sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Entre Tchékhov e Saramago: a vontade de demissão.

   Há pensamentos cuja coincidência e oportunidade chegam a ser perturbadoras.

      Há cerca de quinze dias, ri-me da representação feita da personagem de um professor a gritar em pleno teatro "Eu demito-me! Eu demito-me". Riso intrigante para um outro professor com vontade de fazer o mesmo num outro palco: o da vida.
      Há doze anos, neste mesmo dia, sentia orgulho por o Português tanto ser falado no mundo, em virtude da atribuição do Nobel da Literatura a José Saramago. Na altura, já tinha lido O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), Memorial do Convento (1982), A Jangada de Pedra (1986), Deste Mundo e do Outro (1971), Todos os Nomes (1997) e O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991) - precisamente nesta ordem -, reconhecendo o embalo oralizante dos romances e o estilo criativo na escrita; o jogo cúmplice, irónico e denunciador das desigualdades e fragilidades humanas criado com o leitor; a reflexão humanista reflectida numa relação da arte de pensar com o posicionamento ético que aspira a um ideal social que coloca o Homem no centro. A todo o tempo, estes eram ingredientes saboreados e sublinhados em segmentos e pensamentos colhidos no que lia.
      Há minutos, revendo alguns dos versos de Os Poemas Possíveis (1966), parei numa pequena composição que, no momento, muito me diz. Agora, não me rio; porém, não deixei de relembrar o riso e como, em 'A Gaivota' de Tchékhov, o grito do professor espelhava uma vontade dominada pelo mal-estar do momento.

        Demissão


               Este mundo não presta, venha outro.
               Já por tempo de mais aqui andamos
               A fingir de razões suficientes.
               Sejamos cães do cão: sabemos tudo
               De morder os mais fracos, se mandamos,
               E de lamber as mãos, se dependentes.

                                                                                                        José Saramago

         Mordido que me sinto, espero que não me venham lamber as mãos.

Sem comentários:

Enviar um comentário