quarta-feira, 26 de março de 2014

No reino dos "se" (reflexos, recíprocos, indeterminados)

        Já tive a oportunidade de me referir à natureza camaleónica do "se".

       No que toca a classificar esta palavra, muito há a dizer, mesmo quando de um pronome se trata (para não considerar outras situações como as de conjunção ou mesmo a de realização derivada enquanto nome).

      Q: Boa tarde, colega. Quando surge depois do verbo 'lavar', posso considerar o 'se' como pronome reflexo?

           R: Boa noite, colega.
         A questão da classificação do 'se' não é limitada apenas à sua combinação com um tipo de verbos nem se pode concluir que um destes últimos determine a natureza do primeiro.
      É um dado que 'se' é um pronome reflexo (na correspondência e correferência entre o sujeito sintático  e o complemento direto da frase) em construções como as seguintes (expandíveis com a expressão 'a si mesmo[a]):

i) Ele lava-SE (a si próprio) com gel de banho, depois do treino.
ii) Ela feriu-SE (a si mesma) ao martelar o prego.
iii) Eles deixam-se (a si mesmos) levar pelas decisões do grupo.

    Pode acontecer que 'lavar-se' evidencie um caso não de reflexividade, mas de reciprocidade ('se' recíproco), parafraseável pela expressão 'um ao / com / pelo outro':

i) Os irmãos tomam banho e lavam-SE (um ao outro) juntos.
ii) Os inimigos atacam-SE (um ao outro) sempre que SE cruzam (um com o outro) na rua.
iii) Para felicidade deles, os namorados encontram-SE (um com o outro) todos os dias.

     Também pode acontecer que o verbo 'lavar' seja seguido de um típico 'se' associado a um sujeito indeterminado. Basta que, para tal, se faça a paráfrase proposta em ia):

i) Lavou-SE o casaco com todo o cuidado.
ia) (HOUVE) ALGUÉM (QUE) lavou o casaco com todo o cuidado.

    A classificação do 'se' requer, portanto, uma contextualização precisa, não sendo possível generalizações como as que possam estar pressupostas na dúvida / questão formulada.
   O caso é tão mais complexo quanto algumas construções de 'verbo+se' poderem ser ambíguas: 'encontrar-se', por exemplo, tanto admite a realização com um 'se' reflexo (em I) como dá conta de uma construção com 'se' recíproco (em II):

I) Depois de muito tempo perdidos, os jovens encontraram-SE
     (a si próprios <na sua própria identidade>).
II) Depois de muito tempo perdidos, os jovens encontraram-SE
      (um ao outro / um com o outro).

     Não fosse tudo isto suficiente para a problematização da questão, ainda há que considerar casos de 'SE' como pronome inerente (sem função sintática e encarado como parte integrante, incorporada nos próprios verbos - ex.: arrepender-se, rir-se, zangar-se, atrever-se - ou como evidência de uma redução de estrutura transitiva) ou de SE passivo (ex.: Lavam-SE carros < Carros são lavados). Eis, portanto, um reino com habitantes que, de tão parecidos, só têm a aparência.

2 comentários:

  1. Professor, boa noite.
    Era possível dizer como é que se pode identificar os casos em que o 'se' faz parte do verbo e não desempenha qualquer função sintáctica?
    Obrigado, desde já pelo esclarecimento que me possa dar. E parabéns pelo seu blogue.
    Cumprimentos.
    Artur Valada

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    1. Boa noite.
      Tratarei do assunto em apontamento autónomo, brevemente.
      Grato pelas palavras simpáticas.
      Cumprimentos.
      VO

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