sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Em jeito de balanço

    Ao fim de cerca de dois anos, fica um registo estatístico.

    Para uma rede de consultas e leituras que já se pode assumir como abrangente, eis o mapa do público que conhece esta "carruagem":


    Ainda alguns números que se me revelam impressionantes, atendendo às já mais de sete mil e duzentas visualizações:
     Portugal 5 398                                  Itália 16
     Brasil 1 692                                      Angola 12
     Estados Unidos 213                          Alemanha 12
     Rússia 19                                          França 12
     Reino Unido 16                                 Holanda 12

   A todos, o agradecimento devido pelas "viagens" aqui realizadas, mais os votos de uma óptima passagem de ano e de um 2011 muito promissor.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Quando doze foi dez

     Está dezembro a terminar, o décimo segundo mês deste calendário gregoriano com o qual temos convivido desde que esta forma de organizar o tempo nasceu.

    Etimologicamente, tudo se prende com 'dĕcem' e 'decĕmber', o décimo mês do antigo calendário romano (segundo dizem, conforme o estabelecido por Rómulo, aquando da criação de Roma).
    Júlio César ainda viveu março como o primeiro mês do ano, concluindo-se este último com 'Januarius' e 'Februarius'. Ao introduzir-se os meses 'Unodecembris' e 'Duodecembris' no final do ano 46 a.C., arrastaram-se os outros dois para o início de 45 a.C., pelo que março se tornou o terceiro (afastando-se, assim, do inverno e encetando-se a prática da celebração das festas romanas na estação mais florida: a da marcação do equinócio).
    Com o Papa Gregório XIII, o calendário juliano sofreu as últimas mudanças: vulgarizou-se a tradição de iniciar o ano a 1 de janeiro; reduziu-se o calendário / ano anterior em dez dias; corrigiu-se a medição do ano solar (365, 2425 dias solares), com um ano bissexto de quatro em quatro anos.
    Viveu-se, assim, o final do etimológico 'dez', que se tornou doze.
   Em véspera de passsagem, fica ainda o registo da designação dos meses, a revelar tradições de variada espécie:
. Janeiro - de Jano (deus romano das portas, das passagens, dos inícios e dos fins);
. Fevereiro - de Februus (deus etrusco da morte, relacionado com a palavra 'febre'; o "mês da purificação", para os latinos, que chegou a fechar o calendário antigo);
. Março - de Marte (deus romano da guerra);
. Abril - de 'Aprilis' (associado a 'abrir', numa referência à germinação das culturas, além da relação / sugestão com 'Aprus', o nome etrusco para Vénus: deusa do amor e da paixão);
. Maio - de Maia Maiestas (deusa romana);
. Junho - de Juno (deusa romana, esposa do deus Júpiter);
. Julho - de Júlio César (ditador romano, que alterou o anteriormente chamado 'Quintilis', o quinto mês do calendário de Rómulo);
. Agosto - de Augusto (primeiro imperador romano, que mudou o anteriormente chamado 'Sextilis', o sexto mês do calendário romano antigo);
. Setembro - de 'septem' ("sete" em latim; o sétimo mês do calendário de Rómulo);
. Outubro - de 'ōcto' ("oito" em latim; o originário oitavo mês);
. Novembro - de 'nŏvem' ("nove" em latim; o nono mês);
. Dezembro - de 'dĕcem' ("dez" em latim; o décimo mês).

    Imagino-me nos tempos de Rómulo: amanhã a deixar a 'febre' para entrar em mês marcial (é verdade: o actual janeiro manteve-se mais como tempo de guerra, em vez da simples porta ou da passagem).

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Pensamento do Homem e da criança que também foi.

      Há um ano, relembrava Redol; hoje retomo o tópico por há 99 anos ter ocorrido o seu nascimento.

      Um pensamento do autor-narrador pode ser lido logo nas primeiras páginas da que foi considerada uma das obras-primas da literatura (dita) infantil:

Escultura em bronze de Maria Morais (1981), à entrada da
Escola Secundária de Vila Franca de Xira (terra natal do escritor).

"Um homem cresce até ao fim da vida,
se não em altura,
pelo menos em obras e ambições."


    Assim se lê em Constantino Guardador de Vacas e de Sonhos (20ª ed., Lisboa, Editorial Caminho, 1990), quando o narrador apresenta a personagem ainda criança que dá título ao "contarelo" (publicado em 1962) - afirmação com a exemplaridade dos valores da formação, da aprendizagem, do crescimento e do desenvolvimento.

     Pensamento de homem para uma obra centrada num rapaz de doze anos, pautado pela acção e pela imaginação, a procurar superar uma realidade social associada a uma época (anos sessenta do século XX) e a um espaço (entre o piscatório e o rural) feitos de algumas agruras da vida.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

'O Pianista' - da História à Música

      Eis um filme que desconcerta qualquer ser humano.

    É daquelas películas a ver quando sentimos que tudo está mal connosco - rapidamente nos apercebemos do nosso mal menor, dado o efeito de real para que a ficção nos transporta.
   O contexto histórico da Segunda Guerra Mundial e o percurso da personagem Władysław Szpilman (interpretado pelo oscarizado Adrien Brody) são um retrato de um tempo e um mundo em ruínas, nos quais a vida se confronta continuamente com o perigo, a ameaça do fim. O começo da Segunda Guerra Mundial e a invasão da Polónia (em 1 de Setembro de 1939) condicionam a vida de Szpilman, na deterioração crescente a que população judia se viu votada: com limitação na circulação de dinheiro, com faixas identificadoras da sua origem, com o abandono das casas e dos bens, com a separação dos núcleos familiares, com a fome e a perseguição humilhante que a acompanhou para os guetos e para os campos de concentração / aniquilação.
       A sobrevivência da personagem principal faz-se à custa da separação da família, da sua integração no trabalho escravo, do seu esforço de fuga a todo o tempo praticamente ameaçado, da sua iminente morte à mão dos próprios salvadores russos (que o vêem com um casaco alemão vestido). 

Trailer de O Pianista (2002), realizado por Roman Polanski.
    
   Assistindo às acções de resistência, sem nelas poder participar, Szpilman é descoberto, na fuga final, pelo capitão Wilm Hosenfeld (Thomas Kretschmann). Entre eles, a música compõe a união de perseguido e perseguidor, a ponto de este último se tornar no seu salvador (levando-lhe comida e deixando-o esconder-se nos bairros arruinados pelos nazis).

