sábado, 31 de maio de 2014

Casos de pontuação: a vírgula

      Digamos que é uma forma útil esta, a de terminar o mês com um pedido justificável.

     Quando são eles a pedir, nada como instruir nos meios que procuram (ainda que uma boa gramática os pudesse orientar de forma mais completa).
virgul A feto, de Sílvio Prado (poema concreto)
(in http://poesiavisualsilvio.blogspot.pt/2010_06_01_archive.html) 
    Q: Professor, tenho tanta dificuldade em acertar nas vírgulas que gostava de lhe pedir, se não fosse pedir muito, umas dicas para ver se acerto mais. Obrigado.

    R: Isto quanto a dicas é tarefa complicada, porque o assunto não é tão simples quanto isso.
     Em vez de dizer o que pode ser feito, talvez seja bom começar por referir o que nunca pode acontecer (talvez assim já se acerte mais do que é costume):

I - Situações nas quais não se pode utilizar vírgula:
     . nunca colocar uma vírgula entre o sujeito e o predicado de uma frase
Alguns alunos ainda se preocupam com a correção da pontuação.
                                   Sujeito                             Predicado                                                                    

   . nunca colocar uma vírgula entre o núcleo verbal do predicado e o(s) respectivo(s) complemento(s) e/ou predicativo(s)
Muitos alunos consideraram a vírgula um sinal de pontuação desnecessário.
[núcleo verbal  + CDirecto    +    Predicativo do CD]                      

    . nunca colocar vírgulas antes de parêntesis ou travessões que funcionem como encaixes ou assinalem modificadores não restritivos
Os estudantes (atentos à explicação) melhoraram os seus desempenhos.

    . nunca colocar vírgulas em sequências que restrinjam ou delimitem uma entidade
O Porto que eu conheci já não existe.

       Para além destas situações essenciais (e específicas), sem considerar alguns casos de uso estilístico ou de variação / gestão possível, é comum considerar os seguintes cenários de utilização da vírgula:

II - Situações de utilização obrigatória de vírgula:
    . assinalar a separação dos elementos de uma enumeração (à exceção do último, por norma introduzido pela conjunção copulativa 'e')
Havia na localidade uma escola, uma igreja, uma mercearia e uma farmácia. 

     . marcar a presença de um vocativo na frase
Meu caro amigo, é favor concluir a tarefa pedida.
Faz o trabalho que te pedi, rapaz.Sem trabalho, meus caros amigos, não condições para grande sucesso.


    . introduzir as coordenadas iniciadas pela conjunção adversativa ‘mas’ ou pela explicativa ‘pois’
Ele estudou a matéria várias vezes, mas continuava a não perceber alguns assuntos.
Todos ficaram desolados com os resultados, pois as notas estavam longe de ser boas.

  . delimitar orações subordinadas relativas não restritivas (apositivas ou explicativas), separando-as da oração principal com duas vírgulas (no caso de um encaixe) ou uma (subordinada à direita)
O ambiente, que se tornou uma questão política, está a degradar-se.
Todos discutem a questão do ambiente, que se tornou uma questão política
.

   separar elementos / segmentos que funcionem como modificadores ou que constituam sequências de comentário / opinião
Para ser franco, agora, não sei o que te possa dizer.
Na noite de ontem, a chuva , infelizmente, não parou de cair.

   . segmentar as subordinadas participiais, gerundivas ou infinitivas quando funcionam como modificadores de um elemento / uma oração subordinante 
Concluído o trabalho, saiu do posto de emprego. (participial
Chegou atempadamente a casa, correndo o mais que pôde. (gerundiva
Teve uma ótima surpresa, ao receber uma visita inesperada. (infinitiva

    . encaixar expressões com valor reformulativo ou explicativo
Ele infirmou, ou seja, não confirmou a história do amigo. 

    . assinalar frases incisas (intercaladas) numa frase superior
O livro, disse o editor, foi um sucesso no estrangeiro.  

