segunda-feira, 23 de abril de 2012

Uma hora para a vida

     Tudo vemos, nada temos, nada somos... e assim cumprimos os ciclos.

     A principiar, um peregrino lança o espectador na condição de um ser, de uma criatura cuja existência cumpre uma demanda feita de valores, de imagens e de linguagens.
     Desde a Páscoa de 1518 cumpre-se, em palco, essa demanda: a que Gil Vicente depositou no seu Auto da Alma, enquanto reflexão moral sobre a vida e o Homem. O passado alimentou-a, o presente quinhentista e as consequências dos Descobrimentos reconfiguraram-na, o futuro torná-la-ia evidente e eternamente intemporal.
     No dilema entre dar-se aos prazeres do(s) tempo(s) e do(s) espaço(s) ou cumprir um percurso de despojamento, a Alma vê-se numa circularidade, na revisitação de um percurso que se faz de vivências e de memória(s). Nele, há sempre lugar para a tentação e a sedução demoníacas, que atacam o corpo (se não a alma). Num contínuo "fitness", numa corrida esforçada que não deixa de revelar a fragilidade da Alma, esta última tem de se confrontar com a vaidade, a materialidade, os sinais de poder, de ter e de haver, resumidos no que de mais pesado, desprezível e volátil o mundo apresenta.

Montagem fílmica 
(excertos de "Burnay and You - Exclusive Moments" e representação da peça).

     A salvação (possível, ainda que constantemente ameaçada por forças satânicas persistentes) atinge-se pelo exigente caminho do Bem, fundado em "manjares" ofertados pela Igreja, por anjos protetores e por ensinamentos dos Santos Doutores. Assim se alimenta e sobrevive a Alma na vida, numa cosmovisão tão quinhentista quanto hodierna, face às metamorfoses do Bem (que ainda o há, mesmo fora da "Santa Madre Igreja") e do Mal (tão dissimulado e tantas vezes aparentando-se com o que há de bem e de bom).
     O percurso é o da vida, não o da pós-morte que tornou o teatro vicentino mais reconhecido (caso da Trilogia das Barcas); daí ser mais identificável com a condição da existência humana, feita de recuos e avanços, de opções, de aparentes felicidades e fortes arrependimentos, de retratações e recuperações a que não faltam sacrifícios.

     Alma: título para uma rapsódia de textos poéticos (vicentinos e outros mais contemporâneos) feita à base do Auto da Alma, de Gil Vicente, e dos ecos que esta faz refletir num Teixeira de Pascoaes e num Vitorino Nemésio, que (também) a "escritam" nos seus textos. Uma moralidade a não perder, segundo a dramaturgia de Nuno Carinhas e Pedro Sobrado, no Teatro Nacional de São João (até ao próximo dia 28).

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