quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Uma questão de 'ques'

      Com palavras tão elogiosas, como é possível não dar andamento à "Carruagem"?

      De regresso aos "que", com muito que se lhes diga.

      Q: Boa tarde, Vítor.
       Em primeiro lugar, começo por lhe pedir desculpa por, mais uma vez, o incomodar, mas a página Carruagem 23 é, de facto, um dos locais que prefiro para tirar dúvidas e aprender. 
         E as dúvidas de hoje são as seguintes:
       Gostaria que me confirmasse qual a classe de palavras a que pertence o "que" nas seguintes frases: "Se no tempo de Fernando Pessoa houvesse Facebook, então é que a arca nunca mais acabava." e "O especialista, se quiser, que continue a buscar as suas interpretações". Pronome relativo nas duas? Na segunda frase, parece-me, mas na primeira estou com muitas dúvidas.
       Já agora, e ainda em relação à última frase, como dividir e classificar as orações? Penso que "se quiser" é subordinada adverbial condicional e podemos considerar "O especialista que continue a buscar as suas interpretações" subordinante.
      Devemos ainda dividi-la em "O especialista que continue" subordinante e "a buscar as suas interpretações" substantiva completiva? " dado que a podemos substituir por "O especialista que continue isso". 
        Grata pela atenção, assim como pelo verdadeiro serviço público prestado à língua portuguesa.

     R: Boa tarde, colega.
        Primeiro de tudo, muito obrigado pelas suas palavras e pela confiança. Fico muito satisfeito por saber que esta "carruagem" tem público no seu andamento e que, pelos vistos, aprecia as "viagens" realizadas.
          Quanto à classificação dos 'que' indicados, registo o seguinte:

i) "Se no tempo de Fernando Pessoa houvesse Facebook, então é que a arca nunca mais acabava"
                                                                      Partícula de foco / operador de construção clivada

ii) "O especialista, se quiser, que continue a buscar as suas interpretações"
                                                                                     Conjunção completiva

      Em ii), a colocação dos elementos da frase na que seria a ordem canónica ( > que o especialista continue a buscar as suas interpretações, se quiser) permite verificar a presença de uma oração ('que o especialista continue a buscar as suas interpretações') com uma forma verbal no conjuntivo (continue), com valor seja diretivo seja optativo. Por sua vez, esta oração tem por base uma outra pressuposta / subentendida. Assim, é de admitir uma construção plena do tipo '[Peço / Permito / Espero / Desejo / Pretendo / Tenciono / Quero] que o especialista continue a buscar as suas interpretações'; daí o entendimento do 'que' enquanto conjunção subordinativa completiva ou integrante, introdutora de um argumento interno (complemento direto) ao núcleo verbal sugerido no sublinhado.


        Em i), 'que' integra uma expressão('é que') responsável pelo realce / destaque atribuído à oração consequente a uma condição inicialmente criada. A construção 'é que' (enquanto unidade) proporciona uma funcionalidade discursiva própria, tomando-se o 'que' como um operador do que os estudos linguísticos designam estruturas ou construções clivadas. Atendendo ao exemplo em concreto, 'é que' funciona como apresentador de uma oração (segunda), enfatizando o seu conteúdo na sequência da condição (contrafactual) pressuposta e na base de um raciocínio também pressuposto ( < [a coleção de documentos d]a arca nunca mais acaba). Em suma, a classificação deste 'que' situa-se mais no plano de análise discursivo-textual, da gramática de texto, do que no da tradicional gramática da frase. Tem, portanto, um sentido pragmático mais relacionado com atos de fala, nomeadamente o de uma reação ao que pudesse ser um ato anterior (implicado) como 'Esta arca nunca mais acaba!'
     Quanto à questão da divisão e classificação oracional do segundo exemplo, "se quiser" constitui uma subordinada adverbial condicional de uma frase matriz configurada por um núcleo verbal principal elidido (um dos acima propostos, no esquema, à esquerda). A este último sucede um complemento direto ('que o especialista continue a buscar as suas interpretações'); por sua vez, e a um outro nível de análise, na subordinada completiva terá de considerar-se (internamente) a existência de um sujeito subordinado (o especialista) para um predicado subordinado ('continue a buscar as suas interpretações') com um verbo ('continue') e uma oração não finita infinitiva a funcionar como complemento direto ('a buscar as suas interpretações').

       Na complexidade dos 'que' propostos e da análise oracional solicitada, fica o registo de que nem tudo o que parece é e, no que toca aos exemplos considerados, o ser tem razões muito além das frases que se podem ler.

3 comentários:

  1. Muito obrigada, Vítor, pelos esclarecimentos, tão completos e detalhados. Realmente, eu estava um pouco "baralhada".
    Continuo a dizer que quando apanho esta carruagem, aprendo sempre.

    Continuação do bom trabalho e um bem-haja!

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  2. Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

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  3. Muito obrigado, também, Francisca.
    Que estas "viagens" sejam tão proveitosas quanto a vontade de resolvermos, em conjunto, as dificuldades que nos baralham (porque nem tudo é simples na nossa língua, sempre a colocar-nos perante situações desafiantes).
    Com os votos de bom trabalho, coloco-me ao dispor para futuros "desafios" do Português.
    Renovado agradecimento pela atenção e pela confiança depositadas.

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