Uma das cenas mais significativas do filme: o entendimento do perseguido e do perseguidor pela música
(Balada nº 1, op. 23 de Chopin)
   
   Com esta protagonista na vida de Szpilman (tanto na vida feliz como na que o fez contactar directamente com as mais diferentes formas de terror), a música torna-se das únicas notas de felicidade e harmonia existentes na intriga fílmica, mesmo quando a personagem ora não se pode dar a ouvir no toque do piano ora não tem o instrumento musical senão na própria mente, Porque esteve sempre lá, a música é símbolo da diferença no crime e no caos instalados (é interrompida no início da película; impõe-se na última cena); é o registo de um final feliz para um filme triste, francamente duro, penoso na apresentação dos atos perversos, sádicos e aniquiladores do regime nazi.
   O Pianista é uma produção  cinéfila já com oito anos (o filme data de 2002), mas ainda suficientemente forte para, a par de A Lista de Schindler (1993), A Vida é Bela (1997) e O rapaz do pijama às riscas (2008), fazer lembrar o holocausto de um período que não se pode ter repetido sob nenhum pretexto; para evocar a música (personagem principal de muitos filmes) que, no caso presente, um Chopin deu à Humanidade.

    Dirigido por Roman Polanski (também agraciado com o Óscar de Melhor Realizador), O Pianista apoia-se na autobiografia homónima escrita pelo músico polaco Władysław Szpilman e constitui-se como tributo à sobrevivência ou grito de alerta para a desumanização que, infelizmente, emerge em tempos de guerra.

domingo, 26 de dezembro de 2010

Mais desafios, a partir de dúvidas

    Na linha de alguns desafios linguísticos, cá vai mais um, na sequência de uma dúvida colocada a propósito de uma mensagem anterior.

     Q: Boa noite! Podem esclarecer-me sobre o seguinte? Por que razão se chama adverbial à oração condicional? (ex.: Se precisares de ajuda, chama-me imediatamente). Que relação tem com advérbios? Agradeço uma resposta que pudesse ser dada a um aluno de ensino secundário que fizesse esta pergunta. E entendida... O mesmo para as outras adverbiais. Obrigado.

      R: Viva!
     Adverbial é a designação para dar conta de uma unidade estrutural sintáctica constituída quer pela classe dos advérbios quer por expressões equivalentes (grupo nominal, grupo preposicional, grupo frásico ou oracional) quanto à posição e à funcionalidade significativa.
     Assim, numa frase como (1), pode ocorrer, no lugar do advérbio (em itálico), todo um outro conjunto de unidades que, por substituição, corresponderia a um adverbial (expressão) com a mesma distribuição e/ou ao mesmo tipo de informação (no caso, de frequência temporal):

(1) Os alunos lêem um livro mensalmente.
(1a)                                    todos os meses.
(1b)                                    em cada um dos meses.
(1c)                                    sempre que dão entrada num novo mês.

       No caso da frase “Se precisares de ajuda, chama-me imediatamente”, o itálico aponta para o que já a gramática tradicional designava como uma subordinada adverbial, em contraste com as subordinadas substantivas e as adjectivas.
      Tal designação associa-se a duas propriedades que geralmente marcam as primeiras:
. a possibilidade de comparecerem numa construção clivada (ex.: É [só] se precisares de ajuda que me chamas imediatamente);
. a capacidade de ocorrerem em posição inicial (como no exemplo de partida), medial (ex.: Chama-me, se precisares de ajuda, imediatamente) ou final (ex.: Chama-me imediatamente, se precisares de ajuda).
       Ao caso em concreto, acresce o facto de a subordinada concorrer ainda para a seguinte caracterização típica dos adverbiais: é suprimível, atendendo à estrutura argumental do verbo da sequência subordinante (chamar), o que, consequentemente, dá conta da sua natureza de modificador.

       Considero que os testes de substituição, comutação / permuta; comparação contrastiva e manipulação frásica são as melhores formas de demonstração junto dos alunos, como estratégia de construir a explicitação dos raciocínios e do conhecimento da língua.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

E assim se chega a mais um Natal

     Na pressa do tempo, fiz nascer um postal doméstico...

     Com um presépio que vai ganhando novas formas a cada ano, as figuras mantêm-se, na esperança de que o novo não deixe de preservar o que ainda nos une a um espírito fraterno e as memórias que dão cor à nossa existência, ao nosso ser.



A lua e as estrelas dão luz à noite;
Maria deu à luz um santo menino;

O Homem mundano, para que se afoite,
Pede a Deus, grande; lá esquece o pequenino.
E, entre as palhas, o musgo e o curral,
Dá-se a beleza que ilumina o Natal.



Presépio doméstico - III
(Dezembro, 2010)
VO

Que este seja o tempo de dar e receber,
na redescoberta das pequenas coisas
que (também) fazem os momentos grandes.

    
    
  A todos os que vão viajando "nesta carruagem", os votos de um santo e feliz Natal.

sábado, 18 de dezembro de 2010

Das origens do presépio

     Com a chegada do Natal e dos seus motivos, relembrei Itália, Nápoles e a costa amalfitana.

     O tempo quente de férias nada tem a ver com o frio que, agora, fere as narinas, gela as mãos e corta a pele.
Foto da costa amalfitana, com o seu presépio de casas na encosta
(Agosto, 2010)  VO
      Foi a montar o presépio que ecoaram, na minha memória, as palavras da guia, algures no percurso entre Nápoles e a costa amalfitana: "Esta é a zona da origem dos presépios. Tudo isto se revê no que terá sido o primeiro presépio do mundo, construído em argila por São Francisco de Assis no século XIII (1223)". E, assim, se vislumbrava o casario pelas encostas (entre o traçado árabe e bizantino), além de se imaginar a iluminação que a noite traria.
     A propósito do presépio, parece que, em vez de festejar (como habitualmente) a noite de Natal na sua igreja, a floresta de Greccio foi o local para onde o então frade fez transportar uma manjedoura, uma vaca e um burro - figuras que passavam a explicar e a ilustrar melhor o Natal ao homem comum, a todos os que não conseguiam entender a história do nascimento de Jesus.
     De facto, vários foram os sinais da popularidade do costume, que parece ter surgido na província italiana da Campania.
    Uma nova tradição se instituía, espalhada que foi, durante a Idade Média, entre os principais espaços religiosos da Europa.
    Já em pleno século XVI, em 1567, a Duquesa de Amalfi mandou montar um presépio com 116 figuras para representar o nascimento de Jesus, a adoração dos Reis Magos e dos pastores, mais os cânticos dos anjos.


