domingo, 29 de abril de 2012

"De que sofre esta cidade?"

     Esta cidade, Tebas (velha cidade de Cadmo) ou outra, maior ou mais pequena, remota ou atual, deveria sempre ter esta pergunta, para a busca da resposta.

     A tarde foi passada no auditório da Academia Contemporânea do Espetáculo (ACE) - Teatro do Bolhão, em boa companhia e com grande representação.
    Num anfiteatro (qual encosta de degraus não de terra nem de pedra, mas de cadeiras - quase poltronas - voltadas para um palco), frente a um palco dominado pela essencialidade minimalista de um cenário e por um grupo de ótimos atores (a que não faltou um coro, enquanto personagem múltipla, cujo canto ritmado servia de comentário à ação dramatizada), assisti a Édipo, de Sófocles. Com encenação de Kuniaki Ida, o elenco contava com as participações de António Capelo (Édipo), João Paulo Costa (Tirésias, Jocasta e Servo), João Cardoso (Creonte e Mensageiro), além de Pedro Lamares (Corifeu) e um coletivo de jovens artistas.


    Nas primeiras décadas do século XXI reencontrei-me com alguns sinais do último quartel do século V a.C. Foi o caso da representação assente em três atores masculinos (o protagonista, o deuteragonista e o tritagonista);  da figura do Corifeu liderando o coro; do tom e do conteúdo trágicos do texto; da conciliação dos opostos (um homem que se sente livre, mas que só o é enquanto percorre um caminho fatalmente determinado; a modernidade de adereços conjugada com a clássica máscara em Jocasta mais a sugestão de trajes e o calçado de sola espessa dos sacerdotes que prestavam culto a Dionísio; o conhecimento e a consciência portadores da desonra fatal, das maldições que fazem sucumbir o Homem). Junta-se-lhes o sentido didático e emocional da peça (com confrontos explicitamente demonstrados e publicamente partilhados, suscitando, perlocutoriamente, o terror e a piedade), a força do destino que aprisiona o Homem àquilo de que o próprio possa tentar fugir ou contrariar - tudo ingredientes típicos para um género marcado como a maior expressão literária da antiguidade, conforme o evidenciavam as práticas teatrais dionisíacas (as mais conhecidas), com representações diárias de três tragédias, fechadas com a apresentação de uma comédia.
      Sófocles foi grande figura nestes eventos tão religiosos quanto cívicos. Édipo foi um dos seus textos, do ciclo tebano (acerca da fundação da casa real de Tebas, por Cadmo), retratando a tragédia de caracteres, composta pela pretensa individualidade espelhada na vida social da pólis.
     Desde o início da obra, a questão da atualidade impõe-se, pelo diálogo mantido entre o Corifeu e Édipo. É a crise, o drama da cidade revelados:


«Visto que desejas continuar no trono, 
bem melhor será que reines sobre homens
do que numa terra deserta. 
De que vale uma cidade, de que serve um navio, 
se no seu interior 
não existe uma só criatura humana?»

     O percurso cénico do despojamento de Édipo - da túnica do poder ao pé descalço de uma figura voluntariamente cega e desamparada - é o caminho de um decifrador de enigmas que tudo quer saber e se agarra à vontade de não fugir à verdade; o do conhecimento ou da consciência que se revela ignorância, na interpretação errada de sinais e na fuga que não dá lugar ao afastamento ou à distância do indesejável - antes à proximidade e à concretização trágica das profecias dos oráculos. 
      Entre a cegueira do Homem e a insegurança da condição humana revê-se um dos mitos gregos de maior relevo.

     Assim se traça a complexa procura e revelação da identidade de um herói lendário grego (que matou o pai e procriou com a mãe), mais ajustado ao que de anti-herói tem (pelo entrecruzamento da fragilidade humana no sacrifício supremo do autoconhecimento, com a marca do fatalismo, da crueldade e da determinação do destino).

sábado, 28 de abril de 2012

Derivação (e não só) na formação (de palavras)

      Ao passar pelo histórico do blogue, dei conta de respostas que ficaram por endereçar. As minhas desculpas. Talvez já não venham a tempo, mas fica o registo devido, pela pertinência revelada nas questões que as motivaram e nos comentários produzidos. Aqui vai uma delas.

