quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Jogos com a descoberta de um livro

    Foram hoje abertos os Jogos Paralímpicos - Londres 2012. 

    Porque há quem faça das fragilidades força, cabe reconhecer que há filhos de um Deus que não é  menor e, portanto, nas suas dificuldades, dão o exemplo de que os limites existem para serem superados. Daí o símbolo da bandeira paralimpíada, o 'Agito' - 'eu movo', na língua latina. 
    Na cerimónia de apresentação dos jogos deste ano, o núcleo do espetáculo apoiou-se na apresentação de um livro: o Admirável Mundo Novo (Brave New World, segundo o título original inglês), da autoria de Aldous Huxley. 
  Inspirado numa réplica de Miranda na obra shakespeariana The Tempest, o título desta narrativa publicada em 1932 tem mais de atrativo no que sugere do que na história dá a ler: propõe a hipótese de um futuro no qual as pessoas se encontram genética e psicologicamente predeterminadas, conformadas a viverem harmoniosamente segundo leis e regras sociais de uma sociedade estratificada, organizada por castas. 
    Bernard Marx é o protagonista, descontente consigo mesmo por, em certa medida, se apresentar como fisicamente distinto dos outros elementos da sua casta.
    Nessa medida, numa espécie de reserva histórica, onde algumas pessoas continuam a viver conformes a valores e regras do passado, Bernard encontra um jovem que irá apresentar à sociedade asséptica do seu tempo, como um exemplo de outra forma de ser e de viver.

    "... chorava por estar sozinho, por ter sido escorraçado, sozinho, para o mundo sepulcral dos rochedos e do luar. Sentou-se à beira do precipício. A Lua estava atrás dele; mergulhou os olhos na sombra negra da mesa, na sombra negra da morte. Tinha só que dar um passo, um pequeno salto... Estendeu a mão direita ao luar. Do golpe do pulso ainda corria sangue. Com intervalos de alguns segundos, caía uma gota, sombria, quase incolor na luz morta. Uma gota, uma gota, uma gota... «Amanhã, e amanhã, e ainda amanhã ...
      Tinha descoberto o Tempo, a Morte e Deus. 
      - Só, sempre só - dizia o rapaz. Estas palavras acordaram um eco doloroso no espírito de Bernard. Só, só... 
    Eu também - disse ele num sopro de confidência. - Terrivelmente só. 
     - Você também? - John espantou-se. 
     - Pensei que Além ... Quer dizer, Linda,dizia sempre que nunca ninguém estava só. Bernard corou, contrafeito. 
     - É preciso esclarecer - continuou, gaguejando e desviando os olhos - que devo ser um pouco diferente da maioria das pessoas. Se acontece às pessoas serem diferentes desde a decantação ... 
     - Sim, é isso, precisamente. - O rapaz aprovou com um sinal de cabeça. - Ser diferente condena a uma fatal solidão. E a um tratamento abominável. Acredita que eles me mantiveram absolutamente afastado de tudo? Quando os outros garotos iam passar a noite nas montanhas - sabe quando é, quando se deve ver em sonho qual é o nosso animal sagrado -, não consentiram que eu fosse com os outros. Não quiseram confiar-me nenhum dos segredos. O que não impediu que eu o fizesse sozinho - acrescentou. 
     - Estive sem comer cinco dias, e depois fui uma noite sozinho para as montanhas, além. - E indicou-as com o dedo. 
     Bernard teve um sorriso protector. 
     - E você conseguiu ver qualquer coisa em sonho? - perguntou. 
     O outro fez um sinal afirmativo com a cabeça. 
  - Mas não posso dizer-lho. - Calou-se uns momentos, para acrescentar em voz baixa: - Um dia fiz uma coisa que os outros nunca tinham feito: fiquei de pé contra um rochedo, num meio-dia de Verão, com os braços estendidos, como Jesus crucificado. 
     - Mas porquê? 
  - Porque queria saber o que representa ser crucificado. Suspenso ali, em pleno sol ... 

