quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Argumentos para todos os gostos...

    Dúvidas que o tempo pode vir a resolver...

     A propósito de uma questão que me foi lançada em correio eletrónico e que, pelos vistos, não ficou resolvida. Cá vai mais um contributo.

     Q: Boa tarde. Gostaria de saber a função sintáctica de 'mal' nas frases 'Reagi mal' e 'Senti-me mal'. Numa acção de formação disseram-me que se tratava de um predicativo do sujeito por semelhança com a frase 'Estar mal'. Concorda com esta abordagem?

      R: Grato pela questão e pela explicitação das condições associadas à dúvida.
         Não sei quem defendeu esta posição nem em que fundamentos se apoiou. Por mim, naturalmente não concordo com o que lhe foi dito a propósito das duas frases iniciais.
     A analogia estabelecida falha, no meu ponto de vista, por aproximar verbos que apresentam comportamento lógico e sintático-semântico completamente distinto. A natureza copulativa do verbo 'estar' justifica a sequência de um predicativo do sujeito, o mesmo não acontecendo com os verbos 'reagir' e 'sentir'.
        É inevitável a consideração de uma plataforma entre sintaxe e semântica, conforme é proposto pela noção de 'estrutura argumental' dos verbos. A partir dela constroem-se os argumentos selecionados, ou seja, os elementos que mantêm relação dependencial com o significado desses verbos.
         Primeiro de tudo, 'reagir' e 'sentir' não são verbos copulativos, mas transitivos. São exemplos pertencentes à tipologia dos verbos comportamentais ou de natureza percetiva, quanto ao estado de coisas ou às áreas temáticas representados nos respetivos predicados. Integram-se, portanto, nos processos e não nos estados (como o verbo 'estar'). Depois, eles apresentam, em termos lógicos, os argumentos seguintes:
         a) REAGIR > Alguém(1) REAGIR a alguma coisa (2) de algum modo / de alguma maneira (3)
         b) SENTIR > Alguém (1) SENTIR alguma coisa (2) / Alguém (1) sentir(-se) de algum modo (2)
        Assim, 'mal', no predicado configurado com o verbo 'reagir', corresponde a um complemento oblíquo; o mesmo acontece com o verbo 'sentir'.
       A argumentação aduzida por quem lhe respondeu com a classificação 'predicativo do sujeito' é tão falível quanto em 'porto-me mal', 'comporto-me mal', 'agir mal', 'apresentar-se mal', 'entrar mal', 'prever mal' tal função sintática não estar presente, apesar de possíveis analogias com 'estar mal'.

       Leia-se Fillmore ("The Case for case", 1968, ou "Some problems for case grammar", 1971) e a resposta a dar em ações de formação seria certamente diferente da que foi produzida. Gramática de Valências, de Winfried Busse e Mário Vilela, é um outro contributo indispensável... digo eu.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Zeca Afonso... vivo na lembrança

    Por altura dos 25 anos da sua morte, fica o registo de uma música, de uma voz, de um tempo que se impõe relembrar.

    Os tempos não andam fáceis. 
    A descrença é evidente; o desalento impõe-se; os sinais de revolta,... latentes.
  E, assim, as palavras de Zeca Afonso e o seu sentido de intervenção se revelam inspiradores, atuais, reinventados com o significado vivo do que são as lembranças de um tempo de larga e crescente preocupação, insatisfação, injustiça, perseguição, condicionamento e vontade de mudança.


Vieram cedo
Mortos de cansaço
Adeus amigos
Não voltamos cá
O mar é tão grande
E o mundo é tão largo
Maria Bonita
Onde vamos morar

Na barcarola
Canta a Marujada
- O mar que eu vi
Não é como o de lá
E a roda do leme
E a proa molhada
Maria Bonita
Onde vamos parar

Nem uma nuvem
Sobre a maré cheia
O sete-estrelo
Sabe bem onde ir
E a velha teimava
E a velha dizia
Maria Bonita
Onde vamos cair

À beira de àgua
Me criei um dia
- Remos e velas
Lá deixei a arder 
Ao sol e ao vento
Na areia da praia
Maria Bonita
Onde vamos viver

Ganho a camisa
Tenho uma fortuna
Em terra alheia
Sei onde ficar
Eu sou como o vento
Que foi e não veio
Maria Bonita
Onde vamos morar

Sino de bronze
Lá na minha aldeia
Toca por mim
Que estou para abalar
E a fala da velha
Da velha matreira
Maria Bonita
Onde vamos penar

Vinham de longe
Todos o sabiam
Não se importavam
Quem os vinha ver
E a velha teimava
E a velha dizia
Maria Bonita
Onde vamos morrer

     De tudo isto se compõe o presente, num ritmo cíclico de eterno retorno ao que não se quer (ver) repetido.

    Num incómodo 23 de fevereiro de 1987, uma voz passou a habitar a memória dos que a recuperam neste momento em que há notas (tão dissonantes) para uma nova "Canção do Desterro".

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Entre o que partiu e o que ficou

    Partiu o melhor de mim...