    Q: Professor, a respeito da análise da palavra "deslocalizar", suscitaram-me algumas dúvidas. É o caso de palavras como 'desvalorização', 'empobrecimento' e 'irreconhecível'. Aquela é formada por prefixação e sufixação ou apenas por sufixação, já que é sabida a análise sobre encadeamento de formações diferenciadas a partir de valor, valorizar, desvalorizar, desvalorização? Essa é formada por parassíntese ou por sufixação (pobre-empobrecer-empobrecimento)? E a última é formada por prefixação ou por parassíntese (conhecer-reconhecer-???)? Obrigado!

   R: Com o agradecimento pelo desafio colocado, retomo a ideia da sequência ou do encadea- mento, como diz, de etapas de formação diferenciadas.
     Assim, o nome deverbal 'deslocalização' obtém-se a partir da base 'deslocalizar', pelo que esta última é uma palavra derivada por sufixação. Naturalmente, é reconhecível o prefixo 'des-' nesse nome, mas atendendo à base 'localizar' é que se pode falar numa palavra derivada por prefixação ('deslocalizar'), numa fase anterior à que permitirá formar 'deslocalização'. O mesmo raciocínio deve ser aplicado à palavra 'desvalorização', derivada por sufixação ([[[valor > valorizar] valorizar > desvalorizar] desvalorizar > desvalorização]) .
    Quanto a 'empobrecimento', o termo tem por base 'empobrecer' (a qual foi, anteriormente, obtida por parassíntese, a partir de 'pobre'). Ora, o nome deverbal resulta da derivação por sufixação, novamente.
     Por fim, o adjetivo 'irreconhecível' resulta da base 'reconhecível'. Portanto, há derivação por prefixação.

     A consulta de um dicionário, como já indiquei anteriormente, permitirá sempre a verificação do termo base que antecede a forma derivada. O mesmo sucede com a informação etimológica que permitirá entender que a palavra 'reconhecer', a partir do étimo 'recognoscĕre', tem mais de evolução fonética na introdução do termo em Português do que de morfologia.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Eis... por onde andas?

      Em tempos de alteração na nomenclatura gramatical, vêm os casos que não surgem nos exemplos.

     Q: Agora que os advérbios aparecem divididos entre os de frase, os de predicado e os conectivos, onde fica o 'eis'?

      R: A natureza designativa, apresentativa ou mostrativa deste advérbio faz com que ele seja encarado no âmbito  dos elementos linguísticos que "mostram" verbalmente as condições ou informações contextuais em que um discurso é produzido. Assume-se, portanto, como elemento detentor de uma função deítica, obtida pela relação com as circunstâncias de enunciação.
    Neste sentido, o advérbio apresenta propriedades orientadas para a enunciação que releva, destaca um elemento enunciado ("Eis o homem!"), bem como o momento (temporal) de revelação, designação e construção da própria referência enunciativa.
      Contrariamente aos advérbios de localização temporal que modificam o predicado (e, portanto, admitem as estruturas da negação e da interrogação), o caso de 'eis' compagina-se com as propriedades dos advérbios de frase, sublinhando a intencionalidade, a dimensão modalizada de um enunciado caracterizado por marcas orientadas para o falante, para a avaliação que este processa em termos de saliência, de realce, de topicalização (como se evidencia com a construção frásica equiparada a uma estrutura clivada: "Eis a questão que surge!" > É a questão que surge). 
           Vejo, assim, razões para situar 'eis' entre os advérbios de frase, na medida em que se toma como fruto da intervenção do falante / enunciador sobre o conteúdo proposicional produzido, pelo modo como diz  (dicere) e pelo que quer dizer (uelle dicere).