Presépio napolitano
à entrada do NH Ambassador
(Agosto, 2010)     VO



    Inspirado nesta experiência, não faltarão a manjedoura, o boi, o burro e umas quantas outras figuras no meu presépio, montado, desta feita, em terras gondomarenses, para aquecer um espaço que acolherá amigos e familiares.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

De regresso à coesão... a partir da posição

    Questões de sintaxe (e não só) na sua relação com coesão.

Q: Colega, acha que a posição dos elementos na frase também tem a ver com questões de coesão?

R: Há, por certo, relações entre os dois domínios, tomando em linha de conta a abordagem implicada em termos de superfície dos enunciados ou na constituição sintagmática das sequências frásicas.
    Por exemplo, o posicionamento das subordinadas adverbiais não deixa de concorrer para a natureza coesiva das frases nos textos / discursos. Aquelas ocorrem, normalmente, numa posição posterior (1) ou anterior (2) ao segmento subordinante:

  (1) Chama-me a qualquer momento se precisares de ajuda.
  (2) Se precisares de ajuda, chama-me imediatamente.

      A colocação das subordinadas adverbiais condicionais exemplificadas aponta, desde logo, para uma relação directa com graus distintos de integração face à sequência subordinante: semanticamente, a proposta (1) exemplifica uma subordinada adverbial em posição final, tendencialmente sugerindo conexões mais estreitas com a subordinante ou frase matriz (daí também a inexistência de vírgula na escrita ou de pausa na oralidade). O mesmo pode ser verificado em (3):

      (3) A questão foi colocada porque no nosso dia-a-dia não há soluções para resolver todos os problemas.

      Numa perspectiva de análise do discurso, uma subordinada adverbial em posição inicial - como em (2) - prende-se com um conjunto de relações textuais mais amplo, considerando os enunciados que a precedem; proporciona um enquadramento ou esquema mental para as sequências que se lhe seguem; é comummente marcada por vírgula / pausa a delimitá-la da subordinante, o que, consequentemente, pode evidenciar um grau de integração mais fraco face a esta última sequência.
     Atentando num exemplo como (4), manifesta-se uma maior integração da subordinada final do que o enquadramento proposto com a causal inicial (não obstante o encadeamento e a natureza modificadora de ambas as sequências):
    
     (4) Dado o estudo nem sempre ser suficiente para um bom resultado, poderás necessitar de ajuda para encontrar estratégias complementares.

      A posição dos segmentos frásicos presta-se igualmente à consideração de questões ligadas à estrutura informacional: numa frase complexa, a sequência inicial pode apoiar-se em informação encarada como já conhecida, enquanto a final se apoia em informação nova. Em (3), a frase matriz surge à cabeça, com o grupo nominal 'A questão', pressupondo um discurso anterior, no qual já tenha sido feita referência a 'uma questão'. Já em (4) sucede o contrário: a subordinada causal toma como conhecido o facto de o estudo não ser razão suficiente para um bom resultado, encaminhando-se, assim, a subordinante e a subordinada final para a apresentação da informação nova.
   
     Sintaxe, pragmática, progressão de informação: domínios que concorrem para uma gramática da língua feita de corpo inteiro.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Acontece... na vida

     Por mais que se diga "É a vida!" quando nos deparamos com a morte, as felicidades da primeira nunca apagarão a dor e o sentido de perda da segunda.

     Há um ciclo que está a fechar-se com a perda de algumas referências que marcaram a minha geração. Na área da comunicação, Carlos Pinto Coelho ficará sempre como uma das que preencheram o espaço televisivo e a vida de muitos.

     Entre vários contributos, o do "Acontece" na RTP2 é incontornável, como um dos poucos programas que me prendiam à televisão pública, pela qualidade jornalística e pela oportuna divulgação cultural apresentadas. Nove anos (1994-2003) de uma companhia  televisiva que alguém quis romper por "valores mais altos" que não se "alevantaram" (nem podiam  nem podem "alevantar"-se).
     Concorrentemente, noutros programas, outros prazeres se juntaram, como os das rábulas de Herman José a esse jornalista e apresentador que, pausada, cuidadosa e repetidamente, dizia as palavras de modo a que todos entendessem o dito e o não dito (por mais crítico que fosse).
     Um exemplo de lusofonia, de cavalheirismo, de persistência, de integridade.
     Um "sal da terra" para condimentar a memória dos que com ele conviveram no pequeno ecrã e para preservar o jornalismo de alguns dos males de que tem vindo a sofrer.

     Porque não há outra forma de melhor terminar esta homenagem a quem já vive na memória colectiva, passo a citar: "E assim acontece".

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Será espera(nça), crença ou fado?

     Memória de um grupo da década de oitenta do século passado para os novos dias deste século, feitos de alguma desesperança.

     Com a letra e música de Pedro Ayres Magalhães, a voz de Teresa Salgueiro trazia a tradição, a expressão da vontade, da espera, da separação, da dor e do amor. Tudo a parecer fado... um fado nacional que, ainda hoje, é muito mais do que género musical. 


HAJA O QUE HOUVER

Haja o que houver, eu estou aqui
Haja o que houver, espero por ti
Volta no vento, ó meu amor
Volta depressa, por favor

Há quanto tempo já esqueci
Porque fiquei longe de ti
Cada momento é pior
Volta no vento, por favor

Eu sei
Quem és p'ra mim
Haja o que houver
Espero por ti

Eu sei, eu sei
Quem és para mim
Haja o que houver
Espero por ti

      Foi com "Palavras Cantadas" (2002) como estas que o grupo me conquistou (e, na altura, com registo ao vivo).  

    Sonoridades para recordar, pelo valor (menos económico, mais cultural) que têm. Porque nem tudo o que (re)luz é ouro. Também pode ser música, som, voz.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Coesão... em acção

     Na sequência de um comentário de um(a) leitor(a), prossigo com alguns dados acerca da coesão.

