segunda-feira, 13 de abril de 2020

História de um agente entre a gente

     Em tempos de confinamento, nem sempre as paredes aguentam comigo.

    Poupo-as, por uns instantes, ora dando uma caminhada no meio de ninguém (e em horas de pouco movimento) ora indo de carro ver o mar. Estaciono, mantenho-me dentro, fazendo dele uma casa móvel e abrindo os vidros para um mundo maior. Leio ou trabalho; vou vendo o mar, contemplando algumas gaivotas passageiras, observando nuvens deslizantes a acinzentar o céu ou o torná-lo aqui e além manchado de flocos cotonosos.
    Por vezes, passa um camião carregando um painel publicitário, no qual se lê o convite para todos ficarem em casa, a bem de muitos. Um altifalante complementa a mensagem estampada no painel: "Fique em casa. É tempo de confinamento, por causa do Covid-19. Fique em casa, pela sua saúde e pela de todos". Compassadamente, circulam ainda agentes policiais, a pé ou de carro, dissuadindo aqueles que pretendem chegar ao areal interdito ou correr pelos passadiços bloqueados, fitados com uma cruz impeditiva de circulação. Mesmo os que, como eu, estão fechados no habitáculo do automóvel não estão livres de abordagem persuasiva da autoridade.
    Aconteceu-me hoje que, estando a trabalhar com o computador, fui abeirado, com o distanciamento social devido, por um agente que, simpaticamente, me perguntou se estava tudo bem e se pretendia ficar naquele local (aprazível) por muito tempo. Pelo suspiro que soltei e pelo meu ar de desagrado, de saturação face à previsível sugestão de voltar para as minhas paredes, o polícia apercebeu-se da minha necessidade de respirar outros ares e, com toda a compreensão, justificou a sua atuação: sensibilizar para os cuidados a ter e para evitar que muita gente se concentrasse junto ao mar (evitando os ajuntamentos críticos). Agradeci a atitude e o serviço que estava a ser cumprido. E talvez por isso, de seguida, veio a concessão: assim que concluísse o trabalho e fizesse uma possível caminhada solitária, solicitava o recolhimento a casa. Voltei a agradecer, pelo cuidado e pela compreensão, ao que assentiu que tínhamos ambos de ser compreensivos e reconhecidos nas palavras e nos bons atos.
     Apreciei bastante a postura e o exercício compassivo da autoridade. Solicitei apenas uns minutos mais. Respondeu que não havia problema, desde que não infringisse as interdições visíveis a todos na praia. Sosseguei-o quanto a isso, pois não pretendia sair da "minha concha". Disse-me, então, para eu estar à vontade e, por fim, acrescentou que "Se todos cumprirmos, quando contermos o vírus, vamos poder mais rapidamente aproveitar a vida em conjunto". A ideia era perfeita, mas o "contermos"...
    O futuro do conjuntivo do verbo 'conter', na primeira pessoa do plural, é 'contivermos', senhor agente - isto foi o que pensei; o que gostava de ter dito. No entanto, achei por bem fazer igualmente uma concessão. Valorizei mais a atitude do que a correção do discurso. Eu podia ter concordado, repetindo a mensagem com a forma correta, como normalmente o faço em situações análogas ("Sim, se CONTIVERMOS o vírus, vamos todos ser mais felizes"). Não o fiz, porém, atendendo à qualidade da interação, na qual uma falha gramatical não comprometeu o interesse nem o foco da comunicação.

       Lá diz o provérbio que "No melhor pano cai a nódoa" - acidentes que acontecem a todos os que também usam "boas palavras" (mesmo que estas não sejam as gramaticalmente mais corretas).

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