     Não imaginando as implicações, os problemas e conflitos decorrentes da sua decisão, a personagem Bernard Marx acaba por, em cumplicidade com o autor, fazer de Admirável Mundo Novo um aviso, uma chamada de atenção aos totalitarismos, um apelo à consciência dos homens face aos perigos que ameaçam a humanidade, caso não haja resistência ao sedutor canto da sereia que anuncia (falsas) noções de progresso.

      Mensagem relevante para qualquer sociedade que, nas suas diferenças, tenda a tratar todos por igual, sem reconhecer os limites de cada um ou fazendo destes um qualquer padrão de comportamento (a que nem todos podem chegar). Que os nossos atletas paralímpicos revelem como são especialmente diferentes, por mais que frequentemente se sintam "suspensos ali, em pleno sol".

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Na condição das estrelas

      Seja porque estão tristes seja por ficarem da cor do céu, a condição das estrelas é sempre superior.

     Isto é o mínimo que se pode dizer de um grupo famoso (The Corrs) que partilha o palco com o vocalista de um outro: Bono Vox, dos U2.
     O sucesso impõe-se, na certeza de que os irlandeses têm grandes representantes na música do mundo.



When The Stars Go Blue (The Corrs featuring Bono)

Dancin' where the stars go blue
Dancin' where the evening fell
Dancin' in your wooden shoes
In a wedding gown

Dancin' out on 7th street
Dancin' through the underground
Dancin' little marionette
Are you happy now?

Where do you go when you're lonely
Where do you go when you're blue
Where do you go when you're lonely
I'll follow you
When the stars go blue, blue
When the stars go blue, blue
When the stars go blue, blue
When the stars go blue

Laughing with your pretty mouth
Laughing with your broken eyes
Laughing with your lover's tongue
In a lullaby

Where do you go when you're lonely
Where do you go when you're blue
Where do you go when you're lonely
I'll follow you
When the stars go blue, blue
When the stars go blue, blue
When the stars, when the stars go blue, blue
When the stars go blue
When the stars go blue, blue, blue
Stars go blue
When the stars go blue

Where do you go when you're lonely
Where do you go when you're blue, yeah
Where do you go when you're lonely
I'll follow you, I'll follow you, I'll follow you
I'll follow you, I'll follow you, yeah
Where do you go, yeah
Where do you go, Where do you go



   "Where do you go? / I will follow you": Felicidade a destas estrelas, que, por mais tristes que sejam, brilham no caminho de alguém que tem outro alguém que o siga. Na terra, a condição é outra, mesmo que nela se veja o cair das estrelas.

     Dançando, rindo, cantando... para seus males ir espantando.

domingo, 26 de agosto de 2012

Areia feita mar

      Na partilha de mais uma foto, faltava o texto feito letra.

      Pelo que me era dado a observar, o olhar do geólogo captava, no areal, um ondeado trazido pelo vento, com motivo assumido para uma instrutiva aula acerca das nortadas.
      Na minha mira, estava algo mais do que a geologia deixava ver.
      
Foto de Nuno Miguel Pires Correia
                              
        Surgiram, então, os versos:

                              AREAL AO NORTE

                              As ondas deixaram de ser líquidas,
                              perderam também a cor do céu;
                              na aragem e pelo vento varridas,
                             têm nos grãos sinais de escarcéu.


         Imagem e texto, figura e legenda...
     
    Foi mais uma tentativa para que geologia rimasse com poesia, na ampulheta desta vida cronometrada por grãos de areia moldados por vento e mar.


sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Assim não chega!

     Partilharam comigo uma imagem (das muitas que proliferam pelo Facebook), porque, dizem, ela faz lembrar o que ando sempre a referir nas aulas.

    Não vejo a razão para tal associação.
    Não concordo com o conteúdo da figura e tenho de o corrigir:


    Os acrescentos e sinais a vermelho são meus, a bem da verdade e da correção. Desde que haja um encaixe entre o sujeito e o predicado, estes últimos podem ser separados por vírgula - mais do que uma, naturalmente:

   i) As pessoas da rua, em período de férias, caminham lentamente.
   ii) O meu irmão mais velho, o José, vai comprar um carro.
   iii) O parto da minha vizinha, que aconteceu ontem, foi bem sucedido.
   iv) O meu maior sonho, ainda por realizar, é viajar para a Europa.

