domingo, 20 de janeiro de 2019

Pelo andar da carruagem

       Pelo jeito que a coisa vai...

     Expressões sinónimas, por certo; mas com o termo "carruagem" há uma identidade da primeira com este blogue que a segunda expressão não tem. 
      Por mais impressiva que seja a situação, deve ser o resultado de uma visita ao Museu Nacional dos Coches (em Belém), depois de ter visto tanta carruagem, coche, berlinda, coupé, sege, liteira, cadeirinha, vitória, phaeton, landau, clarence, charabã, milords, caleça, carrinha, mala-posta... uma vasta coleção de viaturas hipomóveis usada em cortejos de gala ou eventos sociais relacionados com a arte da cavalaria e jogos equestres.
     Muitos foram os exemplares observados neste novo edifício aberto ao público há cerca de três anos, segundo o projeto arquitetado pelo brasileiro Paulo Mendes da Rocha (prémio Pritzker em 2006) em parceria com o arquiteto português Ricardo Bak Gordon.
      Enquanto a guia explicava, apaixonadamente, as características de cada um dos coches expostos e a evolução ocorrida nos transportes ao longo dos séculos, surgia a indicação do significado original da expressão "Pelo andar da carruagem": à medida que a carruagem se aproximava, os observadores locais deduziam acerca da importância, da posição ou da origem social de quem ia dentro dessa carruagem. Seja pelos materiais de construção seja pela quantidade de cavalos que a puxavam, a carruagem era um indicador de quem nela se transportava (rei, rainha, príncipes, nobre, patriarca,...).

Dos sécs. XVI ao XVIII - coches para todo o gosto (Foto VO)

      O acervo museológico contempla dos coches mais antigos do mundo, como o de Filipe II (III de Espanha) ao fundo da foto, aquando da sua viagem de Madrid para Lisboa, em 1619. A designação do transporte ('kocsi' ou 'koci') está relacionada com a cidade húngara de Kotze, origem da construção dos primeiros modelos, posteriormente exportados para Itália, bem como para todas as cortes europeias.
     O nome do Mâgnimo associa-se a vários modelos aparatosos, um dos quais no primeiro plano da foto supra à direita (Coche da Coroa). Este meio de transporte, embora destinado à realeza e às classes aristocratas, teve os seus exemplares mais faustosos usados em momentos solenes da corte, como casamentos reais, batismos de príncipes, aclamação de novos monarcas, embaixadas ao estrangeiro, deslocação de altos dignitários eclesiásticos, receção de soberanos ou figuras de alto prestígio no estrangeiro. Alguns serviram mesmo para um evento singular.

     Coche dos Oceanos - ao centro da foto, 
ladeado à esquerda pelo Coche do Embaixador 
e à direita pelo Coche da Coroação de Lisboa (Foto VO)

    O Coche dos Oceanos é uma das coqueluches do museu, pela espetacularidade ostentatória e faustosa joanina. Restaurado pela Fundação Ricardo Espírito Santo, é um dos três coches do conjunto de quinze que compunham a embaixada enviada por D. João V ao Papa Clemente XI, em Roma (um pouco à imitação do que D. Manuel I fizera ao Papa Leão X, em 1514). A oito de julho de 1716, D. Rodrigo Anes de Sá e Menezes (Marquês de Fontes) fez a sua entrada pública em Roma, antecedido de um magnífico cortejo que espantou não só a população romana como os reis da Europa, que não se atreveram, nos anos seguintes, a repetir o feito. O próprio D. João V mandou que os três coches, construídos em Itália, viessem de barco para Portugal, de forma a que os olhos reais pudessem confirmar a magnificência dos veículos tão comentada em Roma.

Coche da Mesa ou da Troca das Princesas (Foto VO)

    Também dos tempos joaninos é o Coche da Mesa ou o da célebre troca das princesas, junto à fronteira do Caia, a 19 de Janeiro 1729 (de Portugal saía, para Espanha, a princesa Maria Bárbara de Bragança, filha de D. João V, para casar com o príncipe D. Fernando, futuro rei Fernando VI, de Espanha; chegava a Portugal a princesa Mariana Vitoria, filha de Filipe V, para casar com aquele que viria a ser o nosso rei D. José I) - episódio de que se faz uma narração caricatural no segmento XXII de Memorial do Convento, de José Saramago (MC, 17ª ed., Lisboa, Ed. Caminho):

     «Porém, ainda se encontram famílias felizes. A real de Espanha é uma. A de Portugal é outra. Casam-se filhos daquela com filhos desta, da banda deles vem Mariana Vitória, da banda nossa vai Maria Bárbara, os noivos são o José de cá e o Fernando de lá, respetivamente, como se costuma dizer. Não são combinações do pé para a mão, os casamentos estão feitos desde mil setecentos e vinte e cinco. Maria Bárbara tem dezassete anos feitos, cara de lua cheia, bexigosa como foi dito, mas é uma boa rapariga, musical a quanto pode chegar uma princesa, pelo menos não caíram em cesto roto as lições do seu mestre Domenico Scarlatti, que com ela seguirá para Madrid, donde não volta. […] virá Mariana Vitória, uma garotinha de onze anos, que, apesar de pouca idade, já tem uma dolorosa experiência de vida, basta dizer que esteve para casar-se com Luís XV de França e foi por ele repudiada, palavra que parece excessiva e nada diplomática, mas que outra se há de usar se uma criança, na tenra idade de quatro anos, vai viver para a corte francesa a fim de se educar para o dito casamento, e dois anos depois é mandada para casa porque de repente deu a febre ao prometido, ou aos interesses de quem o orientava, de ter rapidamente herdeiros a coroa, necessidade que a pobrezinha, por inabilitação fisiológica, não poderia satisfazer antes de decorridos uns oito anos. Veio devolvida a coitada, magrinha e delicada, um pisco a comer, com o mal inventado pretexto de visitar os pais, rei Filipe, rainha Isabel, e pronto, ficou em Madrid, à espera de que lhe arranjassem noivo menos apressado, calhou ser o nosso José, agora com quinze anos, a fazer.» (pág. 297)
...