    Q: Já agora: a coesão referencial creio que aparece na gramática da Prof. Inês Duarte e outras autoras (Caminho Ed.); creio que é mesmo ela a autora da secção da coesão textual. Mas no DT creio que não surge!

    R: De facto, o conceito de coesão é um dos mais operatórios em termos das competências gerais de leitura e da escrita.
     É verdade que a noção de coesão referencial aparece tratada na Gramática da Língua Portuguesa, coordenada pela Professora Maria Helena Mira Mateus (Editorial Caminho), mais precisamente no capítulo da responsabilidade da Professora Inês Duarte intitulado “Aspectos linguísticos da organização textual” (capítulo 5). Diria, ainda, que, para o Português, há um texto basilar no entendimento deste conceito – é o caso do artigo “Coerência e coesão nas unidades linguísticas”, do Professor Joaquim Fonseca (em Linguística e Texto / Discurso, da ICALP, 1992). Apoiado no estudo de Halliday-Hasan de 1976 (Cohesion in English), o linguista português aponta para a manifestação, à superfície, de nexos entre enunciados – nomeadamente, os de realização por referência, por substituição, por elipse, por léxico.
      A questão da coesão referencial concretiza-se no processo de designar / referir entidades pelo recurso preferencial à categoria nominal ou a um possível substituto, havendo ainda a possibilidade de, informacionalmente, marcar-se e progredir-se da introdução de um referente no texto pela primeira vez para a sua retoma (anáfora); de anunciar um elemento que só posteriormente é explicitado em termos referenciais (catáfora); de situar esse referente segundo as condições de produção discursiva (dimensão deítica).
      É na base de mecanismos essencialmente de ordem gramatical que se constrói este tipo de coesão, entre os quais se pode adiantar os seguintes:

(1) O professor dirige as actividades lectivas, com os alunos a assumirem-no como líder e a socorrerem-se dele sempre que têm dúvidas a esclarecer.
[MECANISMO: o grupo nominal ‘O professor’ é o antecedente para as pronominalizações ‘-no’ e ‘(d)ele’, tomadas como termos anafóricos]

(2) Havia um homem na paragem do autocarro. Era o senhor que já me havia solicitado uma direcção.
[MECANISMO: a progressão de ‘um homem’ para ‘o senhor’, além de uma substituição lexical co-referente (homem > senhor), exemplifica a referencialidade construída à base da definitivização (um > o), ou seja, a progressão entre a introdução de informação nova e a retoma de informação já introduzida ou textualmente conhecida]

(3) Aproximou-se um gato dos meus pés. Este olhava para mim como a pedir-me colo.
[MECANISMO: a substituição do grupo nominal ‘um gato’ pelo pronome ‘Este’ permite construir uma cadeia de referência entre antecedente-termo anafórico que evita a utilização de repetições desnecessárias]

(4) Crianças, jovens, adultos, todos são vítimas potenciais de uma epidemia.
[MECANISMO: o pronome indefinido ‘todos’ (realização pronominal de um quantificador) é o termo anafórico para um antecedente múltiplo ou enumerativo: ‘crianças, jovens, adultos’]

(5) Para que o espectáculo corresse bem fez-se assim: falou-se com os interessados, houve muitos ensaios preparatórios, chamaram-se profissionais que forneceram pistas fundamentais, preparou-se um espectáculo inicial para os amigos e, só depois, se abriu o pano para o público geral.
[MECANISMO: o advérbio ‘assim’ é assumido como palavra referencialmente dependente do que se lhe segue, pelo que tudo o que está depois do sinal dois pontos é o que cabe em ‘assim’; daí este último estar na base de uma construção catafórica]

(6) O pobre sentia-se desamparado; contudo, não estava sozinho nessa condição.
[MECANISMO: a elipse visível na configuração ‘O pobre sentia-se desamparado; contudo, Ø não estava sozinho nessa condição’ caracteriza-se pela ausência de realização lexical do termo anafórico, numa espécie de categoria vazia no mecanismo de coesão referencial]

       A exemplificação dos mecanismos nos seis exemplos propostos não invalida a co-ocorrência de outros, convergindo para uma organização interna dos textos / discursos / enunciados que lhes garante o tratamento de unidades dotadas de sentido (veja-se, por exemplo, em 2, ‘senhor’ > ‘que’; em 3, ‘meus pés > mim > me; em 6, ‘desamparado’ > ‘nessa condição’).
      No que toca ao Dicionário Terminológico, convido-o(a) a ler a secção C (Análise do discurso, Retórica, Pragmática e Linguística textual) e as entradas respeitantes a Texto (C.1.2), onde poderá encontrar a de ‘coesão textual’. Nesta última, encontram-se destacados e activados termos associáveis à coesão referencial (como o de ‘cadeia de referência’).

      A produtividade de trabalhar mecanismos destes ao nível transfrásico e/ou textual é a que se revê em áreas tão amplas como a de diversificar vocabulário, a de evitar repetições desnecessárias em frases / textos, a de gerir / avaliar a informação que se pretende transmitir, a de ultrapassar ambiguidades, a de evitar ruídos textuais e fazer progredir a informação com dados novos.

sábado, 11 de dezembro de 2010

Água é vida?!

     Até podia ser..., antes da poluição e contaminação a que anda votada.

     Pior ainda quando é publicitada tão incorrectamente. Caso para dizer que não é credível o que surge tão mal anunciado.


     Não só não dá vida como ainda dela constitui mau exemplo. Uma água destinada a bebés, idosos e hipertensos, pelo facto de apresentar duas propriedades (fraca mineralização e baixo teor de nitratos), necessitaria de um predicado no plural, numa formulação que também não devia deixar escapar um outro cuidado na construção do paralelismo previsível na coordenação: 'A sua fraca mineralização e o baixo teor de nitratos tornam-na...'.
     Para não bastar, ter na segunda frase um sujeito sintáctico separado do predicado por uma vírgula é infelicidade a mais para a produção de um só cartaz, digno de um "Pingo Azedo" e destinado a um produto que não pode ser indicado a quem não tenha mais resistências.

     Para contrariar o prospecto ao fundo, apetece dizer "Só há uma língua. Proteja-a".

