sábado, 31 de dezembro de 2016

No fim... para começar

     Termina o ano com poesia.

     Carlos Drummond de Andrade, um dos principais poetas da segunda geração do Modernismo brasileiro, escreveu-o melhor que ninguém:

     in Poesia errante, Rio de Janeiro, Record, 1988

       Não é a primeira vez que o cito na passagem do ano (há sete anos fiz o mesmo). Palavras simples para terminar um ano e passar, qual voo de pássaro, ao início de um novo. 

        Que 2017 seja ano de voos, de música e de alegrias encontradas para todos.

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

É para ouvir e escrever bem!!!!


     Acordo de manhã com o inquérito de rua da jornalista do "Bom Português, questionando a forma correta de escrever: altofalante ou altifalante? Na indecisão de alguns transeuntes, chega a hora de acertar: a voz-off assume que 'altofalante' não existe, que 'altifalante' é a forma correta e que 'alti' é um prefixo.
     Começando pelo fim, não ter consciência (morfológica) de que em [alti] está presente um termo latino usado na formação de palavras pode ser justificado pelo afastamento progressivo face às origens da nossa língua; todavia, para um programa que pretende usar e dar a conhecer o "bom português), é expectável que haja algum estudo que nunca deixaria de reconhecer, à partida e sincronicamente, a noção de altifalante como próxima de um dispositivo / aparelho que permite falar alto. Nem se pode dizer que se trate de um elemento morfológico incomum, atendendo a palavras como 'alticolúnio', 'altícomo', 'altiloquente', 'altímetro', 'altimurado', 'altipotente', 'altirrostro', altissonante' ou 'altitonante', todas a comportar o sentido comum de algo alto, elevado (traduzido na forma ora de um adjetivo ora de um advérbio).
     Apontar para um prefixo (e, por associação, situar a formação da palavra no processo da derivação) é, ainda, não ter consciência de que 'altifalante' é uma palavra composta, no mínimo, induzindo em erro o telespectador (já que de uma rubrica televisiva se trata). 'Alti' é um elemento latino usado na composição de palavras, nomeadamente na composição morfológica. Se derivação existe (e por sufixação) é apenas na formação do termo 'falante' (< fala), a que, posteriormente, se juntou o radical latino.
Um alto-falante / altifalante conforme o gosto de cada um
   Por fim, 'altifalante' é, por certo, a forma vocabular mais comum ou corrente, tanto na fala como na escrita. Nesta última, por convenção gráfica, deve ser tomada como a forma correta, perante as duas hipóteses propostas. Ainda assim, talvez não fosse mau acrescentar que, perante a admissão da realização 'alto-falante' em termos orais, a versão escrita desta última é configurada com um hífen - dado, aliás, acessível a qualquer utilizador da língua e corroborado pelas entradas de alguns dicionários ou por registos de publicações relacionadas com o tratamento de vocabulário. A consulta online do Dicionário Priberam permite encontrar tanto 'alto-falante' como 'altifalante'. O Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa também contempla ambas as formas. O Vocabulário da Língua Portuguesa de Rebelo Gonçalves segue o mesmo exemplo, o mesmo acontecendo com o Dicionário da Porto Editora (considerando 'altifalante' a forma preferível). Assim sendo, as duas formas (alto-falante e altifalante) são legítimas, por mais que uma delas seja mais frequentemente usada pelos falantes do português.
     Se em termos de escrita não existe 'altofalante', um pequeno hífen faz a diferença, permitindo a existência gráfica para representar uma variante sonora admissível.

    Mais uma ocorrência (quase a ser treta) para se exigir maior qualidade e rigor no serviço público, quando da própria língua se trata. 

domingo, 25 de dezembro de 2016

Parece cada vez menos natal!

     É inverno, é domingo e brilha o sol.

    Pelos vistos, a tradição já não é o que era, no que ao clima diz respeito. Quanto à época festiva, parece-se cada vez mais com o que não devia ser - fruto dos tempos, que talvez possam mudar quando se der menos importância ao que nada vale. As corridas desenfreadas, as compras que nem sempre trazem felicidade e os excessos que dão em indisposições... Desencantos persistentes.
      Desejo o regresso às origens e ao (re)nascimento de um tempo mais virtuoso, tal como o poeta:

Presépio exterior, frente à Capela da Nossa Senhora da Ajuda - Espinho
(Clicar na imagem para ler o poema, de Miguel Torga) - Foto VO

      Com paz, sossego, descanso e com sol, assim recomendo este dia de natal: mais primaveril, de luz e azul (porque junto ao mar). Um natal mais natural e menos desigual.