  . destacar uma interjeição, sempre que esta é seguida ou precedida de outras palavras
Ai, se esta chuva parasse de vez!

    . separar, numa data, a referência feita ao lugar
Espinho, 31 de maio de 2014 

    . destacar um segmento frásico anteposto face à ordem normal, típica da frase
Um Ipad, ele comprou-o com o dinheiro ganho.

   . marcar a omissão de um verbo que possa ser subentendido a partir de uma sequência anterior (onde se encontra expresso), para evitar repetição desnecessária
Na fila, à frente, estava uma só pessoa; atrás, mais de uma dúzia delas. 

     Depois do estudo, a exercitação.
   Fico-me pelas situações convencionadas. Outras haverá, por razões estilísticas ou motivações não convencionais, que não rezam nesta história.
     
    Espero que, depois da explicação e da exercitação, nova luz se faça na utilização da vírgula. Há quem diga que ela tem, por vezes, o formato da lua. Bom seria que, neste assunto, a noite desse lugar ao dia.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Brinquemos!

     Depois de tanta correção nos testes, vai-se ao Facebook e...

     Impõe-se corrigir, de novo. 
     Caso para dizer: "Se não podes contra eles, junta-te a eles!

Colhido da circulação no "Feissebuque"


     Para terminar em beleza, apetece fechar com "Cumcordo plenamen-te" (Que tal?!)

terça-feira, 27 de maio de 2014

Entre preposições e conjunções, e outras classes mais

    É verdade que a palavra parece ser a mesma, mas nem tudo o que parece é!

   E não o sendo, é bom que se faça a distinção devida. Há que pensar e aplicar testes de verificação. Procurar a resposta nas soluções não chega.

     Q: Professor, na frase "Os alunos pediram para adiar o teste", como se classifica o "para"? E porquê? Vi nas soluções que é uma conjunção, mas gostava de saber a razão para não ser uma preposição. Pensava que era.

     R: Percebo a questão, mas, de facto, o "para" da frase proposta é uma conjunção.
     Há que reparar que "para" segue o verbo 'pedir', o qual pede um complemento. A estrutura argumental do verbo é a seguinte: "Alguém PEDE alguma coisa". Parar a frase em "Os alunos pediram" resulta numa sequência incompleta, pelo que é de esperar que alguém pergunte qualquer coisa como "Os alunos pediram... O QUÊ?" Ora, esta última é a pergunta associada ao complemento direto. A resposta "para adiar o teste" contempla precisamente essa função sintática, configurada numa oração subordinada introduzida por uma conjunção completiva (completa o sentido do verbo com um complemento) ou integrante (integra o predicado).
    Seja "Os alunos pediram para adiar o teste" seja "Os alunos pediram que se adiasse o teste", tanto o "para" como o "que" assumem-se como conjunções subordinativas completivas, pela razão atrás indicada.
     Por norma, a preposição "para" distingue-se da conjunção atendendo ao facto de a primeira poder ser seguida por um grupo nominal substituível por um pronome na forma oblíqua (isto é, "mimti / ele, ela / nós / vós / eles, elas").
     "Para" é, efetivamente, um caso muito camaleónico da língua portuguesa, ainda mais com o que o mais recente Acordo Ortográfico introduziu (ao eliminar o acento gráfico de algumas formas do verbo 'parar'):

i) Antes de fazer asneira, para.
   < verbo parar, no modo imperativo>

ii) Para pensar, é necessário parar.
     < conjunção subordinativa final, a introduzir uma oração subordinada adverbial final - retirável da frase e que funciona como modificador >

iii) Ele falou para mim; não para ti.
     < preposição, seguida de um pronome pessoal na forma oblíqua - o comportamento típico das preposições quando combinadas com pronomes pessoais>

iv) Peço a todos para manterem a calma.
     Peço que todos mantenham a calma.
     < conjunção subordinativa completiva ou integrante, a introduzir uma oração subordinada substantiva completiva - que funciona como complemento direto selecionado pelo verbo 'pedir' e que não pode ser retirado da frase, sob pena de esta ficar incompleta e incorreta >
   
   Conclusão: o contexto da frase determina a classificação das palavras, quanto à classe a que pertencem, para além de se poder contar com alguns testes que auxiliam na identificação desta última.

segunda-feira, 26 de maio de 2014

De volta ao vento frio

    No final de maio e a Serra da Estrela tem neve (segundo o noticiado na televisão).

