semântico dos morfemas relativos. (...) permitem ver como é afinal ténue a fronteira entre os morfemas relativos e algumas das chamadas «conjunções subordinativas». Os morfemas relativos podem exprimir valores coincidentes com os de outros conectores de subordinação." A citação aqui transcrita apoia-se, ainda, numa afirmação de Óscar Lopes que, na sua Gramática Simbólica do Português, nota "a semelhança, se não a homonímia, e o visível nexo existente entre certas conjunções ('porque', 'como', 'quando') e certos advérbios interrogativos", numa aproximação de parentesco das orações conjuncionais às relativas (1972: 310).
     Neste sentido, diria que a classificação de 'como' (por muito que me incline para pronome relativo) não pode desconsiderar totalmente a propriedade afim de uma conjunção. E precisamente por esta natureza homonímica de que fala Óscar Lopes, tenderia, em termos pedagógico-didácticos, a sublinhar o estatuto de conector / articulador do termo.

      Caso para dizer que, independentemente do conhecimento explícito da língua centrado na classificação em termos de classe de palavras, este é um dos exemplos em que a pedagogia do oral e a do escrito apontam para a funcionalidade expansiva, coesiva e articulatória de enunciados / discursos.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Tarquínio ou um exemplar de primavera romântica (até ao fim)

     Ainda que o título da obra seja plural, Primaveras Românticas (1872), o seu autor teve um percurso singular para um tempo feito de conformismos, poderes instituídos, conservadorismos de valores.

     Há 169 anos, nascia Antero de Quental em Ponta Delgada, o mentor da Geração de 70 (de onde saíram nomes e actos que marcaram o final do século XIX: Eça de Queirós, Teófilo Braga, Ramalho Ortigão, Oliveira Martins, só para referir os mais sonantes; as Conferências do Casino Lisbonense, "As Farpas", o projecto das Cenas da Vida Portuguesa, só para mencionar os mais marcantes).
     Por trás de tudo, estava Antero - poeta da reflexão estética e do papel social e civilizador da expressão poética, pensador e defensor do espírito científico-filosófico de combate ao sentimentalismo ultra-romântico dominante em Portugal pela década de 60 do século XIX.
     Não obstante o espírito polémico, revolucionário, activo, questionador da tradição artística obsoleta e paralisante, um percurso pessoal crítico e influenciado pela metafísica, bem como pela religião, cruzou-se com o pessimismo filosófico de Schopenhauer e de Hartmann, expressos na composição de, entre outros, Sonetos Completos (1886) - uma das formas poéticas que adopta para a consciencialização do processo de libertação da condição humana.

EVOLUÇÃO

Fui rocha em tempo, e fui no mundo antigo
tronco ou ramo na incógnita floresta...
Onda, espumei, quebrando-me na aresta
Do granito, antiquíssimo inimigo...

Rugi, fera talvez, buscando abrigo
Na caverna que ensombra urze e giesta;
Ou, monstro primitivo, ergui a testa
No limoso paúl, glauco pascigo...

Hoje sou homem, e na sombra enorme
Vejo, a meus pés, a escada multiforme,
Que desce, em espirais, da imensidade...

Interrogo o infinito e às vezes choro...
Mas estendendo as mãos no vácuo, adoro
E aspiro unicamente à liberdade.

Antero de Quental, in Sonetos (1861)
        
      Trinta anos depois, o autor destes versos far-se-ia em nada, interrompendo a evolução (ou antecipando-a, abandonando esta imensidade que é a vida).

     Nessa libertação, nessa fuga romântica persistiu um ideário que, porém, acabou por contradizer algum do sentido e do objectivo com que pautou a vida a que pôs fim: o da crença e o da opção pela mudança e pela ruptura, em prol do desenvolvimento intelectual, político e cultural.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

A duvidar é que nos entendemos...

       Regresso à sintaxe...

      Sem dúvida, esta é a área preferida dos colegas para suscitar e resolver questões.

      Q:  Na frase "Alguém me pediu para falar mais baixo", 'para falar mais baixo' é uma oração substantiva completiva? Caso não seja, consideramos o quê?