     «... quando D. João V atravessou o rio, no dia oito de Janeiro, para principiar a sua grande viagem, havia em Aldegalega, à sua espera, para cima de duzentas viaturas, entre estufas, caleças, seges de campo, galeras, carromatos, andas, uns que tinham vindo de Paris, outros feitos de propósito em Lisboa para a ocasião, sem falar nos coches reais, com as douradas frescas, os veludos renovados, as borlas e sanefas penteadas. Da real cavalariça, só em bestas, eram quase duas mil, não se incluindo nelas os cavalos da guarda do corpo e os dos regimentos da tropa que acompanham o cortejo. (...) João Elvas só vê cavalos, gente e viaturas, não sabe quem está dentro ou quem vai fora, mas a nós não nos custa nada imaginar que ao lado dele se foi sentar um fidalgo caridoso e amigo de bem~fazer, que os há e como esse fidalgo é daqueles que tudo sabem de corte e cargo ouçamo-lo com atenção, Olha, João Elvas, depois do tenente e dos trombetas e atabaleiros que já passaram, (...) vem agora o aposentador da corte com os seus subalternos, é ele quem tem a responsabilidade dos cómodos, aqueles seis a cavalo são correios de gabinete, levam e trazem as informações e as ordens, agora passa a berlinda com os confessores do rei, do príncipe e do infante, (...) depois aparece a berlinda com os moços do guarda-roupa (...) e outra vez não te espantes com essas duas berlindas cheias de clérigos e padres da Companhia de Jesus (...), aí tens a berlinda do estribeiro-mor, as três que vêm atrás são do corregedor da corte e dos fidalgos da casa de el-rei, segue-se a estufa do estribeiro-mor, depois os coches dos camaristas dos infantes, e agora atenção, agora é que começa a valer a pena, estes coches e estufas vazios que passam são os coches e estufas de respeito das reais pessoas, a seguir, a cavalo aparece o estribeiro-mor, enfim, chegou o momento, põe o joelho em terra, João Elvas, que estão passando el-rei e o príncipe D. José, e o infante D. António (...), e agora podes-te levantar, já passaram, já lá vão, iam também seis moços de estribeira, a cavalo, estas quatro estufas, aqui, levam a câmara de sua majestade, depois vem a sege do cirurgião (...), daí para trás é que já não há muito que ver, seis seges de reserva, sete cavalos de mão, a guarda de cavalaria com o seu capitão, e mais vinte e cinco seges que são do barbeiro de el-rei, dos copeiros, dos moços de câmara, dos arquitectos, dos capelães, dos médicos, dos boticários, dos oficiais de secretaria, dos reposteiros, dos alfaiates, das lavadeiras, do cozinheiro-mor, e do menor, e mais e mais, duas galeras que levam o guarda-roupa de el-rei e do príncipe, e, a fechar, vinte e seis cavalos de mão (...)» (pág. 300-303)

...

     «Caía a noite quando as primeiras viaturas da comitiva de D. Maria Ana começaram a entrar em Vendas Novas, mais parecendo um exército em debandada do que um cortejo real. As cavalgaduras, derreadas, mal podiam arrastar as berlindas e os coches, algumas iam-se abaixo das mãos e morriam ali mesmo, presas aos arreios. (...) Foi uma noite de grande desastre. Quisera a rainha seguir para Évora nessa mesma madrugada, mas foi-lhe representado o perigo da empresa, além de virem atrasadas muitas carruagens, o que resultaria em prejuízo da dignidade do cortejo.» (pág. 306-7)

    Depois, com o século XIX, são tantas as variedades de transporte urbano (basta lembrar a diversidade representada nos romances queirosianos, cruzando as ruas lisboetas) que uma ala do museu é praticamente ocupada com os modelos que a aristocracia, os burgueses e classe média mostravam à sociedade. Fico-me pela malaposta (dos inícios do século XIX), a poder dizer que é o transporte público mais remoto, dado o limite de transporte de dezasseis pessoas, entre a primeira e a segunda classes. Ao povo, restava-lhe o tejadilho, junto com as malas do correio (sem cinto de segurança e sem seguro, não obstante as quedas frequentes no trajeto).

     Num quatro rodas, com motor a gasóleo e muitos cavalos, fez-se o regresso a casa em cerca de quatro horas (saber que há pouco mais de um século, sem a hipótese do comboio, a viagem Lisboa-Porto ocupava mais de dia e meio).

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