    O norte litoral é soprado pelo vento frio. De volta aos casacos e com o guarda-chuva à mão, apetece cantar a letra dos Expensive Soul (não pelas saudades do cheiro das manhãs de inverno, mas das noites de verão):

Vídeo editado por Marco Oliveira para o novo sucesso dos Expensive Soul

QUE SAUDADE

Se um dia falar de ti
É porque, tu ficaste
Tu marcaste

Se foi bom ou mau
Eu já esqueci
E não, não me lembro mais
De trocar as vogais

Sofre, sofre, ao bater do tempo
Às vezes nem lembro, pra não ficar cinzento
O que é feito desses momentos?

Não é no fado só
Mas que saudade eu tenho

Oh, que saudade eu tenho
Do cheiro das manhãs de inverno
Pensei que fosse eterno

Oh, que saudade eu tenho
Daquelas noites de verão
Havia sempre solução, para nós
Havia

Se um dia voltasse para trás
Então eu, deixava-me ficar
Faz tempo a sonhar

Fazer tudo de novo, outra vez
Agora eu vou aproveitar
Para te encontrar

Mas sofre, sofre, ao bater do tempo
Às vezes nem lembro, pra não ficar cinzento
O que é feito desses momentos?

Não é no fado só
Mas que saudade eu tenho

Oh, que saudade eu tenho
Do cheiro das manhãs de inverno
Pensei que fosse eterno

Oh, que saudade eu tenho
Daquelas noites de verão
Havia sempre solução, para nós
Havia

Oh, não sei se tu sabes que tudo muda
A saudade bate mais forte, mas também o tempo não ajuda
É a recordação, é a esperança do avesso. Foram tantas que algumas até me esqueço
A idade avançou, o tempo mudou, a saudade bate mais forte porque eu sei que quase tudo acabou
É a inocência da irreverência ausente da existência da aparência da mesma adolescência

New Max:
E não há nada
Nada a fazer

Oh, que saudade eu tenho
Do cheiro das manhãs de inverno
Pensei que fosse eterno

Oh, que saudade eu tenho
Daquelas noites de verão
Havia sempre solução, para nós
Havia

Mas que saudade, saudade do tempo
Quero voltar atrás, que saudade, que saudade que eu tenho
Que saudade, que eu tenho

      Depois do álbum Utopia (2010), este "Que saudade" é o segundo single da nova produção do grupo de Leça de Palmeira.

      Sempre dá para recordar o verão... Verão como se esquece o clima que nos rodeia (mesmo que se fale também do inverno).

sábado, 24 de maio de 2014

Um "se" verbal e intrinsecamente integrado

   Já houve tempo para se discutir muito acerca do 'se'. Voltamos ao assunto, na qualidade de pronome, ainda assim com muita variedade de classificação.

    Tudo porque há quem queira umas dicas para distinguir termo tão camaleónico! Assim seja.

   Q: Vítor, tenho alguma dificuldade em ver quando o pronome 'se' faz parte do verbo (o 'se' inerente). Há assim alguma pista que permita identificá-lo de forma fácil? Obrigado.

