sábado, 28 de dezembro de 2019

Dois Papas (ou uma realidade cruzada com ficção)

       Título para um filme da Netflix com alguma inspiração na realidade.

      Histórias do Vaticano e das vivências dos Papas ou a visão crítica do poder institucional pontifício têm sido fonte inspiradora para a produção de longas metragens na Sétima Arte. Dois Papas, pelo brasileiro Fernando Meirelles (que conta com produções como Cidade de Deus e Ensaio Sobre a Cegueira), é mais um desses exemplos, no registo de uma dessacralização e humanização louváveis. Apoiado num roteiro do neozelandês Anthony McCarten (de A Teoria de Tudo), baseado no livro O Papa, o filme propõe uma intriga construída a partir de conversas ficcionalmente verosímeis entre o Papa Emérito Bento XVI e o cardeal de Buenos Aires, Bergoglio - hoje o Papa Francisco.
    Recuando aos tempos da eleição de Ratzinger (2005) e de Bergoglio (2013), há dados de "acontecimentos reais" cruzados com ficcionalidade tão plausível quanto os Papas serem humanos, Joga-se mais com os homens do que com a posição santificada que ocupam - homens que dançam tango, comem pizza, torcem por equipas de futebol e falam sobre os ABBA (quando Bergoglio trauteia 'Dancing Queen'), tudo é verdade tão convincente quando a ficção instaurada. A ser verdade, este conjunto de episódios resulta tão caricato que aproxima e familiariza as personalidades representadas de todos os que as conhece(ra)m e delas têm uma imagem com a qual mais ou menos se identificam.

Montagem de Trailers do filme de Fernando Meirelles (2019)

       O dado mais real é o da renúncia factual de Bento XVI e a ascensão do argentino Jorge Mario Bergoglio a Santo Padre. A ficção mais evidente é a da crítica aos sapatos desatacados de Borgoglio, quando foram os vermelho de Bento XVI mais contundente e veridicamente comentados; a do confronto de duas personagens, entre a mais dogmática e erudita e a mais progressista e pragmática, interpretadas por Anthony Hopkins (Bento XVI) e Jonathan Pryce (Francisco), a espelhar vivências e visões de mundo bem distintas, ainda que complementares e convergentes na resolução de uma crise eclesiástica crescente e resultante de sucessivos escândalos (como é o caso dos abusos sexuais, a corrupção moral e financeira, as relações com regimes ditatoriais, entre outros).
     O sigilo do que se passa na Capela Sistina à hora da eleição cardinalícia é de alguma forma desvelado, numa encenação marcada por rituais e formalidades que pairam em registos dispersos a que ninguém, para além dos purpurados, assistiu, mas que foram ora tornados públicos ora sucessivamente desmentidos. No talvez seja, a fronteira entre o ser e o não ser resulta frágil; no filme, é tratada como uma possibilidade de encenação de jogos de influência. Não bastam as relações do poder político com o religioso (e vice-versa); as ascendências e os influxos internos à instituição da igreja são uma imagem bem evidente do(s) poder(es) convocado(s), distinta do sentido religioso mais espiritualmente virtuoso.

Cena do filme 'Dois Papas' (2019), de Fernando Meirelles

       O espírito final do filme, com ambos os papas em amizade estreita, é o da reconciliação, o do perdão, o do reconhecimento que é mais forte e humano o que (n)os une do que as ideias que (n)os possam separar - se é que estas alguma vez foram assim tão diferentes, a julgar pelo espaço que um Papa dá a outro. Afinal, a confraternização e a celebração de um jogo do mundial são pontes de uma aproximação que se faz noutros capítulos da vida, como nos da fé. É possível que os contrários se atraiam, que os diferentes se juntem e que os opostos busquem plataformas de entendimento.

       Entre as reflexões sérias e as confissões fortes das conversas mantidas, há também espaço para o cómico, o caricato, o inusitado e o inesperado - ingredientes necessários à identidade feliz e inteligente da vida humana.

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