       A natureza excecional deste advérbio surge tratada em O Advérbio em Português Europeu, de João Costa (2008: 16). A sua inclusão no campo dos advérbios de designação (cf. Gramática da Língua Portuguesa, de Mário Vilela, 1999: 242), enquanto subcategoria acrescida às classificações tidas como tradicionais, era já um dado a considerar nessa excecionalidade.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Monumento cinzento

     Em dia feriado...

     Diz o poeta que "tudo vale a pena quando a alma não é pequena'... mesmo quando esta já foi maior.

ACINZENTADA DEMOCRACIA

Do cravo em pedra,
foi-se a rubra cor.
Sem sangue na terra,
secou o vigor.

Da revolução,
a memória fica,
lembrando a canção...,
o povo que grita...,

a arma a dar flor...
Renovado o tempo,
nascida a manhã,
no sopro do vento,


a sã liberdade
esvai-se na idade.

Em dia cinzento,
vejo um monumento:
voam as gaivotas
só no pensamento.

No duro betão,
há ondas de mar
plantadas no chão,
subidas ao ar.

Com fénix em cinzas,
Esperança, vinhas...
Foto em tempos de sol, de luz...
(Monumento  ao 25 de  abril, Espinho)

    Na agenda, no dia do calendário, em tempo de pressão e depressão, teriam de multiplicar-se os sinais de confiança e esperança... 

   ... para o bem da democracia.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Sonho, vontade, vida...

    Na véspera da revolução e nos tempos anteriores a ela, muitas eram as mensagens voltadas para a ação - a vontade da realização, da afirmação de abril.

    A manhã e o dia viriam, depois de muitas lutas, de muitos sofrimentos e de se fazer sublinhar que "o sonho comanda a vida".


    Nestas palavras de António Gedeão (pseudónimo do professor de Física Rómulo de Carvalho) ecoava a vontade da mudança. Se a pedra filosofal (Lapis Philosophorum) era um dos principais objetivos dos alquimistas humanos medievais (em geral na Idade Média), muito se devia ao facto de se pretender, através dela, transmutar qualquer metal inferior em ouro ou mesmo seres do reino animal sem sacrífico de qualquer natureza. Outros viam nela o elixir da vida eterna, para lá de interpretações que a libertavam do físico e a posicionavam no plano espiritual. Era o plano do desejado, da forte vontade de concretização de um ideal.
    No poema, refere-se a Passarola Voadora, a lembrar Memorial do Convento, de Saramago - esse espaço alternativo onde ciência, trabalho, amor puro, visão e harmonia se conjugaram numa sociedade (a dos três Bs: Baltasar, Blimunda e Bartolomeu) construída a partir de um sonho, da vontade de constituir uma dimensão livre das desigualdades sociais, do ocultismo, da profanação dos valores humanistas, da farsa do poder, da perseguição dos que pudessem ter um entendimento distinto do oficialmente estabelecido. 
    É certo que o sonho comanda a vida, tal como a falta dele, do desejo, da vontade antecipa a morte. Faz, como o diz Blimunda, parecer morto aquele que na vida está.
    Abril veio. Terá ficado?

    Palavras sábias de quem tem uma perspetiva, uma visão, uns olhos que veem para além do comum mortal (e que tem tudo de verdade, por mais que elas surjam na dimensão do ficcional). Talvez a morte não esteja nem antes nem no fim da vida. Está na própria vida e no que nela e dela se perde. 

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Uma hora para a vida

     Tudo vemos, nada temos, nada somos... e assim cumprimos os ciclos.