   R: Caríssima colega, creio que está a falar concretamente daqueles verbos ditos pronominais, que aparecem quase sempre com a forma de pronome pessoal em concordância em pessoa e número com o sujeito, ainda que este último não desempenhe nenhuma função sintática. Destaco este último dado, porque nos verbos que apresentam '-se' inerente também estão incluídos outros que veem a sua estrutura de base transitiva reduzida (por exemplo, abrir-se, afundar-se, assustar-se). Não se tratando destes últimos, que obedecem a uma reconfiguração na construção sintática da frase (de realização transitiva para intransitiva: "O barulho assustou a criança" [realização transitiva] > "A criança assustou-se [realização intransitiva]"), passo a centrar-me nos casos dos verbos também chamados de intrinsecamente pronominais.
      Entre os que requerem sempre o pronome (ex.: apiedar-se, atrever-se, condoer-se, queixar-se, suicidar-se) e os que o dispensam (ex.: rir[-se], debater[-se]), há toda uma gama de verbos que admite construções intransitivas ou transitivas indiretas (com complemento oblíquo), não as transitivas diretas (assinaladas com *, demonstrando agramaticalidade):

i) A Teresa apaixonou-se (pelo Rodrigo).
ia) *A Teresa apaixonou / *A Teresa apaixonou o Rodrigo. / *A Teresa apaixonou a sua pessoa pelo Rodrigo. 

ii) O jurado absteve-se (de votar num dos concorrentes).
iia) *O jurado absteve / *O jurado absteve a votação / *O jurado absteve a sua pessoa de votar.

iii) O público riu(-se) (com a piada do artista).
iiia) *O público riu a piada / *O público riu a gargalhada.   

iv) Pedro da Maia suicidou-se.
iva) *Pedro da Maia suicidou / *Pedro da Maia suicidou a sua pessoa / *Pedro da Maia suicidou o marido traído. 

     De registar, por fim, que o 'se' (e as variantes pessoais do 'me' / 'te' / 'nos' / 'vos') integrante dos verbos em foco (intrinsecamente pronominais) não admite funcionalidade anafórica nem as paráfrases associadas aos pronomes pessoais reflexos ("a própria pessoa") ou aos pessoais recíprocos ("um ao outro").

      As facilidades podem não ser muitas, mas ficam aqui alguns testes de verificação a aplicar para a distinção pedida.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Noite de Histórias

    Ao final do dia, a escola voltou a ser ponto de encontro.

  Alunos, professores, funcionários, encarregados de educação, familiares, amigos foram o núcleo para muitos laços de afeto e de reconhecimento do trabalho feito com dedicação.
   No Centro de Recursos - Biblioteca Escolar, todos ocuparam o seu lugar para aplaudir aqueles que se dedicaram à leitura, à escrita. No que a estes últimos diz respeito, ficou o orgulho de ver publicado, em livro, o fruto do trabalho: narrativas selecionadas e premiadas naquela que foi a terceira edição do concurso promovido pela Oficina da Língua (da Escola Secundária de Gondomar). O lema foi inspirador - "Histórias com um livro dentro" -, resultou em cerca de cem contos e culminou na edição de quase meia centena.

No Centro de Recursos - Biblioteca Escolar da Escola Secundária de Gondomar (ESG)

    A criatividade, o espírito de partilha, os reencontros, as vozes às histórias, um fundo musical e a generosidade dos que acompanharam o evento compuseram o momento que assistiu ao desejo de um romance querer ser conto; ao aparecimento de "um livro com alma de árvore"; à amizade que os livros (também) oferecem; "à espera do avô Anastácio", como grande ouvidor de histórias; a "o prazer de viver" nas páginas de uma publicação ilustrada por dois jovens alunos do 7º ano de escolaridade (em colaboração com a respetiva professora de Educação Visual).

    Mais um dia (ou melhor, uma noite) e uma história (ou melhor, várias) para contar no grande livro da vida dos participantes e dos dinamizadores da atividade, numa escola que contou com algumas das suas principais personagens.

domingo, 18 de maio de 2014

Chumbo por razões evidentes e excessivas

      Custa muito COMPOR o que nasceu torto?