   Quando há cerca de dois anos, a propósito da comemoração do Dia Europeu das Línguas, conduzia a pesquisa de uma turma para o tema da Hungria, estava longe de pensar que este país se iria cruzar com a minha vida.
    Entre alguns atlas, enciclopédias e roteiros, a leitura, a escrita, o conhecimento da língua cruzaram-se com a produção de um cartaz alusivo ao país magiar, aos costumes e a dados linguísticos e culturais que se avivam no presente.
     No planalto dos Cárpatos, na Europa Central, a Hungria tem de Portugal quase os mesmos dez milhões de habitantes. Da língua fino-úgrica pouco há a lembrar a herança latino-românica, ainda que ambas partilhem um mesmo continente europeu. A capital - Budapeste - é a pérola atravessada pelo Danúbio, com as porções "buda" (mais ocidental) e "peste" (o "forno" ou "fogão" da parte oriental, em geral plana e cujo centro histórico apresenta o parlamento húngaro, a praça dos Heróis e a avenida Andrássy).

     
   País do goulash ('comida de vaqueiros' preparada tradicionalmente pelos pastores húngaros, com carne de vaca cozida, cebolas, banha de porco, pimento-paprica, cominhos, sal e água), a Hungria faz parte da União Europeia desde 2004, mas ainda mantém o florim húngaro como moeda nacional.
    Entre a música de Liszt e Bela Bartók, a ilusão de Houdini, as fotos de Robert Kappa, a representação draculiana de Béla Lugosi, a cinematografia de Miklós Jancsó, o jogo futebolístico de Puskás e a escrita de Imre Kertész, há ainda um rio que me separa de um coração europeu também português.

    ... ficou o que há muito não interessa.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Dia cheio, completo, com muita elipse e palavras por dizer

    Hoje fui elíptico até dizer chega (de ser elíptico, claro está!)

    Fechou hoje um círculo de formação ligado às Conferências de Português, já aqui anunciadas.
  Manhã e tarde dedicadas a formação, para cerca de cinquenta pessoas interessadas em partilhar experiências, saberes, poesia e afetos. Foi o IV Encontro de Linguística de Gondomar, desta feita integrado num plano de formação de 35 horas que a 'Oficina da Língua da Escola Secundária de Gondomar' tem vindo a dinamizar desde outubro passado.
   O dia terminou tarde, é certo, mas com as palavras poéticas de um colega que foi bom rever, ouvir, partilhar por mais breve que tenha sido o seu momento. Iluminou, na verdade, o fim da tarde com a leitura de alguns poemas; as suas impressões; o seu poder criativo no cruzamento com episódios de uma vida despreocupada com o estilo, com a metáfora, para deles poder tirar o máximo partido, sem ter de os banalizar.
    Diz-se que não há duas sem três, mas no meu caso é melhor dizer que não houve três sem quatro.
   O meu contributo neste encontro esteve "Entre as palavras ditas e as não ditas" (na companhia de provérbios, da ironia, de pressupostos, de implícitos, de implicaturas e de construções elípticas que se reveem na oralidade e na escrita, que se pretendem no ensino e na aprendizagem da língua), no seio do que tanto teve de enriquecedor, conforme se pode constatar pelo programa.


    Da comunicação produzida, ainda farei registo mais desenvolvido neste espaço, assim se cumpra algum descanso.
    Abandonada a ESG ao final de um dia de sábado, ficou a sensação do dever comprido e cumprido. 
    No fim, o momento mais esperado...

   Entre as palavras ditas e as não ditas, espero que não tenham surgido as interditas (porque ainda há grupos nos quais nos sentimos bem e com sentido).

domingo, 12 de fevereiro de 2012

"Perdida sem uma causa"... a da vida

      Porque o que é novo também se faz do que é velho,...

    A novidade tem de novo apenas a individualidade que cada pessoa é. De resto, os motivos, os percursos, os estados, as fragilidades, as teias mantêm-se. Uma constância aranhiça prende o ser humano a uma rede de que parece não poder salvar-se.
    Ser ídolo, ser diva por razões destas é um contrassenso. O exemplo persiste, e pelas más razões.
    Pedir apoio, buscar a libertação, remar contra a maré parece não chegar.



    I LOOK TO YOU

As I lay me down
Heaven hear me now
I'm lost without a cause
After giving it my all

Winter storms have come
And darkened my sun
After all that I've been through
Who on earth can I turn to?

I look to you
I look to you
After all my strength is gone
In you I can be strong

I look to you
I look to you (yeah)
And when melodies are gone
In you I hear a song I look to you

About to lose my breath
There's no more fighting left
Sinking to rise no more
Searching for that open door

And every road that I've taken
Led to my regret
And I don't know if I'm gonna make it
Nothing to do but lift my head

I look to you
I look to you (yeah)
And when all my strength is gone
In you I can be strong

I look to you
I look to you (oh yeah)
And when melodies are gone
In you I hear a song
I look to you

My love is all broken (oh Lord)
My walls have come (coming down on me)
crumbling down on me (All the rain is falling)
The rain is falling (hoo!)
Defeat is calling (set me free)
I need you to set me free

Take me far away from the battle
I need you to shine on me

I look to you
I look to you
After all my strength is gone
In you I can be strong

I look to you
I look to you (yeah)
And when melodies are gone
In you I hear a song
I look to you (yeah)

I look to you
I look to you...


