sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

"Não há guitarras nem cantar de amigo..."

      Não começa da melhor forma o ano, para a música portuguesa (e do mundo).

    Anunciada a morte de Carlos do Carmo, não se pode dizer que seja uma surpresa, dada toda a preparação da despedida artística em novembro passado, em concertos no Porto e em Lisboa. Feito o agradecimento público a quem o acompanhou como cantor, chegava o tempo de um afastamento e uma preparação para a hora que hoje se cumpriu. 58 anos de carreira sóbria, rigorosa e consolidada; 81 de idade são sinais de um percurso humano cuja previsibilidade pode ser confirmada, mas nunca desejada.
    Dizem que foi o renovador do fado. Fosse este último interpretado mais ou menos como canção, teve sempre a sonoridade rítmica, vocal e instrumental típica que identificou Carlos do Carmo como fadista de renome. Também com a sua ação persistente, em muito contribuiu para que o fado conquistasse a categoria de Património Cultural e Imaterial da Humanidade pela UNESCO (numa declaração aprovada em novembro de 2011, no VI Comité Intergovernamental, em Bali, na Indonésia).
    Aqui fica um registo do que foram as minhas primeiras memórias para esse grande intérprete nacional (e não só). Foi a experiência de um Festival da Canção Português, todo cantado por Carlos do Carmo. Algumas das cantigas concorrentes, não tendo vencido, acabaram por se tornar músicas para todo o tempo, em várias versões (o caso de "No Teu Poema", "Estrela da Tarde"). A vencedora, "Uma Flor de Verde Pinho", contava com a participação de Manuel Alegre (autor da letra) e José Niza (composição musical), versando já sentidos, símbolos e referências da cultura, história e literatura portuguesas (com as "flores de verde pino", de D. Dinis; os amores de Pedro e Inês; o "fogo amor" camoniano; o mar da diáspora nacional):

Versão de "Uma Flor de Verde Pinho" (no Festival RTP da Canção)

UMA FLOR DE VERDE PINHO

Eu podia chamar-te pátria minha 
Dar-te o mais lindo nome português 
Podia dar-te um nome de rainha 
Que este amor é de Pedro por Inês. 

Mas não há forma não há verso não há leito 
Para este fogo amor para este rio. 
Como dizer um coração fora do peito? 
Meu amor transbordou. E eu sem navio. 

Gostar de ti é um poema que não digo 
Que não há taça amor para este vinho 
Não há guitarras nem cantar de amigo 
Não há flor, não há flor de verde pinho. 

Não há barco nem trigo, não há trevo 
Não há palavras para dizer esta canção. 
Gostar de ti é um poema que não escrevo. 
Que há um rio sem leito. E eu sem coração.

       Assim se representou Portugal na Eurovisão, em Haia (Holanda), em 1976:

      Versão de "Uma Flor de Verde Pinho" (no Festival da Eurovisão, em Haia)

     Recentemente galardoado com o Grammy Latino de Carreira (2014), a Rádio Comercial prestou-lhe uma merecidíssima homenagem, convocando várias vozes nacionais de diferentes gerações para cantar um dos seus fados mais populares, dedicado à cidade que o viu nascer e morrer: "Lisboa, menina e moça".

      Homenagem a Carlos do Carmo (numa feliz iniciativa da Rádio Comercial)

     À hora da morte, sublinhados os valores profissionais e humanos, fica o sentido de uma grande perda coletiva perante um caminho artístico e humano bem cumpridos e largamente reconhecidos.
     

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