       R: Trata-se, sem dúvida, de uma subordinada substantiva completiva. Prova-o o facto de, pela estrutura argumental do verbo 'pedir' (Algo / Alguém pede ALGUMA COISA), o 'para falar mais baixo' corresponder ao elemento proposicional 'ALGUMA COISA'. 
       Em termos de pronominalização, temos 'Alguém me pediu isso'. Admissível, ainda, é o teste da interrogação: 'O que é que alguém te pediu' > 'Para falar mais baixo'. Logo, 'para falar mais baixo' desempenha a função sintáctica de complemento directo da frase dada.
         Neste caso, o 'para' é uma conjunção completiva, a par de 'se' (muito frequente em frases com verbos interrogativos como núcleo do grupo verbal, ou associados ao domínio semântico do 'saber') e de 'que'.
         A este propósito, retomo uma pequena sistematização acerca das subordinadas completivas, que pode ser esclarecedora:

in CARDOSO, Ana M. et al. (2010) - Com Textos 10, Porto, Asa Editores
(clicar em cima da imagem para a visualizar em tamanho maior)

        Não sei se fui esclarecedor (cá está o 'se' completivo), mas admito que a aplicação dos testes resolva muitos casos que pareçam dúbios (e, para fechar em beleza, um 'que' completivo - o que se segue a 'admito', porque do último, depois de 'casos', a história é outra). Espero ter 'completado' bem a missão.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Existência e absurdo

        105 anos: em terras da Irlanda (Dublin) Samuel Beckett nascia.

      Nome para um romancista e dramaturgo irlandês, Beckett cedo se cruzou com as línguas e os estudos franceses e italianos; foi professor e conheceu James Joyce. Dir-se-ia que, por isto, o currículo já era significativo.
       Na escrita,e como poeta, publicou o monólogo dramático Whoroscope; foi ensaísta; assinou a autoria de More Pricks Than Kicks (1934), Murphy (1938), Molloy (1951), Malone Meurt (1951) e L'Innommable (1953), Watt (1953), ao nível da narrativa; En Attendant Godot (1952), Fin de Partie (1957), Krapp's Last Tapee (1959) e Oh Les Beaux Jours (1961), entre os textos dramáticos mais consagrados e que o tornaram num dos nomes de referência ao nível do teatro.
Quadro de Roger Cummiskey
Apenas as palavras quebram o silêncio, todos os outros sons cessaram. Se eu estivesse silencioso, não ouviria nada. Mas se eu me mantivesse silencioso, os outros sons recomeçariam, aqueles a que as palavras me tornaram surdo, ou que realmente cessaram. Mas estou silencioso, por vezes acontece, não, nunca, nem um segundo. Também choro sem interrupção. É um fluxo incessante de palavras e lágrimas. Sem pausa para reflexão. Mas falo mais baixo, cada ano um pouco mais baixo. Talvez. Também mais lentamente, cada ano um pouco mais lentamente. Talvez. É-me difícil avaliar. Se assim fosse, as pausas seriam mais longas, entre as palavras, as frases, as sílabas, as lágrimas, confundo-as, palavras e lágrimas, as minhas palavras são as minhas lágrimas, os meus olhos a minha boca. E eu deveria ouvir, em cada pequena pausa, se é o silêncio que eu digo quando digo que apenas as palavras o quebram. Mas nada disso, não é assim que acontece, é sempre o mesmo murmúrio, fluindo ininterruptamente, como uma única palavra infindável e, por isso, sem significado, porque é o fim que confere o significado às palavras.

Samuel Beckett, in Textos para Nada

      E, para fechar o currículo em beleza, surge o Prémio Nobel da Literatura em 1969.

      Um dia e um escritor para serem lembrados, pelo que a existência dá - na realização e no absurdo.

terça-feira, 12 de abril de 2011

Nomes e seus complementos

     A propósito da expansão do grupo nominal, regresso à reflexão sobre modificadores e complementos do nome.

    Q: Confrontando frases, surgiu-me uma dúvida que não tenho conseguido esclarecer sozinha:
     i) na frase 'A pesca baleeira tem vindo a aumentar', 'baleeira' é o complemento do nome "pesca" no grupo nominal 'a pesca baleeira';
     ii) na frase 'Adoro flores frescas e coloridas', 'frescas e coloridas' é considerado pelo DT como um modificador restritivo, o que eu entendo com facilidade.
    A questão é: por que motivo não é também 'baleeira' modificador restritivo na frase já referida? Isto, porque, a meu ver, 'baleeira' restringe a 'pesca', afunila o tipo de pesca, excluindo as pescas que não as da baleia. Ou melhor, se afirmarmos que a pesca tem vindo a aumentar, podemos estar a cometer uma imprecisão, se toda a pesca estiver a decrescer, salvo um tipo de pesca, a da baleia. Assim, parece-me que o GAdj (baleeira) restringe a ideia “alargada” de “pesca”, bem como acontece com 'frescas e coloridas', que restringe, afunila também a ideia de flores.

