sexta-feira, 3 de julho de 2009

Desafio linguístico: isto é predicativo?

     Não sendo questão nova, mantêm-se dúvidas (algumas com as quais me identifico), à espera de que se faça / construa alguma luz e certo de que esta tem de decorrer de estudo; também de pesquisa, de ensaio, de confronto, ... de tempo. Além disto, a vida também ensina que não há resposta para tudo... e cá vamos construindo estratégias de aproximação e de sobrevivência.


     Q: Que me dizes dos destacados? São predicativos do sujeito ou predicações?

i) O João está em Paris. / O médico está aqui.
ii) O João, muito doente, está em Paris.
iii) Esta tinta é para pintar a casa.
iv) A festa foi ontem.

    R: Algumas notas para algo que se tem vindo a tornar complicado:
(1) no plano semântico e da lógica proposicional, fala-se de 'predicações quando se atribui uma propriedade a uma entidade ou se estabelece uma relação entre entidades - nos exemplos dados, há predicações [estar em Paris], [estar aqui], [ser/estar muito doente], [ser para pintar a casa], [ser ontem] associadas a diferentes entidades;
(2) segundo, há que distinguir a terminologia do nível semântico-proposicional da de um outro que se prende com questões de natureza estritamente sintáctica (como as funções sintácticas, nomeadamente o predicativo do sujeito);
(3) terceiro,a questão da predicação, no domínio da lógica e da semântica, contempla segmentos proposicionais traduzíveis em funções sintácticas diversas;
(4) quarto, a predicação implicitada no segmento encaixado em ii - muito doente - é sintacticamente um modificador apositivo, explicativo ou não restritivo;
(5) quinto, a questão do predicativo do sujeito, no plano sintáctico, admite várias configurações: grupo adjectival (O João é inteligente), grupo nominal (O João é um crânio), grupo adverbial (O João está bem), grupo preposicional (O João está em êxtase);
(6) sexto, um caso que não é muito canónico é o que diz respeito a, por exemplo, 'O João está na escola' - 'na escola' é assumido por reputados estudiosos da sintaxe como um exemplo de predicativo do sujeito, argumentando-se com o critério sintáctico seguinte: um mesmo comportamento sintáctico determina a existência de uma mesma função, aferida por testes sintácticos comprovativos.
     Ora, assim sendo, na linha do que se lê em (6), teríamos:
a) O João continua doente.
b) O João continua no hospital.
c) Teste sintáctico da coordenação: O João continua doente e no hospital.
    Tudo muito bem: questão sintáctica, com testes sintácticos. Todavia, não tenho deixado de discutir muito este caso, ainda que reconheça que o teste sintáctico da coordenação seja sensível à classificação de predicativo do sujeito para os segmentos destacados.
     Eu não generalizaria este exercício a todas as ocorrências. Convoco, para estas últimas, a necessidade de uma interface entre a sintaxe e a semântica, particularmente no que diz respeito aos papéis temáticos assumidos pelos sujeitos / complementos / predicativos (à boa maneira integrativa da gramática de valências). Isto porque creio que o teste sintáctico não resulta tão eficaz em frases como 'A Maria está estudiosa e na praia' ou "A escola está ali e azul". Assinalaria estas coordenações, no mínimo, com uma interrogação, para marcar alguma estranheza (se não for mesmo pela agramaticalidade).
     Diria, por fim, que, à semelhança do verbo 'continuar' que nem sempre é copulativo (por exemplo, 'continuar um trabalho'), pode ser testada a hipótese de 'estar' e 'ser' admitirem realizações que se afastam da sua classificação prototípica. Nessa linha colocaria a realização 'ser para' proposta em iii), com o sentido de 'servir'.
       Didacticamente, considero assim relevante que, neste caso, se seleccione bem os exemplos a trabalhar, evitando cenários que se revelem demasiado complicados, porque não pacíficos ou implicando estratégias de manipulação / testagem ainda não acessíveis à consciência linguística ou ao processamento cognitivo dos alunos.

       Mais um exemplo para assumir a progressão da abordagem da gramática em função do critério de processamento cognitivo e dos mecanismos linguísticos implicados; não porque a tradição o determina. Como alguém já o disse "tradition is not what it used to be".

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