Na nossa cabeça está o que precisa de ser explicitado; e, se não está, interessa criar o acesso para tal.
Q: Colega, podia explicar-me o que é a estrutura argumental? Qual é a relação com funções sintácticas? Ou tem mais a ver com Semântica?
R: A noção de estrutura argumental prende-se com a natureza relacional, semântica e lógica que certas classes de palavras revelam, nomeadamente a dos verbos (entre outras).
Trata-se de uma noção que ganha relevo com a reintrodução do significado enquanto elemento fundamental na análise dos fenómenos gramaticais (tendência linguística assinalada desde o último quartel do século XX, mas que teve a sua génese em textos pioneiros que remontam à década de 90 do século XIX - como, por exemplo, os clássicos “Sobre o Significado e a Referência” e “Sobre o Conceito e o Objecto”, de Frege) e que permite construir uma interface entre sintaxe e semântica.
Ao nível da análise de frases, com a 'estrutura argumental' redefine-se a estrutura básica destas: não se focaliza a relação sintagmática configurada pelas funções do sujeito e do predicado (ou SN + SV), caracterizada por marcas formais, mas a relação semântica mantida entre o verbo e os seus argumentos. Ou seja, o núcleo verbal assume a propriedade de seleccionar um determinado número de argumentos (configurados como sintagmas nominais, adjectivais, adverbiais ou preposicionais) que saturam o significado daquele. A título de exemplo, pode dizer-se que ‘morrer’ requer um argumento (algo / alguém morre); o verbo ‘ouvir’, dois (alguém ouve alguma coisa); e ‘prometer’, três (alguém promete algo a alguém). Acresce a isto o facto de os verbos, segundo a sua natureza semântica (isto é, segundo o tipo de situações denotado: acções, processos ou estados), determinarem os papéis semânticos ou temáticos dos argumentos seleccionados. Genericamente, o verbo de acção ‘prender’ selecciona um agente e um paciente:
(i) A polícia[Ag] prendeu o assaltante.[Pac]
(ii) O assaltante[Pac] foi preso pela polícia.[Ag]
Verbos que denotam processos, como ‘entristecer’, requerem os papéis de experienciador e de instrumento ou força:
(iii) Os pais[Exp] entristeciam com a pouca sorte dos filhos.[Inst]
(iv) A pouca sorte dos filhos[Inst] entristecia os pais.[Exp]
Pelos exemplos dados, é possível verificar como um mesmo esquema semântico (agente / paciente, em i e ii; experienciador / instrumento, em iii e iv) pode dar lugar a formas de organização sintáctica distintas, nas quais os argumentos e os papéis semânticos associados desempenham funções sintácticas diferentes (ex.: o 'agente' ora aparece como sujeito sintáctico, em i, ora é configurado como complemento agente da passiva, em ii; o 'paciente' assume quer a posição de complemento directo, em i, quer a de sujeito sintáctico, em ii; o 'experienciador' é sujeito sintáctico em iii, mas complemento directo em iv, enquanto o 'instrumento' toma a posição de complemento oblíquo em iii e a de sujeito em iv).
Resumidamente e focalizando o que há de comum, conclui-se que a sintaxe em interface com a semântica encara o verbo como elemento central, nuclear da frase; responsável pela distribuição de papéis temáticos ou semânticos, bem como pela constituição dos lugares vazios que completam o seu sentido na frase. Sobre o esquema semântico construído irão actuar as regras da sintaxe, dando a forma de função sintáctica aos argumentos seleccionados.
Nesta perspectiva, como que se constrói um primado universal semântico sobre o sintáctico, o que, aliás, se compagina com as noções de enquadramento, de quadros de referência, de conhecimentos de mundo, de imagens, de esquemas de organização mental, todos eles prévios às actividades desenvolvidas para compreender, interpretar, identificar e analisar usos de língua; o mesmo pode acontecer para se etiquetar os constituintes da estrutura frásica.
Daí, por exemplo, a vantagem de se trabalhar exercícios apoiados na formulação de instruções gramaticais que coloquem, junto a cada verbo, as palavras ou os grupos que fazem parte da sua valência significativa (lugares vazios ou argumentos); que reconheçam a distinção entre grupos de palavras seleccionados pelos verbos (os designados ‘complementos’) e outros que se revelam opcionais (os modificadores); que distingam diferentes significados para uma mesma forma verbal, segundo a estrutura argumental considerada. Veja-se o caso do verbo ‘tratar’, significando, respectivamente, submeter ou proceder, numa valência tripla (ex.: alguém1 tratar algo / alguém2 de determinada forma3); abordar ou expor (ex.: alguém1 tratar algo2) e, ainda, cuidar (ex.: alguém1 tratar alguém2), numa valência dupla.
Vai nesta linha a proposta de sistematização seguidamente apresentada:
in LP - 9º ano (Preparação para o Exame Nacional),
Porto, Edições Asa, págs. 124-125
Esta inter-relação da sintaxe-semântica resulta num contributo fundamental de conversão da reflexão gramatical tanto numa estratégia geral de abordagem relativa à organização do pensamento lógico como num meio de adquirir estratégias orientadoras para a comunicação verbal.
Eis o exemplo de um conceito que creio ser estruturante para o trabalho da gramática, mas que não necessita de ser explicitado (em termos de metalinguagem) na sala de aula. A estrutura e o mecanismo lógico implicados são, contudo, operacionalmente válidos e estrategicamente lógicos tanto no ensino como na aprendizagem da(s) língua(s).