    Há imagens que até podiam fazer um figurão. Mas, assim, não se vai longe, não.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Para cada passo à frente (também) há dois ou mais atrás

    Em pleno domingo, conforme o previsto lá para as terras da Senhora da Agonia, lá se cumpriu o evento de uma tourada anunciada.

    A polémica impôs-se ao longo da semana; houve a tourada em praça e arena montadas em terreno particular (por mais que este faça parte de uma terra que tinha decidido afastar-se dessas práticas) e a agitação entre os partidários da tauromaquia (por eles encarada como arte e cultura) mais os que nela veem uma afronta direta aos direitos dos animais (sem arte, sem cultura; só tortura).
      Lembro-me sempre destes parágrafos de Miguel Torga, no conto "Miura" de Bichos (1940), quando o tema se impõe:

      "Estava, pois, encurralado, impedido de dar um passo, à espera de que lhe chegasse a vez! Um ser livre e natural, um toiro nado e criado na lezíria alentejana, de gaiola como um passarinho, condenado a divertir a multidão!"
...

    "Com ar de quem joga a vida, o manequim de lantejoulas caminhava sempre (...).
       Infelizmente, o fantasma, que aparecia e desaparecia no mesmo instante, escondera-se covardemente de novo por detrás da mancha atordoadora.(...)
       Mais palmas ao dançarino. (...)
       O espectro doirado lá estava sempre."
...



      "Quando? Quando chegaria o fim de semelhante tormento?
  Subitamente, o adversário estendeu-lhe diante dos olhos congestionados o brilho frio dum estoque.
  Quê?! Pois poderia morrer ali, no próprio sítio da sua humilhação?! Os homens tinham dessas generosidades?!
       Calada, a lâmina oferecia-se inteira.
       Calmamente, num domínio perfeito de si, Miura fitou-a bem. Depois, numa arremetida que parecia ainda de luta e era de submissão, entregou o pescoço vencido ao alívio daquele gume."
   
    Pior do que isto só a RTP1, quando passa largas horas, em serviço de canal público, a dar conta de espetáculos de "cor, brilhantismo, emoção, lide, força e pega" para o comum dos telespectadores que não deixa de assistir a jogos sangrentos entre vários animais, palmas para estocadas, "urras e vivas" para heróis que recebem flores pelas lutas que desencadeiam contra toiros instigados aos ferros tão desnecessariamente.

     Definitivamente, há espetáculos que deviam estar limitados a quem os aprecia por qualquer razão.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Religião tão natural...

     Em tempo de feriado que está para deixar de o ser (e poucos o notarão, por certo), recordo-me de uma escultura que fotografei há pouco tempo.

     Em plena Feira Medieval de Santa Maria, visitei o Museu-Convento dos Lóios - um espaço que exibe uma sala de pinturas de António Joaquim (feirense que doou à localidade alguma da sua obra nela inspirada), uma exposição sobre a arqueologia mais as artes e os ofícios locais, além de uma mostra com algumas informações do tempo e do rei a que a feira foi dedicada este ano (D. Sancho I).
    Num dos corredores, há um pequeno espaço destinado ao culto religioso. Lá figura uma pequena escultura, com a seguinte legenda:

"O divino feminino foi sempre a imagem sagrada associada à natureza, sinónimo de fertilidade, sabedoria, harmonia e beleza. Com o Cristianismo surge Maria, Mãe de Deus e dos homens, revelada como Imaculada Conceição, concebida em pureza por Sua Mãe Ana e sem mancha de pecado original."