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

De Lennon e mais alguns... com outras recordações

     Depois de ontem me ter lembrado de John Lennon, hoje completo o grupo.

   Na 'batida de escaravelho' (jogo para a mistura de 'beat' com 'beetle'), Lennon, George Harrisson, Paul McCartney e Ringo Starr - para só falar dos que constituíram o quarteto mais famoso da história da música rock dos anos 60 - faziam a diferença, primeiro pelos bares das ruas de Hamburgo; depois, pelos de Liverpool. 
     Entre as muitas canções deixadas por The Beatles, uma sempre me marcou pela sua dimensão intemporal na singeleza da composição musical e pela natural reflexão sobre o poder da memória e do amor. Lançada num álbum de 1965 intitulado "Rubber Soul", "In my life" é um dos produtos da parceria Lennon-McCartney que mais versões e interpretações recebeu.

Em Dezembro de 1965, começava a ouvir-se "In my life"

IN MY LIFE

There are places I remember all my life,
Though some have changed,
Some forever, not for better,
Some have gone and some remain.

All these places had their moments
With lovers and friends I still can recall.
Some are dead and some are living.
In my life I've loved them all.

But of all these friends and lovers,
There is no one compares with you,
And these memories lose their meaning
When I think of love as something new.

Though I know I'll never lose affection
For people and things that went before,
I know I'll often stop and think about them,
In my life I'll love you more.

     Entre a melancolia, a lembrança e a expressão do amor, fica a obra-prima de uma composição cujo arranjo melodioso se faz também com o contributo de George Martin, num solo que soa a um cravo barroco (instrumento e período artístico que mais reflectiram a questão da fugacidade da vida, das marcas terrenas e do renascer das cinzas).

     Qual Fénix Renascida, os The Beatles alimentaram-me a lembrança de tempos, lugares e pessoas.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Sempre a imaginar

       Há trinta anos, desaparecia do mundo terreno um homem a quem outro tirou a vida.

       Entre tantas composições (quer a solo quer com os Beatles), Imagine será sempre o hino de um ideal construído para uma irmandade humana feita de utopia. A utopia de John Lennon.
       Não se trata apenas de 'Give peace a chance', de 'Power to the People' ou de 'Working Class Hero'; é algo de 'Love' e 'Just Like Starting Over', com o activismo necessário a um messianismo feito de Igualdade na Terra.

Vídeo oficial da composição de John Lennon (1971)

IMAGINE

Imagine there's no heaven
It's easy if you try
No hell below us
Above us only sky

Imagine all the people
Living for today...

Imagine there's no countries
It isn't hard to do
Nothing to kill or die for
And NO religion too

Imagine all the people
Living life in peace...

You may say I'm a dreamer
But I'm not the only one
I hope someday you'll join us
And the world will be as one

Imagine no possessions
I wonder if you can
No need for greed or hunger
A brotherhood of man

Imagine all the people
Sharing all the world...

You may say I'm a dreamer
But I'm not the only one
I hope someday you'll join us
And the world will live as one

    Ninguém assim devia morrer, muito menos por causa de outros que encurtam a vida.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Coesão - entre a referencial e a lexical

    Desta feita a questão é sobre gramática, mas de âmbito textual.

    Uma das propriedades da textualidade é a da coesão, apoiada em marcas de conexão e em processos linguísticos verificáveis ao nível das sequências e da articulação de enunciados (onde cabem categorias como as de construção de referência; de mecanismos de substituição, de elipse, de articulação e de relação lexical), numa complexidade de ligações que sustenta a boa formação dos enunciados, dos discursos, dos textos.
    Uma tabela-síntese com os processos / mecanismos implicados é a que se pode sumariamente verificar no seguin-
te registo, publicado no manual escolar de 10º ano, do qual sou co-autor.
    Aí (na página 199), entre outros tipos de coesão, podem ser
lidos os que abaixo se apresentam:

    Assim se impôs a dúvida / ques-tão:

Q: Relativamente à distinção entre a coesão refe-rencial e a lexical, não percebo bem. Então numa substituição de um nome por um pronome pessoal, não estaremos perante um processo de coesão lexical, por pronominalização, uma vez que remetem para o mesmo referente? E, nesse caso, não se considera que a substituição é realizada por meio da anáfora, neste caso pronominal?

     R: A distinção dos vários processos de coesão é uma questão metodológica que não deixa de manter relações com processos / mecanismos diferenciados, muitas vezes convocando uma interligação estreita ao nível dos enunciados e/ou da superfície textual.
    Se, em termos de coesão referencial, se focalizam relações de dependência entre elementos gramaticais que constroem redes de referência entre enunciados antecedentes / consequentes e suas condições de produção (pelo recurso a anáforas, catáforas, elementos deícticos), no caso da coesão lexical é ao nível do léxico, do vocabulário e das unidades lexicais (com suas relações semânticas) que a questão mais se coloca. Chega-se, neste último caso, a contemplar casos de co-referência não anafórica, que não são considerados na tipologia anterior.
     Assim, substituir um nome / grupo nominal por um pronome é um mecanismo típico da coesão referencial, dado o recurso a um mecanismo de natureza relacional ou gramatical (ex.: o rapaz > ele > lhe > se…), de âmbito mais fechado. Anáforas pronominais são exemplos de coesão referencial, neste sentido estritamente gramatical.
     Já o caso das anáforas lexicais tende mais para um processo de coesão lexical, no qual se contemplam mecanismos mais ilimitados e abertos de actualização do léxico em vocabulário. Daí as relações de (1) sinonímia, (2) antonímia, (3) hiperonímia-hiponímia, (4) holonímia-meronímia, (5) associação, (6) anáfora resumativa, entre outros (ex. 1.: o rapaz > o miúdo > o moço > o jovem > o garoto… / ex. 2: O pobre pedia, mas o rico não ouvia. / ex. 3: Os veículos estavam destruídos: carros, motas, bicicletas. / ex. 4: A flor estava destruída: as pétalas desfeitas, o caule quebrado, as raízes podres. / ex. 5: O polícia controlava o trânsito e passava coimas aos infractores. / ex. 6: A chuva batida, o vento corrido, os relâmpagos faiscantes tornavam a tempestade medonha).
     Neste último caso, a cadeia referencial constrói-se (daí também poder falar-se de coesão referencial), só que apoiada em mecanismos léxicos, não gramaticais.