      A pergunta feita vem na sequência de um rodapé exibido no Jornal das 8 (TVI), do princípio ao fim mantido para mau grado da correção na escrita:

Fotograma obtido a partir da emissão televisiva do Jornal das 8 de hoje.

      O lamento de João Ferreira faz todo o sentido, mas quanto aos rendimentos a REPOR muito há para dizer. Nem sei o que SUPOR! Ainda assim, a crítica deve ser focada no erro circundado a vermelho: se a forma infinitiva do verbo 'pôr' é acentuada graficamente (com acento circunflexo), o mesmo não sucede com as com ela formadas (a maioria já proveniente do latim) - como é o caso de 'antepor, apor, compor, contrapor, contrapropor, decompor, depor, descompor, dispor, entrepor, expor, impor, indispor, interpor, justapor, opor, pospor, predispor, pressupor, propor, recompor, repor, sobrepor, subpor, supor, transpor'.
    A necessidade do contraste fonológico e gráfico entre o verbo 'pôr' e a preposição (simples) 'por' não se coloca nos últimos casos. Daí o erro de utilização do acento, que não devia ocorrer para bem dos olhos de todos os leitores das notas de rodapé televisivas.

      Se for preciso ajuda, é só pedir ou PROPOR... Ao DISPOR, para não DESCOMPOR.

sábado, 17 de maio de 2014

Complexidades sintáticas, em diferentes níveis

  Pode uma pequena expressão causar problemas de processamento e análise numa frase extensíssima.

     Regressemos à sintaxe e às funções, a bem da discussão num grupo disciplinar.

     Q: Boa noite, Vítor.
    Tenho seguido com atenção as suas preciosas contribuições em todas as questões, mas com especial cuidado as que se referem à Gramática.
     Não sei se posso/devo ousar colocar-lhe uma dúvida que surgiu no seio do meu grupo disciplinar e que provocou algumas incertezas.
    Partamos, pois, da frase: "Também por isso, vai para dez anos, aprendi a descortinar sentidos na ausência deliberada de pontuação cultivada com mestria pela língua afiada de Luís Sttau Monteiro e generosamente ...
     A pergunta era... que função sintática desempenha a expressão "com mestria"?

    R: Olá, colega.
     Agradeço as palavras elogiosas e prossigo com a indicação de que, naturalmente, pode e deve colocar as dúvidas que surgirem. Se estiverem ao meu alcance, procurarei responder o mais rápido possível.
   A frase de partida que propõe apresenta uma configuração sintática muito complexa. A função a considerar encontra-se não ao nível da frase matriz, mas de sequências dependentes de segmentos / funções nucleares desta última.


   Assim, "Com mestria" é um segmento que faz parte de uma subordinada não finita participial, com o propósito de caraterizar "a ausência (deliberada) de pontuação". Essa subordinada é a projeção de uma construção passiva, entretanto marcada por um processo de elipse (conforme o poderá rever em "a ausência deliberada de pontuação [foi] cultivada com mestria pela língua afiada de Luís de Sttau Monteiro"). Ora, é ao nível desta subordinada oracionalmente recomposta que se impõe analisar "com mestria". Trata-se de um modificador do grupo verbal que tem o verbo "cultivar" como principal (da sequência subordinada, sublinho). Tal função sintática pode ser provada pelo facto de a estrutura argumental do predicador verbal implicar que 'alguém / algo cultiva alguma coisa' (ou passivamente configurado como 'alguma coisa é cultivada por algo / alguém'). O modo como se processa a situação ("com mestria") corresponde, portanto, ao modificador do grupo verbal, perfeitamente retirável da sequência frásica e não comprometendo a correção desta.

      Na expectativa de ter correspondido à necessidade criada, chamava atenção para o facto de se estar a pedir uma função sintática dependencial (em termos de nível de análise) e de processamento difícil (até pelos processos contemplados na construção complexa da frase).

sexta-feira, 16 de maio de 2014

O 'Nós' que será o que não é

     No dia em que surge a empresa-fusão que é a ZON e a OPTIMUS.