      A imagem apresentada é a de Nossa Senhora, amparando Jesus, à esquerda, tendo Santa Ana, à direita, segurando os dons naturais dos frutos e do pão, alimento para o Homem no que este colhe da Natureza. Subsistem, no registo religioso cristão, os tópicos originais do sagrado feminino - o poder de produzir vida, o alicerce das religiões de outrora, pagãs, assentes num panteísmo que vê na Natureza e no feminino formas de expressão, simbologias (re)construídas e/ou apagadas com o tempo e pelas ideologias dominantes. Em todas, a tónica do feminino impõe-se, por contraposição à figura masculina que o imperador romano Constantino e os homens da Igreja Católica Cristã souberam, por razões de poder, sobrepor a expressões religiosas pagãs anteriores, cujos códigos ainda sobrevivem numa dimensão alegórica e metafórica que desafiam o Homem à interpretação e à (re)descoberta do que lhe é mais natural.
     A religião maior, a do Homem com a Natureza, a do respeito que ele mantém com a Terra - o lugar em que vive, e do qual deve cuidar -, por tão próxima que é, parece ser também progressivamente relativizada.
      Que dizer de uma data, de um dia, de um número a pretexto de, sabe-se lá, que razões económicas?
    
      Em dia da Assunção de Nossa Senhora (este ano ainda feriado, dedicado à condição divina da mãe de Jesus, à hora da morte consagrada e ressuscitada, no corpo e no espírito, para sua ascensão celestial) fica o apontamento para a perda de um direito humano; para a relativização a que é votada a qualidade de um divino feminino que, por certo, terá formas de expressão substantivas para nenhum governo poder minimizar.
      

Por três vezes, a mesma canção.

    Diz-se que não há duas sem três. Assim sucedeu com uma música ouvida na rádio (por três vezes, a mesma, num curto intervalo de tempo).

      Em pleno verão, o dia revelou-se tempestuoso, tanto no vento como na chuva.
    Por esta última, que regou o dia, veio a propósito a ideia de como no quente verão persiste o chuvoso inverno. Daí que nada melhor do que "set fire to the rain" (de Adele) - assim o ouvi por três vezes na rádio.

Concerto ao vivo no Royal Albert Hall, 2011

         Set Fire To The Rain

I let it fall, my heart,
And as it fell, you rose to claim it
It was dark and I was over
Until you kissed my lips and you saved me

My hands, they were strong
But my knees were far too weak
To stand in your arms
Without falling to your feet

But there's a side, to you, that I never knew, never knew
All the things you'd say, they were never true, never true
And the games you'd play, you would always win, always win

But I set fire to the rain
Watched it pour as I touched your face
Well, it burned while I cried
'Cause I heard it screaming out your name, your name!

When I lay with you
I could stay there, close my eyes
Feel you here forever
You and me together, nothing is better!

Cause there's a side, to you, that I never knew, never knew
All the things you'd say, they were never true, never true
And the games you'd play, you would always win, always win

But I set fire to the rain
Watched it pour as I touched your face
Well, it burned while I cried
'Cause I heard it screaming out your name, your name!

I set fire to the rain
And I threw us into the flames
Well, it felt something died
Cause I knew do that was the last time, the last time!

Sometimes I wake up by the door
That heart you caught must be waiting for ya…
Even now when we're already over
I can't help myself from looking for ya

I set fire to the rain
Watched it pour as I touched your face
Well, it burned while I cried
'Cause I heard it screaming out your name, your name!

I set fire to the rain
And I threw us into the flames
Well, it felt something died,
'Cause I knew do that was the last time, the last time!

Oh oh oh oh oh…

Let it burn…


     A força da composição, a potência da voz e a vibração orquestral não me cansam. Ouço-as, repito-as, vivo-as como se fossem o universo que me serve, no contínuo apagar de um calor que não tem estação.

     Caso para dizer que a canção serve o dia 'and it fits my way of living'. 


terça-feira, 14 de agosto de 2012

Perguntas... para quê?

    Cá está uma pergunta (na forma) que sugere mais do que as palavras e a entoação dizem. Vale mais pela asserção que dela deriva.