       R: Suponho que a dúvida se prenda mais com a colocação dos adjectivos (pós nominais) e a informação que comportam. Todavia, a classificação de complemento de nome, conforme a designação o aponta, prende-se com o núcleo do grupo nominal, isto é, os tipos de nome e os elementos por este requeridos na estrutura argumental.
        Ao focalizar-se o nome, concluir-se-á que este selecciona complementos (considerando a tipologia de nomes já aqui apontada) ou, então, é acompanhado por modificadores.
     No caso da primeira frase, aparece um grupo nominal, 'A pesca baleeira', cujo núcleo é um nome eventivo (decorrente de uma forma verbal -'pescar'-, por derivação não afixal, ou a tradicional derivação regressiva). Esta propriedade está implicada no verbo que deriva em nome, pois a estrutura argumental do verbo 'pescar' é transitiva [alguém PESCAR alguma coisa]. Assim, o nome derivado ('pesca') selecciona também um complemento assente no papel temático de agente ou de objecto.
     O mesmo não sucede com o nome 'flor(es)', uma vez que este último não pertence a nenhum dos tipos nominais associados a complementos; daí 'frescas e floridas' funcionar como modificador interno ao grupo nominal (na base da restrição, ou seja, 'Adoro apenas as flores frescas e coloridas'; as que não têm tais características não são adoradas).

    Mais do que a expansão, interessa ver o núcleo, a essencialidade. Esta é uma questão fundamental, lógica, para a classificação sintáctica de qualquer termo, nomeadamente dos grupos de palavras e dos elementos que o compõem.

domingo, 10 de abril de 2011

(Des)acordo... mas só na ortografia

      A passagem para novo (?) Acordo Ortográfico e a sua aplicação no ensino-aprendizagem da língua materna terá no próximo ano lectivo muito a dizer e a fazer...

     As relações da ortografia com outros domínios é uma questão que levantará muitas dúvidas. Na verdade, o futuro dirá até que ponto foi facilitada a aprendizagem da língua materna com a mensagem publicitada de que o modo como se fala passa a ter relações directas com o modo como se escreve. Nunca foi assim; não será assim.
    Assuma-se a convencionalidade da escrita. Outras relações podem tornar-se 'liaisons dangereuses'.

    Q: A palavra "anti-rugas", p.ex., que dizíamos derivada por prefixação, com o acordo ortográfico, fica "antirrugas", certo? Continuamos a referir o mesmo processo de formação? É que, se antes os alunos, não conhecendo a história da língua, já não sabiam o que eram palavras ou prefixos, agora ainda vai ser mais difícil, acho eu!

     R: É verdade que a perda de consciência das regularidades morfológicas, sintácticas e semânticas é um dado a considerar, enquanto factor da própria evolução da língua. Se assim não fosse, não haveria lugar à consideração de um conceito operacional como o da 'lexicalização', por exemplo.
      A forma 'antirrugas' é aquela para que o acordo aponta, havendo apenas a manutenção de hífen nos casos em que a base derivante inicia com 'h' (ex.: anti-higiénico) ou com a mesma vogal do prefixo (ex.: anti-ibérico). Trata-se de um exemplo que obedece ao princípio do ponto 2º da Base XVI:
________________________

BASE XVI: DO HÍFEN NAS FORMAÇÕES POR PREFIXAÇÃO, RECOMPOSIÇÃO E SUFIXAÇÃO
1Nas formações com prefixos (como, por exemplo: ante-, anti-, circum-, co-, contra-, entre-, extra-, hiper-, infra-, intra-, pós-, pré-, pró-, sobre-, sub-, super-, supra-, ultra-, etc.) e em formações por recomposição, isto é, com elementos não autónomos ou falsos prefixos, de origem grega e latina (tais como: aero-, agro-, arqui-, auto-, bio-, eletro-, geo-, hidro-, inter-, macro-, maxi-, micro-, mini-, multi-, neo-, pan-, pluri-, proto­, pseudo­, retro-, semi-, tele-, etc.), só se emprega o hífen nos seguintes casos:
a) Nas formações em que o segundo elemento começa por hanti-higiénico/anti-higiênico, circum-hospitalar, co-herdeiro, contra-harmónico/contra-harmônico, extra-humano, pré-história, sub-hepático, super-homem, ultra-hiperbólico; arqui­hipérbole, eletro-higrómetro, geo-história, neo-helénico/neo-helênico, pan-helenismo, semi-hospitalar.
b) Nas formações em que o prefixo ou pseudoprefixo termina na mesma vogal com que se inicia o segundo elemento: anti-ibérico, contra-almirante, infra-axilar, supra-auricular; arqui-irmandade, auto-observação,eletro-ótica, micro-onda, semi-interno.