  Tanto mistério, tanta aposta (e tanto gasto... mal gasto!) numa nova imagem... e, na nova marca, esquecem-se do que faz a diferença.
    Dizem que há mais televisão, internet, telemóvel e cinema em nós; que mudaram...
    Querem ser "Nós" e apresentam-se como "Nos":


    Pronto! Deu nó! 
   Houvesse respeito pelo país onde trabalham e pela língua que usam e sempre poderia esticar-se um tracinho do sol (por vezes, colorido), para sugerir a presença de um acento que fizesse a leitura coerente com a escrita:


    Valores mais altos se "alevantam", diria o poeta, e certamente estes não são os mais culturais ou espirituais.

    Tristes das empresas que não respeitam a língua dos clientes que dizem servir. Ai, se cada aderente exigisse uma marca / imagem correta como sinal da qualidade dos serviços!

sábado, 3 de maio de 2014

(Para) onde nos levam algumas perguntas...

     O mínimo que se pode dizer é que há quem procure tornar monolítico o que não é tão único ou basilar.

        Tudo começa por a língua estar em ação concreta, contextualizada e resultar de uma intencionalidade e funcionalidade marcadas por necessidades específicas de comunicação e valores de natureza pragmática. E daí haver quem veja mais do que a mera classificação (de outro alguém) propõe.

          Q: Boa tarde, Vítor.
        Isto está a tornar-se um hábito, quero dizer, o facto de estar a incomodá-lo com questões e dúvidas, como se tivesse obrigação de me esclarecer. Espero que possa desculpar-me pelo atrevimento, que só posso justificar pela confiança que me merecem as suas explicações. Desta vez, precisava de saber como se classifica o ato ilocutório concretizado no enunciado "Estão admirados?", cujo enquadramento textual passo a transcrever: 
     
    «O jornalismo, aterrorizado com a ideia de que a cultura é pesada e de que o mundo tem de ser leve, nivelou a inteligência e a memória pelo mais baixo denominador comum, na esteira das televisões generalistas. Nasceu o avatar da cultura de massas que dá pelo nome de light culture em oposição à destrinça entre high e low. O artista trabalha para o «mercado», tal como o jornalista, sujeito ao rating das audiências e dos comentários online.
      A brigada iletrada, como lhe chama Martin Amis, venceu.
      Estão admirados? John Carlin, o sul-africano autor do livro que foi adaptado ao cinema por Clint Eastwood, «Invictus», conta que Nelson Mandela e os homens do ANC, na prisão, discutiam acaloradamente, apaixonadamente, Shakespeare. Foram «Júlio César» ou «Macbeth», «Hamlet» ou «Ricardo III» que os acompanharam. Não é um preciosismo. A literatura, o poder das palavras para descrever e incluir o mundo num sistema coerente de pensamento, é, como a filosofia e a história, tão importante como a física ou a álgebra.»


    A solução apresentada na chave de correção da prova onde surge esta questão é a de "ato ilocutório diretivo", suponho que por se tratar de uma frase interrogativa, mas será possível perceber neste enunciado a intenção de levar o interlocutor a determinada ação? A mim, parece-me mais correta a sua integração nos atos expressivos, podendo reforçar a própria admiração do locutor face ao assunto de que fala, mas também não tenho a certeza.
     Pedindo-lhe desculpa pelo trabalho que lhe estou a dar e pelo abuso, agradeço-lhe a ajuda que puder dar-me.
      Com os melhores cumprimentos.