    Muitos são os casos na língua que estão bem além do que a forma interrogativa possa imediatamente significar. Daí a velhinha pergunta "para que servem as interrogações?" ter muito que se lhe diga. A resposta "para fazer perguntas" é tão redutora quanto aquelas serem utilizadas para fazer pedidos, avisar, dar conselhos, atenuar as ordens, marcar posições. Entre o diretamente formulado e o indiretamente proposto são muitos os cenários, alguns dos quais dão lugar a atos e não tanto a discursos.
    Uma foto avança com muitas interrogações:


    À entrada de uma igreja, as questões não servem para confirmar nada. A forma de questões totais (com resposta admissível do tipo Sim / Não) associa-se a um conjunto de avisos / conselhos para quem pretenda assistir a um serviço religioso.
    Neste sentido, o ato de fala diretivo (da interrogação) corresponde a um outro ato de fala diretivo, mas indireto, cuja força ilocutória sai atenuada, comparativamente aos enunciados correspondentes como:
      i) Não entre, se deixou o seu carro mal estacionado / Estacione bem o seu carro antes de entrar;
      ii) Desligue o telemóvel antes de entrar na igreja / Não esteja com o telemóvel ligado dentro da igreja;
   iii) Não entre, se não estiver convenientemente vestido / Entre apenas no caso de estar vestido convenientemente.

     É por perguntas destas e doutras que, quando entro num quiosque e pergunto se tem o Público, não estou à espera que me respondam (com ou sem sorriso) "Tenho". A minha pergunta é desejo de compra, que deve dar lugar à apresentação do jornal para venda. Prova de que, na língua, muito facilmente se passa das palavras (ditas ou escritas) aos atos (de fala).

domingo, 12 de agosto de 2012

Final dos jogos olímpicos

     Londres 2012 deu lugar a jogos em Português.

  Esta começa por ser a grande diferença, programada para 2016. Quatro anos nos distanciam da sonoridade lusófona que sucede ao poder anglófono afirmado nos últimos quinze dias.
   Depois da cerimónia de abertura 'so british... too british', a de encerramento não foi menor, pelo que musicalmente as terras de sua majestade têm conseguido dar ao mundo.
   Dos mais clássicos aos mais contemporâneos, os cantores e os grupos musicais desfilaram em parada contínua.Tudo muito "british", só contrariado, no final, por "Aquele abraço" (composição e letra de Gilberto Gil) enérgico, sem preconceitos, aberto ao mundo e à sua multiculturalidade. Só por este sinal, está ganha a posta. Como se, da insularidade britânica, o 'go southwest' constituísse a descoberta de um novo mundo. Sê-lo-á, por certo, para os jogos olímpicos, que, pela primeira vez, são recebidos no continente sul-americano.


    E no continente, em extensão, americano, impõe-se o Português enquanto língua.

   Uma oportunidade para a lusofonia se abrir ao mundo, acolhê-lo, de modo a tê-lo "mais rápido, mais alto e mais forte". Assim o foi na História. Que o seja no Futuro!
     

sábado, 11 de agosto de 2012

Economia na escrita

    É certo que o tempo era outro, o mesmo sucedendo com a escrita.

     A economia é um princípio que também afeta a linguagem, mas, daí a tanto, é bom que haja contenção. 
   Assim se lia numa tenda de vendas e serviços, em plena feira medieval de Santa Maria da Feira, a troco da compra de um escudo (com brasão) e de uma espada: *GRATIS.
  Já lá diz a regra ortográfica: as palavras graves (ou paroxítonas) com a aberto, e ou o semiabertos, i ou u na sílaba tónica levam acento gráfico agudo sempre que terminam com 'i' ou 'u', seguidos ou não de 's'.
    A regra é antiga, apenas com alguma variação para o Português do Brasil, dada a sonoridade de algumas vogais que, na fala dessa variedade, se apresentam como semifechadas (logo, utilizando, na escrita, um acento circunflexo - ex.: 'tênis', 'ônus', 'bônus').
     E quanto a isto, não há acordo ortográfico possível (para bem de ambas as variedades linguísticas -  a continental europeia e a  não europeia).
    