     A principiar, um peregrino lança o espectador na condição de um ser, de uma criatura cuja existência cumpre uma demanda feita de valores, de imagens e de linguagens.
     Desde a Páscoa de 1518 cumpre-se, em palco, essa demanda: a que Gil Vicente depositou no seu Auto da Alma, enquanto reflexão moral sobre a vida e o Homem. O passado alimentou-a, o presente quinhentista e as consequências dos Descobrimentos reconfiguraram-na, o futuro torná-la-ia evidente e eternamente intemporal.
     No dilema entre dar-se aos prazeres do(s) tempo(s) e do(s) espaço(s) ou cumprir um percurso de despojamento, a Alma vê-se numa circularidade, na revisitação de um percurso que se faz de vivências e de memória(s). Nele, há sempre lugar para a tentação e a sedução demoníacas, que atacam o corpo (se não a alma). Num contínuo "fitness", numa corrida esforçada que não deixa de revelar a fragilidade da Alma, esta última tem de se confrontar com a vaidade, a materialidade, os sinais de poder, de ter e de haver, resumidos no que de mais pesado, desprezível e volátil o mundo apresenta.

Montagem fílmica 
(excertos de "Burnay and You - Exclusive Moments" e representação da peça).

     A salvação (possível, ainda que constantemente ameaçada por forças satânicas persistentes) atinge-se pelo exigente caminho do Bem, fundado em "manjares" ofertados pela Igreja, por anjos protetores e por ensinamentos dos Santos Doutores. Assim se alimenta e sobrevive a Alma na vida, numa cosmovisão tão quinhentista quanto hodierna, face às metamorfoses do Bem (que ainda o há, mesmo fora da "Santa Madre Igreja") e do Mal (tão dissimulado e tantas vezes aparentando-se com o que há de bem e de bom).
     O percurso é o da vida, não o da pós-morte que tornou o teatro vicentino mais reconhecido (caso da Trilogia das Barcas); daí ser mais identificável com a condição da existência humana, feita de recuos e avanços, de opções, de aparentes felicidades e fortes arrependimentos, de retratações e recuperações a que não faltam sacrifícios.

     Alma: título para uma rapsódia de textos poéticos (vicentinos e outros mais contemporâneos) feita à base do Auto da Alma, de Gil Vicente, e dos ecos que esta faz refletir num Teixeira de Pascoaes e num Vitorino Nemésio, que (também) a "escritam" nos seus textos. Uma moralidade a não perder, segundo a dramaturgia de Nuno Carinhas e Pedro Sobrado, no Teatro Nacional de São João (até ao próximo dia 28).

sábado, 21 de abril de 2012

Questões do outro lado do oceano (X)

     Mais um apontamento e uma questão vindos do lado de lá do Atlântico.

     De apontamento em apontamento, já cá estão dez provas de que há quem queira falar sobre a nossa língua, mesmo nas coisas mais problemáticas que esta possa apresentar.

    Q: Classifique os quês: "Eu não sei que ela faz aqui. Eu não sei que pessoa é essa. Eu sei que ela faz aqui. Eu sei que pessoa é essa. Eu sei que ela não vem."


    R: Começo por agradecer o desafio (que não é pequeno).
     Constato a variedade da língua em realizações sintáticas que me atrevo a aportuguesar segundo a variedade europeia.
         Obtenho os enunciados seguintes:
         
         i) Eu não sei o que ela faz aqui.
        ii) Eu não sei que pessoa é essa. (> Eu não sei que tipo de pessoa é essa  OU Eu não sei quem é essa pessoa.)
         iii) Eu sei o que ela faz aqui.
        iv) Eu sei que pessoa é essa. (> Eu sei que tipo de pessoa é essa OU Eu sei quem é essa pessoa)
         v) Eu sei que ela não vem.

