A fechar setembro, o sol e a poesia animaram os caminhantes, fazendo a diferença dos dias.
Éramos mais de quarenta. Seis quilómetros de ida e vinda, ao longo do passadiço marítimo a ligar Espinho à Granja, foram o percurso traçado, na passada poética de uma obra em vários pontos declamada - uma atividade promovida pela Coordenadora e pelas professoras bibliotecárias do Agrupamento de Escolas Dr. Manuel Laranjeira, no âmbito da Rede Interconcelhia de Bibliotecas Escolares de Entre Douro e Vouga. Estiveram presentes a Coordenadora Interconcelhia, Diretores do Centro de Formação do AVECOA e de Terras de Santa Maria, a representante para a Autonomia e Flexibilidade Curricular do Centro de Formação Aurélio da Paz dos Reis, representantes do SABE de Santa Maria da Feira, Vale Cambra e Oliveira de Azeméis, bem como professores bibliotecários da área do Douro e Vouga.
Pequena brochura com alguns poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004)
Levei comigo o Livro Sexto (1962), para dar visibilidade a um livro e lembrar a contemplada com o "Grande Prémio de Poesia da Sociedade Portuguesa de Escritores", atribuído em 1964 (sessenta anos); o "Prémio Camões", pela primeira vez ganho por uma escritora, em 1999 (vinte e cinco anos); o "Prémio Rainha Sophia da Poesia Iberoamericana", em 2003 (vinte um anos). Autora há vinte anos falecida; há dez no Panteão Nacional. Recordaram-se histórias.
Tudo começou com Poesia (1944), esse título de há oitenta anos que o crítico e professor de Literatura Pedro Eiras sublinhou como o mais justo dos títulos, para uma obra onde «Assim surgia uma língua, nova e límpida».
Aproveitei o facto de estarmos junto ao mar; de inspirarmos esse sal de vida trazido por ondas, conchas e corais; de estarmos banhados de uma luz matinal; de nos dirigirmos a um lugar vivido por Sophia e os seus; de sentirmos uma Geografia (1961) feita de tempo, de sentimento, de humanidade.
Evoquei "Manhã" (in Livro Sexto):
Como um fruto que mostra
Aberto pelo meio
A frescura do centro
Assim é a manhã
Dentro da qual eu entro.
Dentro da qual eu entro.
Assim, o fizemos. Entrámos na manhã (luz) e nessa maresia que é cheiro e toque desse elemento que inspira "Inscrição" (in Livro Sexto):
Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto do mar.
Uma imensidão que a limitação humana só pode atingir pela imaginação, pelo humanismo, pela humanidade, pela cultura, pela antiguidade greco-latina e pelo sentido de liberdade que a poeta (como se designava) também versou, narrou, representou na versatilidade de géneros e modos literários produzidos.
Desafiei o grupo à leitura de pequenas composições, tantas vezes despercebidas entre poemas mais longos. Tão pequenos (dísticos, tercetos) e tão poderosos na mensagem, no pensamento - quase parecem "haikus", no trabalho de uma palavra a traduzir a justaposição de imagens, de temas, interligados na experiência de vida, na sensorialidade do natural e da natureza, na sonoridade simples (in Ilhas, 1990):
Cumpridos os deveres compridos deixaram
De assediar minhas horas
Doce a liberdade retoma em si minha leveza antiga
A sabedoria constrói-se também com movimento, do mar ou outro - vento, tempo, pessoas -, como se antevê em "Coral" (in Coral, 1950):
Ia e vinha
E a cada coisa perguntava
Que nome tinha
A reflexão social plasmada na denúncia dos desfavorecidos e na ironia destinada aos seres racionais não impede que as origens aristocratas de uma biografia rimem com um apurado sentido de justiça, de luta pelo bem comum, de partilha e de generosidade (in "Epidauro 62" de Ilhas, 1989):
Oiço a voz subir os últimos degraus
Oiço a palavra alada impessoal
Que reconheço por não ser já minha
Que reconheço por não ser já minha
Recuperei os cinquenta anos do "25 de Abril", nesse poema inicial dos tempos de liberdade e democracia, de luz e limpidez, afastando a noite e o silêncio.
Numa irmandade de leitores, deu-se voz à obra que todos tinham à mão. Leituras singulares, experiências em coro, animadas por esquemas que não precisaram de qualquer ensaio. Só a vontade de ler, de viver a palavra, o ritmo, a voz, a companhia. A poesia uniu o que de melhor havia em todos.
Culminou a atividade num almoço concluído com a "Cantata da Paz" (in Canções com aroma de abril) - nunca melhor poema para os tempos de guerra que (ainda) vivemos.
"Vemos, ouvimos e lemos / Não podemos ignorar ", repetidamente declamado a cada estrofe de lamento, violência e destruição, parecia uma oração trazida para o seio dos crentes, nessa religião tão necessária e tão nossa: a da paz e da poesia.
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