terça-feira, 24 de março de 2009

A um leitor anónimo

    Perdoe-me o leitor anónimo, pela demora, pela extensão e pela deslocação do comentário para o corpo principal deste “bloguezito”, tal como o anunciei à hora de nascimento entre os amigos, os colegas e os conhecidos - aqueles que sempre me questionaram e também sempre me ajudaram a procurar e a querer saber mais, por conhecerem as vantagens de partilharmos o que sabemos e desconhecemos. Sem pedestais, cremos na "nossa comunidade de interessados na profissão" (deve ser por isso que, sempre que nos encontramos, acabamos por falar do mesmo, por mais que o evitemos). Nesta atitude nos unimos e colhemos algum sossego, pelo menos o de sabermos que não estamos sós.

    Q: Caro Mestre, a sua opinião, por favor. Entende ou não que há demasiada preocupação na questão das «terminologias» - chamava-se, agora chama-se... ui que sossego... - quando seria mais proveitosa - não é só opinião minha - a questão da didactização destes conceitos? Ou, por outra: vai mudar só a terminologia na aula de língua materna ou deveria aproveitar-se a mudança para mudar muito mais? Ou ainda por outra: o sonho da minha querida Odete Santos é para cumprir agora ou vai ficar ainda adiado? Agradeço uma resposta.


     R: Algumas breves notas:
i) não sou fundamentalista, no que concerne à terminologia bem como à necessidade da sua transposição para o contexto de sala de aula; não o sou ainda relativamente aos que a possam achar factor de desassossego ou até despicienda nas aulas de língua – posição que me dá, no mínimo, alguma liberdade para compreender quem o faça (na linha de que todas as disciplinas utilizam uma terminologia própria e vêem nela um indicador da especificidade de acção e/ou saber) e entender quem o não faça (ao privilegiar estratégias de indução, de natureza mais comunicativa e funcional). Tendo para o reconhecimento de que, inevitavelmente, todos ganharíamos ao considerar um núcleo mínimo / essencial de termos, para que estes não constituam ruído em contextos mais reguladores das práticas – de que programas e exames são apenas dois exemplos;

ii) a questão da didactização dos conceitos, subscrevo-a, naturalmente; considero que esta tarefa tem, numa das suas fases (inicial ou final, conforme a metodologia a considerar), a questão da explicitação terminológica; ao nível da didáctica da gramática, quer no entendimento desta ao serviço de actividades de revisão e regulação do oral e da escrita (na sua dimensão funcional) quer no sentido dela aplicada ao dispositivo estratégico da oficina da gramática, a abordagem indutiva não desconsidera o facto de, depois da selecção e constituição de um corpus, a observação / comparação / construção de generalizações, a análise e problematização, o treino e a avaliação, se poder proceder à explicitação de termos; está na mão dos professores e da avaliação que estes fazem do contexto em que trabalham, e com as motivações daqueles com quem trabalham, o relevo a ser dado à terminologia gramatical;

iii) o pretexto de querer mudar muito não pode ser factor para impedir a mudança de algo em menor âmbito, sob pena de nunca se conseguir mudar absolutamente nada (e, num domínio estruturante como o do conhecimento explícito, a mudança terminológica teve já a virtude de pôr a reflectir e a recuperar para as aulas de Português uma área que foi durante bastante tempo preterida; quem sabe a reflexão não venha a conduzir para uma conciliação e articulação cada vez mais desejável da gramática com instruções de sentido orientadas para competências de recepção / produção oral e escrita);

iv) várias foram as indicações, as propostas, as reflexões que a Professora Odete Santos deixou a quem com ela se cruzou. Sem referência concreta “ao sonho”, fico-me
1 - pela constatação de que o modelo pedagógico-comunicativo por ela entendido não conflitua com o facto de se explicitar ou não terminologia, desde que esta surja como mais um instrumento utilizado em contextos de planificação e regulação das actividades comunicativas “organizadas de maneira sistematizada em ordem ao desenvolvimento de um processo que se define como um acto intencional e programado de aprendizagem da comunicação em língua materna” (comunicar na escola, para não ser sinónimo de conversar, implica seleccionar, orientar estrategicamente para um objectivo, por forma a estruturar e sistematizar a ponto de poder ser produtivamente reactivado);
2 - pela afirmação de que o discurso pedagógico-verbal instaurado pelas entidades interlocutivas do professor e do aluno, segundo o modelo atrás proposto, se enriquece pela abordagem indutiva da gramática (que não desconsidera uma terminologia própria da disciplina e que não reifica necessariamente o saber do professor; coloca este último, sim, num papel de construtor, planificador de actividades que promovam maior interacção e aprendizagens mais estruturadoras do próprio conhecimento explícito);
3 - pela asserção de que a “dinâmica comunitária” - assente nos conhecimentos de mundo, nos ritmos de apreensão significativa, na apropriação dos novos saberes – também se faz com, na e pela própria língua (e quanto mais dela se souber, nos diferentes domínios, mais competentes nos tornamos), numa perspectiva interaccional do ensino-aprendizagem que destaca a necessidade de fomentar, no sujeito da aprendizagem, as condições necessárias à interacção com as suas próprias experiências de “mundo” e as marcas linguísticas dos textos / discursos;
4 - pela aceitação de que a análise e sistematização pedagógicas criam nos alunos “a consciência das condicionantes impostas pelas várias componentes dos processos comunicativos”, numa aposta em modelos que façam interagir competências conscientes de recepção com o domínio de estratégias de produção;
5 - pela consciência de que um modelo pedagógico-comunicativo orientado para uma “micro-comunidade enunciativa escolar” (configurando princípios comunicativos que instituem a “macro-comunidade enunciativa”) se promove pela abertura a uma diversidade de géneros discursivos, pela activação de contextos de produção comunicativa que posicionam os alunos como agentes do processo de aprendizagem, sem que tal signifique o apagamento do papel do professor como agente de ensino (planificando e orientando os trabalhos de forma consciente – como me lembro, e bem, das reflexões da minha metodóloga de ensino do Português, que nunca se esquecia de que um sujeito nem sempre é agente; também pode e deve ser paciente!);
6 - pela vontade de que, cada vez mais, se caminhe no sentido de construir projectos de língua capazes de promover a conjugação de domínios curriculares afins (nomeadamente os de língua materna e de línguas estrangeiras) – o que vai ao encontro da correlação pretendida entre a concepção de língua / modelos de investigação em linguística que dela decorrem e os modelos pedagógico-didácticos que se lhe associam (aspecto relevado pela professora em questão, considerando a obra que produziu).

     Por todos estes sonhos, creio que andamos muitos a fazer aproximações, umas mais felizes e estruturadas do que outras. Nesse caminho, procuramos concretizar um pouco de um sonho ou utopia sócio-profissional: a socialização e a solidariedade dos sujeitos fazem-se também pelo (re) conhecimento de um objecto estruturante e estruturador do próprio pensamento, condicionador ele próprio das interacções a construir, conforme a representação que delas se faça. Quanto maior o conhecimento da língua, maiores são as fontes e o(s) poder(es) do individual no social, maior é a partilha desse(s) poder(es).

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