      R: As primeiras palavras impõem-se para agradecer a confiança e o interesse que tem demonstrado por este espaço de partilha. E, como tal, nunca será abuso procurar respostas para dúvidas que, não sendo exclusivas, poderão ter respostas menos individuais, mais consensuais e sustentadas linguisticamente.
    Percebo perfeitamente a  dúvida colocada, considerando o contexto de produção adiantado para a interrogação "Estão admirados?" e o confronto com a situação de teste / avaliação descrita, mais o texto em que esta se baseia.
       Basta a leitura do excerto transcrito para se verificar que a interrogação em foco é de carácter retórico, o que já por si coloca de parte a chave de correção (cenário de resposta) proposta para a prova de avaliação a que alude. Quem a propôs apoiou-se simplesmente na estrutura formal do enunciado, esquecendo-se que nem sempre há correspondência entre a classificação ou produção de um ato de fala e o recurso a estruturas formais específicas ou exclusivas (no caso em análise, ver um ato diretivo sempre que surja um enunciado interrogativo). Na verdade, não pode ser seguido este raciocínio, pois frequentemente empregam-se estruturas típicas de certos atos de fala para ativar um outro ato bem distinto (ex.: dizer "Está frio aqui" vai muito além da natureza assertiva, quando, num espaço fechado e que se pretende protegido, se associa a um ato diretivo, esperando-se, então, que alguém feche a porta ou a janela que possa estar a provocar o frio sentido). São os chamados atos ilocutórios indiretos, decorrentes de um valor pragmático, com uma força ilocutória distinta do que o formato inicial dos enunciados propõe.
    Segundo a linguista Catherine Kerbrat-Orecchioni, na obra La question (1991: 25), as perguntas retóricas figuram entre atos ilocutórios indiretos: o locutor não interroga senão retórica ou ficticiamente, sem esperar uma informação sobre algo que desconhece. No limite, a questão é expressão de uma reação ou de uma pressuposição do locutor, que poderá eventualmente admitir ao alocutário (ouvinte / leitor) uma confirmação ou infirmação face ao pressuposto implic(it)ado. Servindo para exprimir a dúvida, a perplexidade, a incerteza, a contingência, é no âmbito da atitude do locutor que tudo se coloca (em termos de lamento, reprovação, indignação, protesto, afastamento ou distanciamento), para além de se poder marcar uma (re)orientação face ao discurso já produzido.
    Enquanto mecanismo textual retórico-poético e/ou retórico-argumentativo, a interrogação retórica satisfaz a condição da pertinência que, no caso em estudo, permite introduzir um pressuposto: não é possível que alguém se admire com a situação constatada no primeiro e segundo parágrafos transcritos (a mercantilização dos artistas). O locutor reage criticamente, parecendo-lhe impossível que não se prefira atentar nos exemplos do parágrafo seguinte, mais consentâneo com a importância que o locutor dá à literatura para a formação de grandes homens e de regimes sociais coerentes (afinal, o que seria desejável a todos).
    Portanto, o enunciado "Estão admirados?" está matizado por uma modalização significativa que faz derivar aquilo que à partida era um ato de fala direto num indireto; o que era pergunta transforma-se em interrogação retórica, não com o objectivo de que o alocutário cumpra uma ação verbal ou não verbal, mas com o propósito argumentativo ou com a expressão avaliativa de um locutor relativamente a um certo estado de coisas. Tomo, assim, a presente interrogação (retórica) como a configuração de um ato ilocutório expressivo. É muito mais admirável o que Mandela e os homens do ANC fizeram na prisão do que certos "artistas" fazem (supostamente) em liberdade.

       Nesta linha de raciocínio, apetece-me terminar com Jorge de Sena: "Por que pergunto, se já sei porquê?" (in "Tendo lido uma carta acerca de um seu livro de poemas..." - Poesia I, 1977); ou então lembrando aquela pergunta de Padre António Vieira no final do primeiro parágrafo do Sermão de Santo António ("Não é isto verdade?"), para a qual já tinha resposta ("Ainda mal!"). Interrogações retóricas que estão mais para o contexto de produção ou de expressão do pensamento de quem as constrói (do que para a voz que lhes possa vir a dar resposta).