      Trabalhar na consciência e na reflexão explícita destes mecanismos, das possibilidades de progressão, da gestão de informação e dos raciocínios lógicos associados é um percurso que coloca a gramática ao serviço de competências de leitura e de escrita.
    

sábado, 4 de dezembro de 2010

Mais vale mal acompanhado...

    É sabido que o enunciado paremiológico não é bem assim...

    ... mas é preferível isso a ver certas palavras assim escritas em publicidade:

      Caso para dizer que nem quem muito aprecia café fica indiferente. Assim não quero. Não é "à maneira", mesmo para publicidade que queira funcionar pela negativa.
    Desde quando os vocábulos terminados em 'zinho' são esdrúxulos (terceira sílaba a contar do fim como tónica)?
   Sempre foram graves (sílaba tónica na segunda sílaba a contar do fim da palavra) e respeitam a regra geral do Português: normalmente, as palavras graves não são graficamente acentuadas.
   Uma coisa é a palavra-base (só); outra, a derivada por sufixação (sozinho).

    Por mim, mais vale estar SOZINHO do que mal acompanhado. Com publicidade assim, prefiro outra (melhor) companhia.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Uma lição de vida: 'Sui Caedere - uma Vida, um Erro'

     Uma tarde chuvosa, tristonha, feita de nuvens ensombradas e de gélido sopro...

     No âmbito das actividades do Clube de Filosofia da minha escola, tem um grande número de alunos assistido, no Auditório Municipal de Gondomar, à representação da peça Sui Caedere - uma Vida, um Erro, uma produção dramática de Beatriz Soares e João Ferreira.

 

     A qualidade do texto, o empenho e esforço da representação, a adequação do fundo musical e do enquadramento luminotécnico, a sugestão da encenação, mais o espaço de debate, de reflexão e partilha de valores, de leituras de sinais e de consciencialização do vivido (seja no palco seja no cruzamento deste com a vida) formam um todo humanizador, pedagógico e artístico. Recomendável e a reconhecer.
    "Viver a cultura de forma inclusiva e transformadora" é um dos objectivos da jovem associação In-Skené - gTag. Assim o têm feito; assim o fizeram hoje (no que deram a ver, no que partilharam, no que fizeram ver) e certamente o farão amanhã e noutros tempos futuros.
     Com jovens assim, pelo exemplo que dão, é possível acreditar na vida - porque "a vida vale por si só".
      Por isso, vou voltar a assistir a esta lição sobre a vida.

(Aparte: era isto que devias ter visto e discutido connosco, S; 
foi isto que nos fizeste lembrar, S; 
isto e algo mais não soubemos ler em ti, S).

     ... para um dia de sol sentido na companhia de alunos, de colegas e de um grupo de jovens que tem o teatro na vida e a vida no teatro.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

No tempo dos 'se'

     Prevejo que vou andar uns tempos a tratar o 'se'... no tanto que ele tem de camaleónico.

     Para já, a questão, a dúvida é de ordem sintáctica.

     Q: Vítor, bom dia! Mais uma consulta...
  Na frase "A raposa interessou-SE pelo queijo" o 'se' destacado tem alguma função sintáctica?

    R: As construções do tipo ‘V-se’ apresentam uma multiplicidade de situações: realizações com verbos intrinsecamente pronominais (nos quais maioritariamente é impossível retirar o ‘-se’); realizações reflexivas (nas quais existe identidade correferencial entre o sujeito sintáctico e o complemento directo) e reflexivas de posse; realizações recíprocas; realizações associadas à redução da estrutura argumental do verbo; realizações passivas.
    O caso proposto integro-o nas realizações com verbos intrinsecamente pronominais - com ‘se’ inerente -, (como é o caso de ‘alegrar-se por / com’, ‘atrever-se a’, despedir-se de ‘, ‘divertir-se com’, interessar-se em / por’, ‘zangar-se com’); ou seja, sem função sintáctica na frase (contrariamente aos casos de ‘-se’ reflexo, recíproco ou passivo).
     Assim, a frase teria a configuração sintáctica de um
          a) sujeito (‘A raposa’);
      b) predicado (‘interessou-se pelo queijo’) com um complemento oblíquo (‘pelo queijo’), tomando como núcleo um verbo transitivo indirecto (‘interessar-se’).

     E mais haverá para dizer, quando outros exemplos chegarem...

terça-feira, 30 de novembro de 2010

I know not what tomorrow will bring

      Dizem que há 75 anos foi assim que Pessoa se despediu desta vida, escrevendo a lápis. Uma vida renascida para cada futuro leitor.

      Três quartos de século separam-nos da morte de Fernando Pessoa, anunciada, apenas a 3 de Dezembro, no periódico Diário de Notícias, nos seguintes termos:

Fernando Pessoa, Pintura a óleo do polaco Jacob Porat
     MORREU FERNANDO PESSOA
    Grande poeta de Portugal

     Este foi o título de uma notícia, saída a público um dia depois do seu enterro.
   Declarada a morte no dia 30 de Novembro de 1935, o poeta é sepultado no jazigo da avó (Cemitério dos Prazeres), no dia 2 de Dezembro.
   É do dia 3 a notícia de que se dará conta, embora haja uma curta, publicada no próprio dia do enterro, de O Comércio do Porto, com o seguinte teor:

     "Realizou-se, hoje, o funeral do poeta Fernando Pessoa, ontem falecido, autor insigne do Orfeu, cuja morte causou dolorosa impressão nos meios intelectuais. De espírito crítico admirável, Fernando Pessoa contava 47 anos de idade. Deixa uma extensa obra quási toda inédita e na sua maioria nas línguas portuguesa e inglesa."

