sábado, 14 de março de 2009

Mais um desafio linguístico... com uma pitada de literatura

       A questão de um amigo e companheiro de "lutas" e de "causas". Só por isto se entende tamanha adjectivação (e antecipada!) à resposta.

    Q: Já há dias que ando para vir aqui comentar esta questão, e faço-o hoje porque ontem, numa aula com alunos de 8º ano, apareciam num texto - informativo/histórico - expressões como estas: «a situação descrita», ou «tudo isto provocou», entre outras idênticas e que remetiam sempre para a esquerda do texto. Não usei qualquer metalinguagem, simplesmente explorámos o texto para ver a que se referiam estas e outras expressões. E é bom que os professores de Português tenham consciência de que muitos alunos têm dificuldades de compreensão de leitura a este nível. Mas com treino a situação muda e no final da aula já se moviam no interior do texto com assinalável mestria. A minha pergunta é a seguinte: estas expressões não podem ser classificadas como 'deixis textual'? Creio ter visto isto em algum lado. Agradeço ao Vítor a resposta, sempre sábia, e deixo aqui o voto no sentido de que este blogue possa tornar-se num ponto de encontro de quem se interessa por didáctica da nossa língua.
      Tenho outras questões sobre didactização dos deícticos, mas ficam para outra altura...
Vilas-Boas

     R: A designação “deixis textual” é uma subespecificação do conceito de deixis, sendo esta última comummente considerada ao nível da indiciação da produção do discurso bem como das condições contextuais que pautam essa produção (o ‘eu’/’tu’ implicados na produção, além do tempo e espaço a estes associados).
      Por analogia a este último entendimento, vários autores referem-se, por sua vez, a “deixis textual” quando encaram o texto como entidade na qual se constroem também coordenadas de localização, sem que haja a necessidade de radicar o discurso lido a marcas de um contexto situacional exterior ao texto.
       Charaudeau e Maingueneau (no Dictionnaire d’Analyse du Discours, 2002:160) tratam os deícticos textuais como os que se referem a espaços e momentos do texto, configurados em marcas do tipo “no capítulo anterior”, “acima / abaixo / atrás mencionado” - um pouco na linha dos organizadores textuais; ou seja, tendo como localizador não o tempo / espaço da enunciação, mas o(s) do texto em que aparecem as palavras / expressões deícticas. A partir daqui constrói-se um outro entendimento: o dos “deícticos textuais” que, constituindo-se como pontos de referência alternativos ao da enunciação, permitem por si mesmos calcular as indicações de tempo / espaço em função dessa referência alternativa mediada e construída textualmente, numa espécie de encenação ou representação da enunciação.
      Por exemplo, no início do Memorial do Convento, de José Saramago, a expressão “esta noite” permite representar uma situação deíctica a que se liga um narrador que, aparentemente, se coloca na época de D. João V, a dos factos narrados (sabe-se, porém, a excepcionalidade deste narrador, com uma capacidade de se movimentar em vários tempos, interseccionando os da narrativa, da narração representada e da própria produção autoral); essa mesma situação é recuperada, logo a seguir, com “até hoje”. Não obstante o jogo anafórico que esta expressão temporal possa assumir, enquanto retoma da expressão anterior, prevalece a natureza deíctica. A ideia de ambas as expressões está para a localização segundo as coordenadas temporais de uma situação de enunciação representada, com um narrador a pretender, no capítulo inicial, marcar explicitamente a sua presença num tempo e num discurso de mundividência barroca, afinal os da localização do que é narrado.
      É mais neste sentido, pelo que tenho lido e discutido, que entendo a “deixis textual”: aquela que evidencia marcadores que apontam para a mediação do próprio texto, numa simulação, representação de condições de produção análogas às ocorrentes em discursos radicados a um contexto situacional mais imediato.
      Os exemplos mencionados, até pelo género discursivo considerado (informativo / histórico), parecem-me estar mais para a consideração do que vulgarmente se designa por "anafóricos" (aos quais Karl Bühler, nos anos trinta do século passado, se referia também como exemplos de 'deixis textual').

      Sem sapiência; só com a amizade e a partilha de saberes e experiências que já têm longa data. Já lá vão quase duas décadas: numa sala da ESG, a ouvir-te falar de Simbolismo, até que lá veio o trabalhinho... pois é assim que se aprende contigo. E, para variar, lá fui eu dar a voz na leitura de um poema.

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