2Não se emprega, pois, o hífen:
a) Nas formações em que o prefixo ou falso prefixo termina em vogal e o segundo elemento começa por r ou s, devendo estas consoantes duplicar-se, prática aliás já generalizada em palavras deste tipo pertencentes aos domínios científico e técnico. Assim: antirreligioso, antissemita, contrarregra, contrassenha, cosseno, extrarregular, infrassom, minissaia, tal comobiorritmo, biossatélite, eletrossiderurgia, microssistema, microrradiografia.
b) Nas formações em que o prefixo ou pseudoprefixo termina em vogal e o segundo elemento começa por vogal diferente, prática esta em geral já adotada também para os termos técnicos e científicos. Assim: antiaéreo, coeducaçao, extraescolar, aeroespacial, autoestrada, autoaprendizagem, agroindustrial, hidroelétrico, plurianual
____________________________

     No que toca ao processo de formação da palavra, naturalmente que se continuará a dizer que 'antirrugas' é uma palavra derivada por prefixação. 
    A questão da convenção escrita é distinta da que diz respeito ao domínio da formação de palavras. É verdade que a junção gráfica prefixo-base pode comprometer a consciência sincrónica do termo, mas essa questão já se levantava antes do acordo, com situações análogas. Entre falantes contemporâneos, muitos já não reconhecerão intuitivamente a formação de certas palavras, para não dizer que se tiravam conclusões erradas a partir do que era intuitivo ou imediatamente observável (chegou-se, por exemplo, a diferenciar processos morfológicos pela presença / ausência de hífen - lembro-me do que diziam certas gramática e manuais relativamente ao que era justaposição / aglutinação) Ouvia-se dizer que 'contra-informar' era uma palavra composta por justaposição (e não o era); que 'girassol' era aglutinada, e também não o era. 
    Enfim, aprendizagens que alguns conseguiram reciclar e reorientar; outros não, porque se mantiveram agarrados ao que aprenderam (mal) e repetiram por simplesmente ver reproduzido em materiais de qualidade questionável. 
     Em síntese: os receios adiantados não são nada que já não tivesse acontecido antes. Quem sabe que 'anti-' é um prefixo, conforme o próprio acordo o diz na Base XVI, sabe também que a palavra que o contiver terá de ser derivada. Estar junto à base é convenção ortográfica, tal como o é a duplicação de 'r', para a manutenção do som [R] com o qual iniciam palavras como 'rugas' (ou qualquer outra assim iniciada).
     Assim, a pergunta deve ser reconduzida para a necessidade de formação dos que vão ensinar com a língua materna, em geral, e de Língua Portuguesa / Português, em particular (seja na fase inicial seja na contínua, para não dizer ao longo da vida). Não se passou assim connosco? Pois há-de acontecer com os vindouros. Que procurem bem, que sejam bem formados e que descubram o que deve e como deve ser ensinado da melhor forma. Os que aprendem irão confrontar-se com dúvidas, irão perguntar e ficarão ou não satisfeitos com a resposta face às necessidades que vão ser criadas

    ... mas não devemos chamar para nós, professores de língua materna, mais do que deve ser feito. O problema é bem mais transversal. Por outro lado, em termos da nossa especificidade, há que reconhecer que o domínio da ortografia é um; outros domínios (como o morfológico) são outros domínios. E a misturar muito, o bolo vai sair torto, por certo.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Como os tempos se repetem... se é que mudaram!

      No reencontro com algumas páginas desse grande romance intitulado Os Maias, de Eça de Queirós...

     Já me perguntei se não estarei dominado pelo romântico mito do eterno retorno. Pode ser trágico o retorno do passado para um presente que indicia retrocessos na sua evolução (por mais ambíguo ou contraditório que isto possa parecer) ou no seu simples fluir - leia-se Frei Luís de Sousa, de Garrett, para assim se concluir.
      E que dizer de umas simples linhas como estas, no capítulo VI do romance queirosiano?