       Bem mais extenso é o registo do Diário de Notícias:




in Maria José de Lencastre, 
Fernando Pessoa - Uma Fotobiografia,  
Imprensa Nacional Casa da Moeda e Centro de Estudos Pessoanos, pp. 310-311

     Esta a notícia necrológica.
     Mas, para o reconhecimento do escritor e, acima de tudo do homem, acrescenta-se um episódio de vida, com a verdade, a moralidade e o valor que lhe quiserem dar:
    
     "... ocorre-me que, numa ocasião, entrando eu num eléctrico (recordo-me bem, era da carreira da Estrela), deparo com Fernando Pessoa que me pergunta de chofre: «Já notou uma coisa, ó Pascoaes? Há escritores de quem toda a gente fala e ninguém lê, e outros de quem ninguém fala e toda a gente lê. E destas duas espécies, qual, em seu entender, tem mais valor?» Respondi que aqueles de quem toda a gente fala e ninguém lê, e Fernando Pessoa rematou: «é também a minha opinião».
Teixeira de Pascoaes, entrevista a O Primeiro de Janeiro, 24-5-1950

     Pequenos registos para um (até dois... três... imensos) dos grandes da língua e da literatura portuguesas no mundo.

Papisa... carta de Tarot ou algo mais?

      Na base da História ou de uma lenda, o filme está para quem o quiser ver.

      A segunda carta do Tarot, nos arcanos maiores (logo a seguir à do Mago), é a da Papisa. Com vestes pontifícias, aparece como símbolo da sabedoria, do conhecimento, da intuição, do crescimento, da gestação, da nutrição da alma e do corpo.
      De tudo isto se compõe a personagem fílmica inspirada na obra mais recente de Donna Woolfolk Cross (1996): o romance Pope Joan. Cento e trinta anos antes, The Papess Joanne trouxe fama mundial ao escritor Emmanuel Rhoides... e a sua excomunhão pela Igreja Ortodoxa Grega.

     
    Entre os que apontam a impossibilidade de eleição da Papisa (no século IX) e os que a cruzam com influências de histórias da ortodoxia (e da heterodoxia), não deixa de haver quem busque o fundo histórico que, como qualquer visão da História contemporânea, não deixa de considerar a construção narrativa, a ficção,a versão possível, com o foco nos preteridos ou com a visão não oficial dos factos. Por que razão uma igreja só pode ser encabeçada pelo masculino?
     Trata-se de um drama histórico, co-produção inglesa e alemã realizada por Sönke Wortmann em 2010. Na sede de conhecimento, Johanna von Ingelheim guarda, durante muito tempo, um segredo - o que lhe dará acesso ao saber, ao poder e a um destino tão trágico que será apagado da História (por verdadeira ou por ficcional que seja a narrativa do passado).
    Afinal, a explicação de Dan Brown em O Código Da Vinci, para o afastamento das mulheres do poder eclesiástico, tem o seu traço de verosimilhança ou de verdade... quem sabe!
    
     Porque na História e nas lendas não deixou de haver mulheres que (também) fizeram a diferença.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Porque há homens que fazem a diferença

     Uma melodia para se tirar o chapéu a Charlie Chaplin.

      Primeiro, a versão original (1936) para a banda sonora de Modern Times:


    Depois, ouvir a melodia com a letra e o título acrescentados por John Turner e Geoffrey Parsons (1954), numa versão que Natalie Cole viria a recriar a partir do modelo paterno: o do grande Nat King Cole.

 "Smile" na interpretação de Nat King Cole

 SMILE (even though your heart is breaking)

Smile, though your heart is aching
Smile, even though it's breaking
When there are clouds in the sky
You'll get by...

If you smile
Through your fear and sorrow
Smile and maybe tomorrow
You'll see the sun come shining through
For you

Light up your face with gladness
Hide every trace of sadness
Although a tear may be ever so near
That's the time you must keep on trying
Smile, what's the use of crying?
You'll find that life is still worthwhile
If you'll just... smile

That's the time you must keep on trying
Smile, what's the use of crying
You'll find that life is still worthwhile
If you'll just smile.

Natalie Cole num espetáculo em New Jersey (2014)
     A versão de Natalie Cole tem o soul e o rythm and blues mais o registo de jazz necessários para a plenitude de uma música composta por aquele que mais famoso ficou pelo que fez rir (e chorar) na mudez cinematográfica - Charlie Chaplin, o mais conhecido Charlot, um cómico que, tal como os palhaços, fez (sor)rir também na hora da dor. Mais um sinal de que os contrastes se comple(men)tam.

     Uma canção para um tempo frio e crítico, que aspira ao sorriso para espantar a tristeza, na ânsia de um futuro melhor. São estes, também, os 'tempos modernos'.

domingo, 28 de novembro de 2010

Entre o sagrado e o profano...

    No meio da sagração, do respeito e da fé, nem só as árvores têm vida. A língua também.

    Entre o que haja a respeitar, uma das questões a destacar é a da correcção da língua, no que às convenções ortográficas diz respeito - particularmente as relativas à acentuação.
     Pode o autor da escrita na "placa dourada" (que nada tem de ouro) estar a pensar desfazer um ditongo que, na verdade, não existe. Nem sempre duas vogais juntas constituem ditongo (duas vogais constitutivas de uma sílaba, produzidas numa só emissão sonora). É o caso. Trata-se de um hiato (sequência de duas vogais pertencentes a sílabas distintas).
     E se as rainhas não podem ser "coroadas" com um acento gráfico, o mesmo sucede com as campainhas (do latim 'campanīna-') , as tainhas (do latim 'tagenĭa-'), as fuinhas (do francês 'fouine' ou as grainhas (do latim 'granu-'+inha); ou mesmo todas as palavras terminadas em '-inha' (por serem graves, em termos de acento fónico).

     Sem ser um lugar sagrado, há que respeitar o que as gramáticas e as convenções ortográficas ditam. Não sei se será uma questão de fé, mas o certo é que a língua é para o uso de cada um de nós. Mesmo tendo vida, há que "alimentá-la" com o que a faz ainda reconhecível aos olhos de qualquer falante, ouvinte, leitor. Prova de que não se pode escrever apenas pelo que se diz / ouve.

sábado, 27 de novembro de 2010

Predicativo do sujeito?!... De novo!

    Funções sintácticas, a quanto obrigas (convenhamos umas mais do que outras).

   Q: Num contexto de formação, foi-me indicado que o adjectivo 'feliz' funciona como predicativo do sujeito em 'Ela vive feliz'. Qual a razão ou razões para tal?

