Chega a vez da Pragmática e da Linguística textual (porque mais vale tarde do que nunca).
Q: Os deícticos estão sempre relacionados com o tempo e o espaço do 'eu'. Por exemplo, um advérbio de lugar como 'aqui' tem a ver com o contexto. É disso que se trata, de ler em contexto?
R: Trata-se de ler em contexto e não só. Também de construir discurso em contexto e de situar esse discurso num contexto específico de produção, evidenciando as características / condições / coordenadas (pessoais, temporais e espaciais) com ela relacionadas.
Os deícticos são marcas demonstrativas da produção de um discurso, apontando para a existência de elementos relacionados com esse mesmo contexto de produção (intervenientes, tempo e lugar); estes aparecem configurados no discurso, no sentido de mostrar, evidenciar tudo o que diga respeito à produção deste último, considerando-o como produto de um acto enunciativo ou um acto de fala de um ‘eu’, orientado para um ‘tu’, num determinado ‘aqui’ e ‘agora’. Assim, os deícticos são sinais que mostram aquele que produz o discurso (o ‘eu’), aquele a quem ele é dirigido (o ‘tu’), o espaço a que se refere esse contexto de produção (o ‘aqui’ vs o ‘lá’) bem como o tempo (o ‘agora’ vs o ‘então’).
Por exemplo, em “Aqui faz-se tudo o que se quer”, o advérbio ‘aqui’ marca uma referência espacial deíctica de produção de um discurso, associada a um ‘eu’ enunciador que não aparece explicitado, mas subentendido pelo ‘aqui’; em “Ontem houve teste”, ‘Ontem’ marca uma referência temporal deíctica de anterioridade relativamente a um ‘agora’ ou um ‘hoje’ associado à enunciação (da responsabilidade de um ‘eu’). Logo, nem todas as condições deícticas de produção de discurso precisam de estar explicitadas; podem ser construídas a partir de marcas de referência concorrentes configuradas no discurso.
Será, assim, desejável trabalhar os deícticos, numa primeira fase, com textos caracterizados pela interacção ‘eu-tu’, pela interlocução e pela dependência directa e imediata face a um contexto de comunicação directa (diálogos, cartas, diários, textos dramáticos, textos publicitários), como forma de passar claramente a ideia de que os primeiros se referenciam em função de uma realidade extralinguística de produção discursiva reflectida no próprio discurso. Há muitas marcas a considerar neste campo: pronomes pessoais, determinantes e pronomes demonstrativos, possessivos, advérbios de lugar e tempo, tempos verbais, lexemas como ‘vir/ir’, ‘chegar/partir’ (pela orientação face à proximidade ou afastamento do ‘eu’/’tu’), ‘eis’ (advérbio mostrativo), entre outras.
É preciso ter algum cuidado no que à distinção de deíctico e anafórico diz respeito, até porque, nalguns casos, as marcas parecem ser as mesmas e nalguns textos até se sobrepõem. Por norma, enquanto os deícticos são marcas que remetem para as condições de produção do discurso (ditas extralinguísticas, exofóricas: o contexto situacional, temporal e pessoal relacionado com a produção do discurso), os anafóricos remetem para o contexto presente no interior do próprio texto / discurso (dito intralinguístico, endofórico), explorando situações de retoma textual.
Um exemplo desta proximidade dos deícticos / anafóricos é o seguinte: no poema “Isto” de Pessoa, este demonstrativo assume-se como deíctico (apresenta, desde logo, uma marca de referência associada à produção de um discurso previsivelmente relacionado com um ‘eu’ - o sujeito poético); num texto narrativo é possível ver o ‘isto’ como um anafórico quando, por exemplo, se possa ler o seguinte: “A rainha chorava a morte do seu rei, num pesar que a consumia e a impedia também de viver. Isto entristecia cada vez mais os súbditos do reino”; para complicar a questão, o “Isto” de Pessoa, enquanto título que é, entende-se também como elemento catafórico (pela disposição gráfica no texto, é um segmento que abre, antecipa a referência / o eixo temático que vai ser explicitado na composição poética).
Se o Homem é complexo (e, por vezes, complicado), se nem tudo na vida é preto ou branco (há cinzentos e para várias tonalidades), por que motivo há-de a língua ser o contrário?
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