   Assim o senti, na notícia deste dia: Whitney Houston morreu.
  O céu precisava de uma voz assim. Quanto à terra, fica sem uma das melhores vozes negras de sempre, mesmo quando esta última já não tinha o poder que havia conquistado nas décadas de oitenta e noventa do século XX.

   ... sirva este novo exemplo para lembrar velhas razões que também desgastam e tornam a vida irremediável, até que chega o fim breve. Há uma força que tem que ser maior (a de querer ser), mesmo que esta seja a mais acessível para se perder.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Depois de sábado...

     O domingo nasceu triste, com notícia que dá sufoco.

     Tudo tão rápido, tão breve...

    
     Breve
     a vida de quem serve
     e que nos tempos que perde
     vê a dádiva, a entrega que sempre alguém pede

     Breve
     o cruzar de um sorriso, o chamamento, a sede
     de ajudar... assim o viu quem a teve
     por companhia e segue
     com a lembrança leve,
     serena, afetiva, sorridente de quem se atreve
     a partilhar o bem, ainda que nele pouco haja quem se enleve

     Breve
     o instante da morte,
     a rapidez do corte
     na vida, feita também de exemplos sem sorte...
     E logo emerge a injustiça e o choque
     por saber que a partida ruma a um norte,
     sem despedida, mas deixando bem forte
     a viagem, o reencontro sem passaporte

     Breve...
                 ... ou tarde
     qualquer um de nós se inscreve
     nesta vida com um fim...
                                          ... breve?

     É dia de sol, com um vento que ameaça de frio quem não está sob os raios de luz que aquecem os corpos.

     O frio está mais dentro do que fora.

A negritude da(s) voz(es) na música

     Nem de propósito...

     Numa aula de Português falava-se da música e de como esta tem o poder de nos harmonizar com a vida, quando o mal bate à porta. Na vida como na ficção, ou não fosse Scarlatti o exemplo disso, num mundo que se pretende alternativo à epopeia do trabalho, dos sacrificados, mutilados e violentados na vontade.
      Entre os muitos temas que Memorial do Convento permite trazer à discussão, um deles é precisamente o da música - do seu poder curativo (com Blimunda) e do natural ingrediente para a felicidade suprema das personagens que se singularizam na obra.
     O certo é que o tema derivou, chegou-se ao poder da(s) voz(es) e de como a música negra tem esse toque mágico de "soul", de animação que tanto no "gospel" como no "blues" se faz herdar dos tempos em que escravos se uniam no canto libertador das plantações e das sanzalas.
    Constatou-se, então, o potencial de vozes como as de Aretha Franklin, de Louis Armstrong, de Gladys Knight, Whitney Houston, Tina Turner, Ray Charles, Jimmy Hendrix (mais pelos acordes da guitarra do que pelos da voz) entre muitos outros.
     Logo hoje, uma dessas vozes se impõe num programa televisivo de "caça talentos":


 
      REACH OUT... I'LL BE THERE

Now if you feel that you can't go on (can't go on),
Because all of your hope is gone (all your hope is gone),
And your life is filled with much confusion (much confusion),
Until happiness is just an illusion (happiness is just an illusion),
And your world around is crumbling down, darlin',
(Reach out) Come on girl reach on out for me,
(Reach out) Reach out for me,
I'll be there with a love that will shelter you,
I'll be there with a love that will see you through,

When you feel lost and about to give up (to give up),
Cause your life just ain't good enough (just ain't good enough),
And your feel the world has grown cold (has grown cold),
And your drifting out all on your own (drifting out on your own),
And you need a hand to hold, darlin'
(Reach out) Come on girl reach out for me,
(Reach out) Reach out for me,
Hah, I'll be there to love and comfort you,
And I'll be there to cherish and care for you,

(I'll be there to always see you through,
I'll be there to love and comfort you),
I can tell the way you hang your head (hang your head),
Your not in love now, now your afraid (you're afraid),
And through the tears you look around (look around),
But there's no piece of mind to be found (no piece of mind to be found),
I know what your thinking,
You're alone now, no love of your own, but darling,
(Reach out) Come on girl reach out for me,
Reach out (Reach out).......... just look over your shoulder,
I'll be there to give you all the love you need,
And I'll be there you can always depend on me,
I'll be there to always see you through,
I'll be there to love and comfort you.


     Deborah Gonçalves: uma voz negra "in portuguese land" para uma canção dos "Four Top" (1966), nos tempos da Motown, e já com versões de Gloria Gaynor, Michael Mcdonald e outros mais. A da portuguesa não fica atrás, num programa que se quer de sucesso na divulgação de vozes que fazem a diferença e se assumem como a "voz de Portugal".

    Mais uma prova do 'black power', da 'black music', com as 'black voices' que nos fazem vibrar pela intensidade que revelam.