         E, agora, tanto para fazer.
     Primeiro de tudo, interessará constatar a integração de todos os 'que' no que se designa tradicionalmente por subordinadas substantivas (sejam subordinadas completivas sejam subordinadas relativas sem antecedente); de seguida, classifico cada uma das ocorrências do termo em estudo, atentando  no seguinte:
.  em i), tal como em iii) na forma ou polaridade negativa, 'que' surge antecedido de um 'o', numa estrutura subordinada que algumas gramáticas apelidam de 'relativas semi-livres'; trata-se, portanto, de um 'que' pronome relativo;
.  em ii), duas abordagens são possíveis para o que se toma como subordinadas substantivas associadas a interrogativas indiretas (isto é, não as interrogativas indiretas totais - introduzidas pela conjunção 'se' -, mas as parciais - as que requerem a focalização de um dado informativo pressuposto na questão direta parcial): face ao determinante interrogativo pressuposto em 'Que (tipo de) pessoa é essa?', a subordinada completiva apresentada é introduzida por um termo pertencente a essa mesma classe de palavras; no caso da transformação proposta em 'Eu não sei quem é essa pessoa' e da questão pressuposta ('Quem é essa pessoa?'), estaremos perante uma subordinada introduzida pelo pronome interrogativo 'quem';
 em iii), encontra-se o que já foi exposto em i), só que em polaridade negativa; 
.  em iv), encontra-se o mesmo 'que' assinalado em iii), numa frase matriz de polaridade positiva (contrariamente à negativa proposta em ii);
. em v), 'que' é utilizado como conjunção integrante ou completiva (introduzindo a subordinada 'ela não vem', de natureza declarativa ou enunciativa quanto ao tipo de frase).
       Em suma, para os cinco enunciados, há três utilizações distintas de 'que': pronome relativo (em i e iii); determinante interrogativo (em ii e iv); conjunção completiva ou integrante (em v).

     Se, de comum, os 'que' têm a natureza articulatória, conectiva ao nível da composição frásica, em muito se distinguem em termos de classificação quanto à classe de palavras. Exemplo de mais um termo camaleónico na gramática da língua portuguesa.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Numa teia...

       No seio dos problemas...

     É numa aranhiça teia que me vejo, tal como a da letra desta canção, feita música de um grupo que conjuga o que de bom se vai fazendo contemporaneamente.


                           TROUBLE

Oh no, I see,
A spider web, it's tangled up with me,
And I lost my head,
The thought of all the stupid things I've said.


Oh no what's this?
A spider web, and I'm caught in the middle,
So I turned to run,
The thought of all the stupid things I've done,
And I... I never meant to cause you trouble,
And I... I never meant to do you wrong,
And I... well if I ever caused you trouble,
Oh! No, I never meant to do you harm.


Oh no I see,
A spider web and it's me in the middle,
So I twist and turn,
Here am I in my little bubble,
Singing out, oh I never meant to cause you trouble...

Oh, I never meant to do you wrong,
Oh, well if I ever caused you trouble,
Oh no, I never meant to do you harm.


They spun a web for me,
They spun a web for me,
They spun a web for me.

    Da verdade da letra ao ritmo melancólico da melodia... tal como na vida, à espera que a aranha cumpra o seu papel.

    And if there isn't any kind of trouble, in a month, I'll be where I'll be able to watch and to listen to this sound or any other about to come.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

"I have a dream"

     É mais citação do que pensamento próprio (daí a intencionalidade das aspas, para que se dê a César o que é de César - ainda que, neste caso, o nome seja mais 'real' do que 'imperial').






      Há quarenta e quatro anos morria quem proferiu tais palavras: Martin Luther King - nome de um líder negro assassinado em 1968, aos trinta e nove anos, na sequência da sua luta pacífica pela declaração de inconstitucionali-dade da segregação racial dos negros.
     Talvez já ninguém se lembre de histórias como as de uma mulher negra que se recusara a ceder o seu assento no autocarro a um branco e, por isso, foi presa por violar a lei da segregação racial. Hoje, parece enredo de cinema; mas, vivido nos anos cinquenta na América, foi um dos motivos para uma guerra de princípio: a da igualdade do Homem, independentemente da cor, da raça, das crenças.
    O sonho de um dia ver brancos e negros juntos teve um grande passo na sua concretização quando, em 1964, foi aprovada a lei que poria fim à segregação racial. O condicional deveria ser mais pretérito perfeito, não fosse alguma dessa realidade ter sobrevivido até ao presente (branco, negro, amarelo, tanto faz... o sonho, por vezes, revela-se mera miragem).
    O galardoado com o Prémio Nobel da Paz, atribuído em 1964, veio a ser morto por um atirador branco, segundo acusação oficial apontada a James Earl Ray (condenado a 99 anos de prisão). 