      E relembro a canção: "A todos um bom natal..."

sábado, 24 de dezembro de 2016

É Natal... sem Compal!

    Permitam a rima, que nem saiu mal.

    Vai uma pessoa tomar café, para aquecer a manhã deste dia de noite natalícia, e depara com o que não quer. 

Exemplo de publicidade indesejada (Foto VO)

      Começo a pensar que é kharma. Ainda por cima, ler que Compal é mesmo natural chega a ser tão grave quanto o erro de acentuação.
   O acento grave marca a contração da preposição 'a' com o determinante artigo 'a(s)' e o determinante demonstrativo 'aquele/a(s)', ou o pronome demonstrativo 'aquilo'. 
      Com o verbo ser não se contrai nada, senhores! Tristeza de publicitários, gráficos e empresas que divulgam o erro. Apetece dizer que É um erro beber Compal.

     É Natal! Ninguém leva a mal, mesmo que não seja Carnaval! Não É? (Lembro-me de uma professora que dizia "Ninguém escreve 'é' com acento grave", quando deparava com tamanho erro! Mal ela sabe que o 'ninguém' está a revelar-se e a propagar-se).

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Embirrações

    Reconheço que faço birra com algumas palavras ou expressões. E não são poucas as embirrações!

    Os meus alunos sabem que não suporto o verbo 'meter', particularmente quando não há condições para o utilizar (por exemplo, quando dizem para 'meter no quadro' ou para 'meter no papel' fico com cara de surpreso, ou franzo o sobrolho, por desconhecer como se pode 'meter' em superfícies planas). Eles "metem" vírgulas, "metem" respostas, "metem, metem, metem" espantosamente o que não pode ser metido e muitas vezes em locais inapropriados. Conclusão: embirrei com o verbo 'meter'.
    E quando o texto diz ou fala, por maior que seja a personificação, volto a embirrar. E o "tá (a)qui"?! Eu bem lhes pergunto se estão a falar do depilatório (Taky), mas mais me valia estar calado (porque tenho de lhes explicar a piada e fazê-los saber que há um produto homófono ao que dizem. Era tão melhor dizerem 'está aqui'! Não é por nada, mas sempre haveria a hipótese de não me aparecer o verbo 'tar'.
     Depois é a vez do '(um) bocado'. Eles ficam "um bocado tristes" (dizem) por os chamar à atenção, mas é só por o "bocado" não lhes sair da boca nem da cabeça. Pelos vistos, não só a eles.
    A propósito do início do "Comic con", há pouco tempo lia-se o seguinte, num apontamento do Porto Canal que circulou no Facebook:

'Post' do Facebook que tem "um bocado" que se lhe diga!

    Isto de mostrar "um bocado" é caso para perguntar se é coisa que se coma e / ou quantidade acompanhada de qualidade. Duvido. É triste que um meio de comunicação social (se) divulgue com o pior exemplo, em porções, pedaços. É, no mínimo, indigesto!
     Há quem sofra "um bocado"; eu prefiro sofrer pouco ou muito (menos, se for possível). Há quem ache "um bocado" feio, triste ou nojento. Eu acho execrável! Há quem chegue "um bocado" antes do tempo; eu prefiro chegar à hora, mas pode acontecer que seja um pouco antes ou depois, se ninguém ficar algo (e não "um bocado") aborrecido ou incomodado.

   Pergunto: não haverá por aí um herói ou uma heroína que nos livre destas banalidades tão indesejavelmente comuns? Só para eu não embirrar tanto.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Obrigado, RAP!

     Com o agradecimento devido à OC, também, por me ter feito chegar aos olhos (porque de leitura se trata) a última crónica de Ricardo Araújo Pereira (RAP, sem que de música se fale).

        Estava eu a ler a dita cuja tão contentinho - porque de Linguística não deixa de ser (mesmo que em registo cómico) -, e eis senão quando sou abalroado pela bombástica novidade: "... já quase ninguém se chama Vítor".
       Se do "vós" pouco se pode argumentar quanto ao desuso (mais do que evidente), do Vítor nem sei que diga! Vítor Pereira, com desgosto, vai deixar de treinar e comentar futebol, para não falar de um outro que nem vai mais apitar ou arbitrar! E Vítor Oliveira (não eu), no momento também a treinar lá para os lados de Portimão, está aqui está a fugir para África! É certo que Vítor Baía já não defende as balizas do Futebol Clube do Porto, mas não deixa de ser por aí muito badalado à conta de outras eventuais aspirações. Ainda desiste! E o Chefe Vítor Sobral?! Larga a cozinha. Até Vítor Norte vai deixar o teatro, com a tragédia anunciada! Para isto, muito deve ter contribuído Vítor Gaspar, com uma subida tão brutal nos impostos que nenhum paizinho nem nenhuma mãezinha de juízo quiseram dar tal nome a um seu descendente. Resta ao Senhor Padre Vítor Melícias rezar, a bem do bom nome que já foi de Papa e de Santo.
     Segundo o RAP, estou em desuso. Estou aqui estou tal igual (como diria Mia Couto) a arcaísmo. Bem... pior seria se o meu nome fosse grafado com 'c' (em verdade vos digo que nada tem a ver com o Acordo Ortográfico). Por isso, sempre que me apresento, digo "Muito prazer, Vítor Oliveira, sem 'c' e com acento no 'i'". Sempre dá um ar de modernidade, mais fresco e desempoeirado, não sei se percebeis (cá está o vós).
      Hoje, sinto-me, portanto, "avis rara" com a crónica "Até que o vós me doa" do RAP, publicada na revista Visão:

