A questão de um amigo e companheiro de "lutas" e de "causas". Só por isto se entende tamanha adjectivação (e antecipada!) à resposta.
Q: Já há dias que ando para vir aqui comentar esta questão, e faço-o hoje porque ontem, numa aula com alunos de 8º ano, apareciam num texto - informativo/histórico - expressões como estas: «a situação descrita», ou «tudo isto provocou», entre outras idênticas e que remetiam sempre para a esquerda do texto. Não usei qualquer metalinguagem, simplesmente explorámos o texto para ver a que se referiam estas e outras expressões. E é bom que os professores de Português tenham consciência de que muitos alunos têm dificuldades de compreensão de leitura a este nível. Mas com treino a situação muda e no final da aula já se moviam no interior do texto com assinalável mestria. A minha pergunta é a seguinte: estas expressões não podem ser classificadas como 'deixis textual'? Creio ter visto isto em algum lado. Agradeço ao Vítor a resposta, sempre sábia, e deixo aqui o voto no sentido de que este blogue possa tornar-se num ponto de encontro de quem se interessa por didáctica da nossa língua.
Tenho outras questões sobre didactização dos deícticos, mas ficam para outra altura...
Tenho outras questões sobre didactização dos deícticos, mas ficam para outra altura...
Vilas-Boas
R: A designação “deixis textual” é uma subespecificação do conceito de deixis, sendo esta última comummente considerada ao nível da indiciação da produção do discurso bem como das condições contextuais que pautam essa produção (o ‘eu’/’tu’ implicados na produção, além do tempo e espaço a estes associados).
Por analogia a este último entendimento, vários autores referem-se, por sua vez, a “deixis textual” quando encaram o texto como entidade na qual se constroem também coordenadas de localização, sem que haja a necessidade de radicar o discurso lido a marcas de um contexto situacional exterior ao texto.
Charaudeau e Maingueneau (no Dictionnaire d’Analyse du Discours, 2002:160) tratam os deícticos textuais como os que se referem a espaços e momentos do texto, configurados em marcas do tipo “no capítulo anterior”, “acima / abaixo / atrás mencionado” - um pouco na linha dos organizadores textuais; ou seja, tendo como localizador não o tempo / espaço da enunciação, mas o(s) do texto em que aparecem as palavras / expressões deícticas. A partir daqui constrói-se um outro entendimento: o dos “deícticos textuais” que, constituindo-se como pontos de referência alternativos ao da enunciação, permitem por si mesmos calcular as indicações de tempo / espaço em função dessa referência alternativa mediada e construída textualmente, numa espécie de encenação ou representação da enunciação.
Por exemplo, no início do Memorial do Convento, de José Saramago, a expressão “esta noite” permite representar uma situação deíctica a que se liga um narrador que, aparentemente, se coloca na época de D. João V, a dos factos narrados (sabe-se, porém, a excepcionalidade deste narrador, com uma capacidade de se movimentar em vários tempos, interseccionando os da narrativa, da narração representada e da própria produção autoral); essa mesma situação é recuperada, logo a seguir, com “até hoje”. Não obstante o jogo anafórico que esta expressão temporal possa assumir, enquanto retoma da expressão anterior, prevalece a natureza deíctica. A ideia de ambas as expressões está para a localização segundo as coordenadas temporais de uma situação de enunciação representada, com um narrador a pretender, no capítulo inicial, marcar explicitamente a sua presença num tempo e num discurso de mundividência barroca, afinal os da localização do que é narrado.
É mais neste sentido, pelo que tenho lido e discutido, que entendo a “deixis textual”: aquela que evidencia marcadores que apontam para a mediação do próprio texto, numa simulação, representação de condições de produção análogas às ocorrentes em discursos radicados a um contexto situacional mais imediato.
Os exemplos mencionados, até pelo género discursivo considerado (informativo / histórico), parecem-me estar mais para a consideração do que vulgarmente se designa por "anafóricos" (aos quais Karl Bühler, nos anos trinta do século passado, se referia também como exemplos de 'deixis textual').
Sem sapiência; só com a amizade e a partilha de saberes e experiências que já têm longa data. Já lá vão quase duas décadas: numa sala da ESG, a ouvir-te falar de Simbolismo, até que lá veio o trabalhinho... pois é assim que se aprende contigo. E, para variar, lá fui eu dar a voz na leitura de um poema.
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