   R: Tenho alguma dificuldade em tomar ‘feliz’, à partida e sem qualquer contextualização ou indicação textual prévia, como predicativo do sujeito na frase indicada.
       Primeiro, o verbo ‘viver’ não é sintáctica nem tipicamente considerado um verbo de ligação ou copulativo (condição habitualmente requerida para a presença de um predicativo do sujeito). Depois, entre as valências e as estruturas argumentais típicas implicadas nas realizações de ‘viver’, este verbo assume-se como de realização intransitiva (Alguém vive – VIVER [x]) ou transitiva (Alguém viver em algum sítio / Alguém viver de algo / Alguém viver alguma coisa – VIVER [x, em y] ou VIVER [x, de y] ou, ainda, VIVER [x, y]). Na frase proposta, vejo a leitura de uma realização intransitiva, na qual ‘feliz’ se assume como um modificador de predicado (equiparável a ‘viver feliz / triste / contente / com entusiasmo / à larga / em crise', entre outras possibilidades).
      A aproximação de ‘feliz’ a predicativo do sujeito só a poderia ver em contextos muito particulares, de derivação semântica (nada regulares nem sistemáticos), que tomassem ‘viver’ aspectualmente como um verbo de estado e não como um evento - uma hipótese a ganhar algum sentido numa realização de ‘viver’ enquanto sinónima dos verbos copulativos ‘ser/estar’ (e muito circunscrita a enunciados que obedecessem à configuração do verbo em enunciados genéricos, no presente do indicativo).

   Questão comum a outras dúvidas já abordadas, o predicativo do sujeito não deixa de estar no top. Ficaremos por aqui? Como diria o cantor, "venham mais cinco..." (mas de preferência com outras funções).

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Outra vez o (des)acordo... nos dias da semana

     A propósito do Acordo Ortográfico, eis a novidade que nunca o foi.

   Q: Ouvi dizer que o Acordo Ortográfico já admite a escrita dos dias da semana com letra minúscula. Acha que devo ensinar os meus alunos a escrever dessa forma?

    R: Bem, começo por dizer que não sou eu nem as minhas opiniões que devem orientar o trabalho de um professor com os seus alunos. Limito-me a partilhar ideias que não foram, não são nem nunca serão prescritivas. Aconselho, quando muito, a leitura de referenciais de acção como opção a seguir, mais do que intuições ou usos cuja origem é algo obscura.

Na Antiguidade Romana identificavam-se os dias da semana pelo conjunto de estrelas:
Sol, Lua, Marte, Mercúrio, Júpiter, Vénus e Terra.
         No que toca aos dias da semana, creio que sempre se deve ter ensinado a sua grafia com minúscula (a não ser no contexto habitual para todas as palavras que abrem uma frase com maiúscula). Não se trata de uma questão nova introduzida pelo Acordo Ortográfico, pois qualquer boa gramática do Português (a propósito de orientações gráficas) apresentaria a grafia de 'domingo, segunda-feira, terça-feira, quarta-feira...'.
         Em termos de História da Língua, é um dado que, no nosso idioma, se marcou a influência do Cristianismo por vários meios, um deles pela designação dos dias da semana. Creio ser a única língua, entre as românicas, que apresenta a denominação de alguns dias numa fusão resultante entre um encontro comercial (feira) e o horário das missas realizadas em determinadas regiões: 'feria secunda, feria tertia, feria quarta, feria quinta, feria sexta'.
     Voltando ao ponto do Acordo Ortográfico, aqui não há, de facto, novidade. Esta, genericamente, residirá apenas ao nível dos meses do ano (ex.: janeiro, fevereiro, março, abril... até dezembro) ou dos pontos cardeais e colaterais (ex.: norte, sul, este, oeste, sudeste, és-sueste), exceptuando neste último caso as abreviaturas correspondentes ou as denominações genéricas das regiões geográficas, para as quais se mantém a maiúscula (ex.: N, S, E, O / Desta vez vou de férias para o Norte). 
       
     É tempo de nos convertermos ao que já o Cristianismo ditava, na laicização, na secularidade e na mundanalidade das feiras (vem de longe, por certo, este gosto por 'centros comerciais') cruzadas com a humildade das missas. Tudo muito minúsculo.

Do que vive uma nação?

     As palavras são de quem nasceu há 165 anos, o fundador do "Distrito de Évora" (1867) e o conferencista que proclamou o "Realismo como nova expressão da arte" (1871).

     Reencontro-me com o seguinte excerto do seu pensamento:

      "Uma nação vive, próspera, é respeitada, não pelo seu corpo diplomático, não pelo seu aparato de secretarias, não pelas recepções oficiais, não pelos banquetes cerimoniosos de camarilhas: isto nada vale, nada constrói, nada sustenta; isto faz reduzir as comendas e assoalhar o pano das fardas - mais nada. Uma nação vale pelos seus sábios, pelas suas escolas, pelos seus génios, pela sua literatura, pelos seus exploradores científicos, pelos seus artistas. Hoje, a superioridade é de quem mais pensa; antigamente era de quem mais podia: ensaiavam-se então os músculos como já se ensaiam as ideias. "
Eça de Queirós, in "Distrito de Évora"

      Convenhamos que o pensamento é actual (algumas soluções para a contenção da despesa?) e orientador para a formação e a educação (não as do faz de conta nem as das 'novas' oportunidades, por cumprir e apoiadas em aparências) que conjugam o saber com o poder e o saber fazer.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Entre sermões e pequenas narrativas (ou entre Vieira e Leiria)

    Entre peixes que são metáfora dos homens e vícios / virtudes neles alegoricamente representados, Padre António Vieira fez passar no Sermão de Santo António uma mensagem aos homens do seu tempo (e não só).

      Mas nem só de sermões vive o Homem.
    Há narrativas bem mais pequenas que, com maior ou menor adaptação face ao original, não deixam de fazer ver algo mais do que simples frutos...

    
    Mário-Henrique Leiria assim o escreveu, dizem, com algum 'nonsense' e com o legado surrealista nos Contos do Gin-Tonic; Mário Viegas assim o contou e deu a conhecer, na irreverência e com o olhar matreiro de todos os que se superam na ingenuidade e no imediatismo das palavras ditas... e que ficam vivas.

    Entre a letra e a voz, pode o Homem ver os sinais do(s) Tempo(s), particularmente no dia de HOJE. Assim o queira (para não dizer o típico 'Amen', mais adequado aos sermões vieirianos) neste "Rifão Quotidiano".