(clicar na imagem para aumentar o texto)

    Depois disto, não vos riais, que para mim é assunto muito sério! O desuso do pronome (que mais parece majestático, face ao banalizado 'vocês') e a raridade dos "Vítores" precisam de uma comissão de trabalho e de estudo já, para não falar de uma petição imediata, visando a resolução de duas questões críticas nacionais. Pelo menos, a dos "Vítores", claro está!

     E para ir ao encontro do RAP, antes que vos vades embora (este conjuntivo do verbo 'ir' na segunda pessoa do plural é um primor!), ficai sabendo que o nosso cronista da "Boca do Inferno" (vira essa boca para lá!) muito usou e abusou do "Vítor" (ou melhor, do "Senhor Vítor"). Tantas vezes o disse que disso não fez vitória. Imaculada Conceição me valha (por o dia feriado ser dela), com uma ajudinha de São Vítor, ora pois então!

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Bom Português...

     É dia 7 (que dizem ser número perfeito), mas começa mal o dia - ai começa começa! -, ao ser acordado com o erro.

     De novo, o canal público no seu melhor da escrita. Ainda nem trinta minutos tinham passado da rubrica / lição do "Bom Português" (sobre o feminino de 'profeta' e que, por repetição mais do que frequente, já todos devem saber que é 'profetisa') e pôde ler-se, numa legenda bem contrastada a preto e branco, o seguinte:

Imagem captada a partir da emissão de "Bom Dia Portugal" - RTP1

     É bíblico o enunciado de que "No princípio era o Verbo". Só que na gramática também há lugar para os nomes. E alguns destes, para além de tipicamente serem antecedidos de um determinante ("[n]o início"), distinguem-se da forma verbal por serem acentuados - enquanto esta última não o é. Assim, onde se devia ler "icio" (nome) lá apareceu o verbo, não acentuado (certo), mas nada virtuoso - porque não era o que se queria / devia escrever. 
     Tal como "Prinpio" (e não a forma verbal 'principio'), "icio" (e não "inicio") tem de apresentar acentuação gráfica para ser nome.

    Não fosse a nota de rodapé relativa a um sismo na Indonésia, diria que um outro, linguístico, ocorreu hoje no  "Bom Dia Portugal" da RTP1, (e não se pode dizer que seja pouco frequente tamanha instabilidade - diga-se agramaticalidade - com este pontapé na gramática da escrita). Mais uma asneira e das grandes, para um meio de comunicação social.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Retomado o feriado

      A rima do título reflete a alegria da reconquista de um tempo livre, há quatro anos negada.

      É como se a restauração (não da soberania portuguesa, mas do feriado) nos animasse, depois da perda (não da independência, mas de novo, do feriado). Historicamente não foi tempo de descanso; o presente, para alguns, também não o é na plenitude. Ainda assim, é feriado para bem de alguns dos que trabalham.
      Depois de muito recentemente Filipe VI de Espanha e Dona Letícia terem visitado Portugal e de ambos terem partido ontem de terras lusas, desta feita não há "conjurados" nem ninguém é lançado da janela do Palácio da Ribeira. Não há coincidências, neste capítulo. Os tempos são de diplomacia e de boas relações políticas entre a monarquia espanhola e a república portuguesa (às vezes, a conjura necessária está mais para dentro do que para estrangeiros).
     Não sendo "o dia dos milagres", assim foi romanescamente encarado quando Francisco Moita Flores, em 2015, deu a ler a história da velha Efigénia Pé de Galinha - personagem que vive o período histórico compreendido entre a perda do rei D. Sebastião e a restauração da independência face a Filipe IV de Espanha (III de Portugal). Entre 1578 e 1640 é tempo de uma jovem cobiçada ser tomada por bruxa, não fosse ela vítima de múltiplos dissabores, infortúnios que o destino coloca ao ser humano a ponto de o afastar das alegrias dos afetos e de o marcar para a vida (que mais parece morte adiada). Contrariamente, há um duque que chega a rei, por uma força e um sentido de pátria no mínimo desafiador:

      "Há uma Pátria que vai para além de um Reino. É feita com a argamassa do tempo, dos dias de maior sofrimento, que é um território de pertença sem limite, qual oceano a perder-se no horizonte. É qualquer coisa mais densa do que o chumbo e bem mais leve do que uma pena de falcão a esvoaçar pelos ventos. É maior do que um sentimento, do que uma ascendência e do que grandes conquistas e descobertas. É uma Pátria que se diz, que vive dentro de nós, que reconhece cada rua e cada praça como nossos, tão nossos que só nos conhecemos porque essa rua e essa praça existem e são marcos por onde se escoam os dias das nossas vidas. Podemos ver as montanhas e os desfiladeiros de um Reino qualquer, mas não veremos nunca a Pátria que vive dentro de nós. Dizemo-la, amamo-la, por ela poderemos morrer, e será sempre um tempo que não começa nem termina. Que habita em nós como se respira, como se ama e até como se morre. É, afinal de contas, o âmago do nosso ser. A dimensão espiritual mais sublime que dá significado à existência. É um exército de odores e de palavras, de cantares e de memórias comuns. É amor ao passado, àquilo que fomos e fome de futuro.
    Assim se explicava no dia seguinte o duque de Bragança a Luísa. Falava-lhe do amor transcendente que une gente tão diversa, apenas irmanada pela mesma fala. Porém, a jovem duquesa revelava agora as inquietações que escondera durante a noite anterior, cheia de emoções e de amor.
     - E nós o que fazemos? Faltam cinco dias e ficamos aqui? Parados? Não é preciso fazer mais nada?
      - Saber esperar é um dom divino - respondeu João.
      Levantou-se da mesa, ainda mais agitada com a resposta do marido. (...)
      - Está tudo pronto, minha querida. Tudo pronto! - suspirou enigmaticamente.
      - Tudo pronto, como?
     - Está em alerta quem deve estar e planeado o que tem de ser previsto, não existe mais nada de que nos possamos ocupar - ia terminar, hesitou e depois recomeçou: - Sabes o que há a fazer? É sermos soldados do silêncio.
      - Tenho de me calar, queres tu dizer.
     - A surpresa é a única arma de um Reino sem exército contra o maior exército do mundo. Filipe tem dezenas de milhares de soldados experimentados por anos e anos de guerra. Nós temos quarenta conjurados, alguns deles já envelhecidos, e a vontade do povo de Lisboa.
     Sentou-se devagar. Os contrastes que João lhe apresentava eram de tal modo poderosos que tudo lhe parecia uma enorme loucura.
      - Só quarenta? - foi a única coisa que conseguiu perguntar. 
      -  E a maior parte deles nunca aprendeu a arte de esgrimir, nem a manipular um mosquete.
      Agora percebia melhor as palavras do marido sobre o sentido da Pátria. (...)
      Luísa desanimou por momentos.
      - Visto assim, parece impossível.
   - É quase impossível. A janela da esperança abriu-se quando os astros se combinaram de tal forma que foi possível acreditar nessa única arma, embora eficaz, que é a surpresa. (...)
     - Falas dos astros como se tivéssemos um destino já traçado para cumprir.
      João de Bragança sorriu em discordância.
     - Soubesse eu que o nosso destino estava traçado e não teria hoje a fama de hesitante entre alguns dos amigos. É preciso ter a astúcia da raposa, a paciência da coruja e a determinação de um lobo para forçar o caminho que trilhamos - disse João, como se pensasse em voz alta.
     (...) A expressão do duque mudou. Regressava a gravidade preocupada e admitia, com algum pudor, que era grande o esforço para não seguir a excitação da duquesa. Fervia por dentro, adornado com uma máscara de serenidade. As horas tinham agora passo de caracol, os dias pareciam eternos, aquele sol mole, preguiçoso e frio tornara-se tão vagaroso como se o Verão estivesse à porta."

in O Dia dos Milagres, Casa das Letras, 2015, pp. 155-159

    Por mais ficcionais que os acontecimentos se apresentem, alguma coisa houve para um pequeno se afirmar diante de um poderoso; para os poucos quarenta enfrentarem uma força que parecia invencível.

    Talvez uma lição para a vida; para estes tempos tão dominados por forças omnipotentes que ameaçam a felicidade e a liberdade a que muitos aspiram, para poderem (sobre)viver menos enleados nas teias de interesses transnacionais.