   Que seriam do bónus, da íris, do júri, do lápis, da miosótis, do ónus e do ténis sem o acento? Simples: um exercício de curiosidade: ler essas palavras todas como se fossem palavras agudas. No mínimo, estranho! Ora, da mesma forma, há que ler a última palavra da foto. 

No castelo de D. Dulce, na Feira

     Regressar ao passado (bom!) para um melhor presente (maravilha!), que de crítico já tem que chega.

     Em terras de Santa Maria (da Feira) realiza-se mais uma viagem medieval - a décima sexta edição.
   Depois da vivência do ano passado, localizada no período histórico do 'Conquistador' D. Afonso Henriques (para alguns revisto como o "Fundador"), chega este ano, no período entre 2 e12 de Agosto, mais uma feira / viagem medieval.


   Na sucessão do pai surge o filho, D. Sancho I, o Povoador - à sombra do progenitor -, dando-lhe continuidade na ação de conquista e, depois, na de organização e povoamento. Assim cresceu o território e assim se estabilizou o reino, em pleno século XII.


     Entre tendas, animação, comes e bebes, a cidade vive a invasão dos turistas nacionais e internacionais. Revê-se o castelo altaneiro, encontram-se caras conhecidas, fazem-se algumas compras, come-se e bebe-se numa vivência consciente de que há passado para recordar e desejar.

    Espera-se, assim, pelo próximo ano, com D. Afonso II (O Gordo, em pleno século XIII) a reinar ou, em tempos de República, a presidir ao evento.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Dos canoístas e da modalidade hoje tão falada

    Em dia de medalha de prata (a saber a ouro) nos jogos olímpicos, com Fernando Pimenta e Emanuel Silva a sagrarem-se vice-campeões olímpicos em canoagem, há quem não saiba referir-se à modalidade.

    Por influência certa do termo 'canoísta', hoje mais do que uma locutora, em mais do que um canal televisivo, referiu-se ao feito do '*canoísmo' português.
      A associação das olimpíadas à cultura grega não tem correspondência com a origem do afixo para a designação da modalidade em causa.
      A partir de 'canoa' forma-se 'canoagem', pelo acrescento do afixo (sufixo) '-agem' - um elemento morfológico com proveniência múltipla:

i) do francês '-age', que permite a formação de nomes ora deverbais ora denominais, ou da influência provençal '-aitge', de base masculina, que se constituiu como empréstimo pelo século XIV e, por vezes, se associou ao elemento latino '-atĭcu-' - daí palavras como 'bagagem', 'barragem', 'carruagem', 'coragem', 'homenagem', 'hospedagem', 'linguagem', 'linhagem', 'mensagem', 'paisagem', 'passagem', 'personagem', 'plumagem', 'portagem', 'selvagem', 'vantagem', 'viagem'; 
ii) da terminação casual genitiva do latim '-go, ĭnis' presente em nomes como imagem (< imāgo, ĭnis), voragem (< vorāgo, ĭnis), cartilagem (< cartilāgo, ĭnis); das terminações conexas de nomes obtidos a partir da conversão de adjetivos construídos no latim com '-atĭcu-' (selvagem < selvatĭcu- < selva), os quais resultaram também, em via erudita, em algumas palavras com a terminação '-ádego', '-ádigo' e '-ágio'.
iii) de construções associadas a empréstimos de outras línguas, por sua vez já marcas pela recursividade de elementos e/ou pela combinação de processos morfológicos: percentagem (< provém do inglês 'percentage', por sua vez, obtido da expressão latina '[per][centum]' acrescida do afixo [agem].

