sábado, 5 de dezembro de 2015

Do rio para o mar: no caminho dos modernos

     Por várias vezes me cruzei com ele, mais propriamente com o que escreveu, para não falar da estátua-homenagem que, na Foz, vê o casamento do rio e do mar.
Monumento na Foz do Douro a Raul Brandão,
de Henrique Moreira e Rogério Azevedo (pelo centenário do nascimento) -  Foto VO
       Assim o li ou revi noutras formas de expressão artís-tica nele inspiradas.
   Há oitenta e cinco anos morria Raul Germano Brandão. Quase ninguém dele fala, até por causa dos oitenta anos de um outro contem-porâneo do autor de Húmus (1917) ou O Pobre de Pedir (1931) - refiro-me, naturalmente, a um Fernando Pessoa, que não apaga os demais, mas se impõe pela grandiosidade que deles também colheu.
     Do prosador, dramaturgo e pintor nascido na Foz do Douro (a 12 de março de 1867) ficaram soberbas páginas plenas de uma paisagem geográfica, física e humana que respeita e resiste ao mar (ou não fosse ele descendente de quem com este conviveu). Subscritor do manifesto "Nefelibatas" (que sai no Porto, no findar de 1891), "andou nas nuvens" pela idealização e reflexão construídas, numa alternativa a um contexto finissecular e a uma sensibilidade pessimista e decadente que se impunham no período da sua existência.
     Num pensamento focado sobre a condição humana, o sofrimento, a angústia, o mistério e a morte, várias são as personagens traçadas pelo negrume dos ofendidos e humilhados, de uns miseráveis que (de humildes e espezinhados) se revelam num grito de sensibilidade ferida pelo espetáculo degradante do mundo; pelo gosto literário novo da apreensão dos matizes da vida psicológica, na sua complexidade e evanescência.
      Aproximando a escrita poética e filosófica, muita da prosa brandoniana coloca em causa os modos de representação do real, sublinhando, preferencialmente, uma meditação sobre a metafísica da dor, o absurdo da condição humana. As categorias narrativas do tempo, do espaço, da ação / intriga e das personagens esboçam simbolicamente um universo mais abstrato do que concreto, como pano de fundo para o drama secular da luta do homem entre o sonho e a desgraça. Assim a vila / vida de Húmus se apresenta; a árvore, enquanto símbolo simultâneo de prisão terrena e ascensão celestial, se mostra sustentada de desgraça ("As suas raízes alimentaram-se deste húmus - a vida dos pobres, das prostitutas, dos gebos", in Os Pobres, de 1906); o discurso fragmentado se compõe e recompõe, refletindo o reconhecimento da densidade psicológica, divagante e divagadora no(s) tema(s) pensado(s); o pluricódigo literário, artístico se afirma, numa combinação de reflexão, sensibilidade e produção escrita orientadas para um discurso coerentemente sincopado, fragmentado, típico de uma existência (e por que razão não já dizer de um existencialismo avant la lettre) em crise, para um gosto estético do tempo.

      Na sua obra poética, Verlaine escreveu "Il pleure dans mon coeur / comme il pleut sur la ville
"; na vila / vida de Raul Brandão, "O Homem é tanto melhor quanto maior quinhão de sonho lhe coube em sorte. De dor também". Eis uma visão e conceção modernas, prenunciadas num tempo ligeiramente anterior ao Primeiro Modernismo português.

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