   «Ega ia fulminá-lo. Mas, vendo que o Cohen dava um sorriso enfastiado e superior a estas controvérsias de literaturas, calou-se; ocupou-se só dele, quis saber que tal ele achava aquele St. Emilion; e, quando o viu confortavelmente servido de sole normandelançou com grande alarde de interesse esta pergunta:
    – Então, Cohen, diga-nos você, conte-nos cá... O empréstimo faz-se ou não se faz?
    E acirrou a curiosidade, dizendo para os lados que aquela questão do empréstimo era grave. Uma operação tremenda, um verdadeiro episódio histórico!...
   O Cohen colocou uma pitada de sal à beira do prato, e respondeu, com autoridade, que o empréstimo tinha de se realizar «absolutamente». Os empréstimos em Portugal constituíam hoje uma das fontes de receita, tão regular, tão indispensável, tão sabida como o imposto. A única ocupação mesmo dos ministérios era esta – «cobrar o imposto» e «fazer o empréstimo». E assim se havia de continuar...
   Carlos não entendia de finanças: mas parecia-lhe que, desse modo, o país ia alegremente e lindamente para a bancarrota.
     – Num galopezinho muito seguro e muito a direito – disse o Cohen, sorrindo. – Ah, sobre isso, ninguém tem ilusões, meu caro senhor. Nem os próprios ministros da Fazenda!... A bancarrota é inevitável: é como quem faz uma soma...
     Ega mostrou-se impressionado. Olha que brincadeira, hem! E todos escutavam o Cohen. Ega, depois de lhe encher o cálice de novo, fincara os cotovelos na mesa para lhe beber melhor as palavras.
      – A bancarrota é tão certa, as coisas estão tão dispostas para ela – continuava o Cohen – que seria mesmo fácil a qualquer, em dois ou três anos, fazer falir o país...»


    Qualquer semelhança com a realidade não é pura coincidência.
    Diga-se que a literatura é ficção, sempre foi e será; mas quando o tempo alternativo se conjuga tão bem com o real não deixa de ser uma verdade a (re)viver, seja no momento da produção (marcado por um paradigma cientificista e positivista) seja no da leitura e da contemporaneidade (a que o futuro e a História virão a designar com um '-ismo' a estudar). Disto também se fazem as grandes obras.

   Entre máscaras, desencantos, desenganos e desilusões, lá vamos a correr (para não desistir) à procura de um novo "americano", esquecendo de novo o "paiozinho".

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Estão literalmente a dar-me música... boa e a bem!

     Dedicaram-me a música. Só uma amiga o podia fazer, por saber o que sinto agora.

    Afastado, por força e por exaustão, do que mais gosto de fazer (ensinar), este estado só tem de bom saber que há muita gente que, afinal, gosta de mim. Não que o não soubesse já; mas a condição de fragilidade é tão grande que, nestas alturas, qualquer ser humano procura força, energia nos postais  endereçados, nas fatias de bolo oferecidas, nas amêndoas que sempre adoçam as relações, nas palavras e nos actos revelados, na bonança e na primavera soalheira feitas desejos, nos afectos e nas saudades sentidos.
    E, além disto tudo, também me dão música... literalmente... tão apropriada ao que vivo. Parece que foi feita para mim (não fosse haver muitos que passaram, passam e passarão pelo mesmo).

      
       Hoje ouvi muitas vezes esta canção. Se já o tinha feito, hoje vivia-a com outro(s) sentido(s).

DÁ-ME UM ABRAÇO

Dá-me um abraço que seja forte
E me conforte a cada canto
Não digas nada que nada é tanto
E eu não me importo

Dá-me um abraço, fica por perto
Neste aperto, tão pouco espaço
Não quero mais nada, só o silêncio
Do teu abraço

Já me perdi, sem rumo certo,
Já me venci pelo cansaço
E estando longe
Estive tão perto
Do teu abraço

Dá-me um abraço, que me desperte
E me aperte, sem me apertar
Que eu já estou perto, abre os teus braços...
Quando eu chegar

É nesse abraço que eu descanso
Esse espaço que me sossega
E quando possas dá-me outro abraço
Só um não chega

     Desta forma, e graças a um gesto e preocupação de amiga (a quem estarei sempre especialmente reconhecido pelas partilhas já vividas), aproveito para agradecer a todos os que se têm preocupado comigo, manifestando os votos de melhoras. Hei-de, tenho que dar a volta; mas só com e no tempo (esse meu terrível gestor) em que eu possa superar as ondas de fragilidade que me cobriram e contra as quais me sinto, como sobrevivente em pequeno bote, a remar, sem chegar a ver (ainda) a linha do horizonte.

    Porque há abraços (para dar e receber) e porque há sempre aqueles que comigo estão (nos bons e maus momentos), faz sentido manter-me a remar, ainda que em ritmo lento.