     A produtividade do sufixo em questão revê-se na recorrente utilização no âmbito da formação de nomes:
. pela vulgarização do sufixo na construção de deverbais (decorrentes de verbos com a vogal temática '-a-', isto é, da primeira conjugação): abordagem (< abordar); açambarcagem (< açambarcar), acoplagem (< acoplar), adoçagem (< adoçar), aparelhagem (< aparelhar), aterragem (< aterrar), cobreagem (< [a]cobrear), estiagem (< estiar), estocagem (< estocar), galinhagem (< galinhar), gatunagem (< gatunar), lavagem (< lavar), matutagem (< matutar), postagem (< postar), secagem (< secar), soldagem (< soldar), vadiagem (< vadiar), zincagem (< zincar) - exemplos que traduzem o significado de ação, processo, estado, resultado da situação relacionada com o verbo de base; 
pela aglutinação do afixo na construção de nomes deverbais associados à segunda conjugação verbal: moagem (< moer);
. pela derivação associada a deadjetivais (particularmente na variedade do Português do Brasil): sacanagem (< sacana), bobagem (< bobo);
. pelo recurso na formação de vários denominais e/ou depredicativos, frequentemente com um sentido
       a)  coletivo, com ou sem registo pejorativo: costumagem / libertinagem (< costume / libertino), folhagem (< folha), gatunagem (< gatuno), malandragem (< malandro), pelagem (< pelo), politicagem (< política), ramagem (< ramo), utensilagem (< utensílio), vadiagem (< vadio), vitragem (< vitral);
       b) intensificador: voltagem (< volt);
       c) locativo: pastagem (< pasto).

       A canoagem é, portanto, designação formada segundo a produtividade do afixo'-agem' na formação de nomes denominais. Não é o caso de '-ismo', mais relacionado com a origem grega ('-ismós,oû) para formar nomes a partir de verbos gregos terminados '-ízó' e, por vezes, em '-ió', numa relação análoga com o afixo latino '-ismus,i': catequizar / catecismo (< katékhízó:katékhismós); helenizar / helenismo (< hellenízó:hellenismós); para construir, na área da medicina, nomes denominais que servem para designar agentes tóxicos (álcool > alcoolismo); para formar nomes relativos a movimentos sociais e/ou ideológicos, culturais, espirituais, profissionais na base de outros nomes (África > africanismo, anarquia > anarquismo, Aristóteles > aristotelismo, Buda > budismo, biografia > biografismo, enciclopédia > enciclopedismo, moda > modismo, símbolo > simbolismo, técnica > tecnicismo); para obter nomes deadjetivais (brasileiro > brasileirismo, tropical > tropicalismo).
    Ainda que a relação entre os sufixos '-ista', '-ico' e '-ismo' seja próxima não se pode concluir da implicação cognata dos afixos no que possa constituir uma família de palavras e/ou morfológica. Há relações de seleção a caraterizar os sufixos reveladoras de muita diversidade e complexidade quanto à atuação destes com as  suas bases (derivantes).
      Assim, ao canoísta associa-se a canoagem e não o '*canoísmo' hoje tão divulgado.

    Fica então um registo do feito histórico e olímpico, não compaginável com feitos linguísticos e/ou morfológicos televisivamente difundidos.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Dos temas do mundo

    Entre o muito que possa ter acontecido neste mundo, a ponto de se fazer notícia, hoje falou-se de um aniversário.

     Nos telejornais, desde ontem, muito se tem falado dos setenta anos de Caetano Veloso. Houve até direito a uma breve reportagem sobre o percurso do cantor e compositor baiano, identificado como um dos maiores na música brasileira.
     Ainda que não seja dos meus preferidos, reconheço-lhe a qualidade, o espírito indomável e a dimensão interventiva, criativa e criadora que tem vindo a assumir no panorama cultural brasileiro ou, como ele gosta de o dizer, na e com a língua portuguesa.
    Títulos como "Alegria, alegria", "Os Argonautas", "Felicidade",  "Leãozinho", "Eu sei que vou te amar", "Menino do Rio", "Você é linda", "Língua" ou "Sozinho" são alguns dos que recordo na memória do meu apreço, para me centrar naqueles a que associo a voz do cantor já com mais de 50 álbuns de cantigas.
      Em 1967, no vinil "Caetano Veloso", ouvia-se este "Alegria, alegria"


     ALEGRIA, ALEGRIA

Caminhando contra o vento
Sem lenço e sem documento
No sol de quase dezembro
Eu vou...