      Um exemplo para a Humanidade roubado à vida por um outro homem que não compreendeu que, assim o dizia Luther King, "Temos de aprender a viver todos como irmãos ou morreremos todos como loucos."

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Sete (mágico) em tempo de morte

     Da magia do sete já muito se disse, mas, no que toca a este apontamento, na morte se fundou.

    Há sete anos, Karol Józef Wojtyła passou a existir exclusivamente na memória, dos cristãos e não só. Dir-se-ia mesmo de todos os crentes que assistiram aos seus quase 27 anos de papado, sob o nome de João Paulo II.
  Criticado pela sua oposição (ortodoxa) relativamente a temas como os do celibato dos padres, da procriação e da ordenação de mulheres e/ou de homens casados; pela construção interpretativa do terceiro segredo de Fátima, na qual se implicou como vítima; pela sua influência em áreas de intervenção dominantemente política, o sucessor do curto papado de João Paulo I não deixou de marcar positivamente a sua liderança religiosa pela imagem dada de aproximação a diferentes credos (judaísmo, igreja ortodoxa, igreja anglicana, islamismo), de afirmação no alívio e na superação do sofrimento humano, de pedido de perdão face aos silêncios que a sua Igreja assumiu em certos períodos da História.
    Proclamado Beato em 1 de Maio de 2011 (pelo Papa Bento XVI), este chefe da Igreja Católica Apostólica Romana inspirou-se nos jovens e na virtude da esperança por eles representado, de modo a tomar alguma irreverência como forma de a(tua)ção dirigida e preocupada com o outro. 
    De atitude, rosto e gesto afáveis, este foi o papa que atravessou o século XX para o XXI, movido por uma vocação e uma missão universal voltadas para a aproximação à santidade. Assim o evidenciou nos processos de canonização e beatificação dos muitos que souberam acompanhar o Homem no percurso de vida sofrida, libertando-o de dor maior. O exemplo de Madre Teresa de Calcutá foi seguramente o mais mediatizado, dadas a sua contemporaneidade com o pontificado e a aproximação espiritual com João Paulo II.
     Aquando da visita à catacumba ou "cemitério dos Papas", na Basílica de S. Pedro (Vaticano), tive a oportunidade de encontrar uma sepultura simples (o que não significa menos dispendiosa, por certo) entre os artificiosos, artísticos e ostensivos jazigos dos pontífices antecedentes: uma laje lisa, limpa e discreta, apenas comparável à do Papa Paulo VI (1963-78). Houve quem interpretasse, de forma despojada e adequada, o percurso de um padre, tornado bispo, nomeado cardeal, aclamado Papa, considerado "Venerável" e proclamado Beato. Como qualquer outro congénere, viveu muito do seu tempo no seio de um dos maiores tesouros culturais da Humanidade, capaz de matar a fome a meio mundo, quanto mais o de África. Não fez o que o Papa das 'Sandálias do Pescador' pretendia (e que eu tanto gostava que tivesse acontecido, mesmo em filme já antigo); porém, ao contrário de muitos deles, fez-se próximo, afetuoso e capaz de abrir ao mundo o sentido do que é ser cristão e católico.

    Uma lembrança em dia que a televisão exibiu, na RTP1, uma minissérie intitulada 'O Papa de Todos' - é esta a imagem que vou tendo deste papa (o mesmo não se dirá de muitos outros), cuja mensagem é sinteticamente reproduzida no pensamento de que "Não há nada mais sagrado ou precioso do que uma vida".