O sol se reparte em crimes
Espaçonaves, guerrilhas
Em cardinales bonitas
Eu vou...

Em caras de presidentes
Em grandes beijos de amor
Em dentes, pernas, bandeiras
Bomba e Brigitte Bardot...

O sol nas bancas de revista
Me enche de alegria e preguiça
Quem lê tanta notícia
Eu vou...

Por entre fotos e nomes
Os olhos cheios de cores
O peito cheio de amores vãos
Eu vou
Por que não, por que não...

Ela pensa em casamento
E eu nunca mais fui à escola
Sem lenço e sem documento,
Eu vou...

Eu tomo uma coca-cola
Ela pensa em casamento
E uma canção me consola
Eu vou...

Por entre fotos e nomes
Sem livros e sem fuzil
Sem fome, sem telefone
No coração do Brasil...

Ela nem sabe até pensei
Em cantar na televisão
O sol é tão bonito
Eu vou...

Sem lenço, sem documento
Nada no bolso ou nas mãos
Eu quero seguir vivendo, amor
Eu vou...
Por que não, por que não...


    Os contributos ligados a outras vozes / interpretações são inúmeros na Música Popular Brasileira (MPB) - desde a irmã Maria Bethânia a nomes como Gal Costa, Roberto Carlos, Gilberto Gil, Chico Buarque, Milton Mascimento, Djavan -, além dos registos e ensaios mais experimentalistas com grupos / cantores do Brasil contemporâneo (de que os nomes de Ivete Sangalo e Maria Gadú são exemplo, entre os mais conhecidos neste canto à beira-mar plantado).

   Uma prova de  que o tempo não é tudo: as roupagens do presente no passado ajudam a dar futuro, num homem que se prevê atual(izado) e com visão.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Noite de estreia no cinema

     Em noite de estreia de mais um filme de Batman, 'O Cavaleiro das Trevas Renasce' (The Dark Knight Rises) fica entre a previsibilidade do enredo e a espetacularidade dos efeitos fílmicos.

     Estamos em tempos de precisar de heróis, nesta luta já clássica entre o mal e o bem.
    Com a crise instalada na cidade, a entrega desta última ao "poder do povo" não mais é do que a deturpação dos princípios, num maniqueísmo típico de quem se deixa dominar pela sede de poder e se deixa levar ou pela anarquia ou pelo jogo das perversões e dos interesses.


     É nesta metáfora dos tempos (modernos), de desafio mais psicológico do que físico, que Batman ressurge, num registo que fecha uma trilogia épica  (Batman, o Início - Cavaleiro das Trevas - O Cavaleiro das Trevas Renasce), de ação, em que o bem tarda, por mais previsível que seja o sucesso diante de provas a superar e da força dos vilões a enfrentar. 


      Depois de 'O Joker' (segundo filme), a cidade de Gotham vê-se nas mãos de Bane (Tom Hardy), um líder terrorista que ascende à luz, a uma posição ou a um ideal, ameaçando Gotham com a destruição nuclear. Batman vencê-lo-á (auxiliado pela Catwoman), libertando a cidade do perigo, é certo; mas várias descobertas e uma revelação de um outro vilão (desta feita uma vilã) acabam por prender o espectador a uma intriga artificiosa, também acompanhada de vários efeitos visuais e sonoros potentes, sem ter de se recorrer ao já habitual 3D.
   Três são os trailers oficiais para o filme, que põe fim a uma saga interpretada por Christian Bale, enquanto Homem-morcego portador da justiça e do bem, num mundo feito de destruição, caos e desordem.


     Assim se reconhece a necessidade de heróis.

   Com este novo filme de Christopher Nolan, retrata-se o ceticismo das vivências numa grande cidade e como este pode conduzir a uma situação ainda mais perversa - mensagem que teve tanto impacto quanto a estreia da película nos Estados Unidos da América (Colorado), onde um estudante disparou indiscriminadamente para uma plateia (possíveis reflexos de heróis que se afirmam num cenário de violência e adrenalina banalizado, como os do filme em causa).