segunda-feira, 1 de março de 2010

Da verdade e da ficção: um jogo de anjo

      A propósito do final da leitura de O Jogo do Anjo, do catalão Carlos Ruiz Zafón.

      No jogo de interacções das personagens, Cristina (a paixão de David) cita, na fase final do romance, as palavras do marido (um diletante, um pretenso escritor e um homem, na essência, falhado, não obstante o relevo social que lhe dão): "O Pedro costuma dizer que a única maneira de conhecer realmente um escritor é através do rasto de tinta que ela vai deixando, que a pessoa que julgamos ver não passa de uma personagem oca e que a verdade se esconde sempre na ficção."
      Talvez o complemento para tal constatação se situe já nas primeiras duzentas páginas: vem de David, para Isabella (a apaixonada que não tem correspondência, senão num amor de segunda chance). Aí se lê que "Toda a obra de arte é agressiva (...). E toda a vida de artista é uma pequena ou uma grande guerra, a começar pelo próprio e pelas suas limitações. Para chegar a alguma coisa que te proponhas é preciso primeiro a ambição e depois o talento, o conhecimento e, por fim, a oportunidade."
    Palavras para a ficção e para a obra de arte; palavras para a vida.
   No fundo, este é um dos pensamentos-matriz de O Jogo do Anjo (2008), do mesmo autor de A Sombra do Vento (2001).
     A Barcelona da década de 20 (século XX), misteriosa, enigmática, dominada pela necrópole de "Rosa de Fogo" faz-se pressentir neste livro, cuja intriga é temporalmente situada, em termos narrativos, antes das coordenadas que abrem o romance de 2001. Diria mesmo que o final de O Jogo do Anjo tem os motivos, as origens para a abertura de A Sombra do Vento, pela entrada de algumas personagens que se recuperam (daquele para este, na lógica da cronologia das acções narrativas; deste para aquele, no plano da produção escrita). Desta feita é um escritor que se afirma no seu percurso biográfico, pautado pelas Great Expectations, de Charles Dickens. Um caminho feito com a escrita, com a literatura, com a irónica ventura marcada pelos tons do romance gótico e pela(s) certeza(s) da(s) morte(s) que compõe(m) a vida. A mesma paixão pelos livros (procurados, possuídos, guardados); os livros que salvam vidas, qual criação para a sobrevivência do criador (tal como Passos do Céu acabará por salvar David quando este é atingido pelo inspector Victor Grandes).
      Entre o campo do sonho, do fantástico e dos conflitos de uma vida romanceada, cresce David Martín, como escritor e como homem. Como alguém que constrói as suas narrativas, tal como o faz com a sua própria vivência, feita de perdas, de reencontros, de concretização de sonhos, de ciclos que importa rever, amar e acompanhar, para de novo perder.

       No jogo da ficção (e da vida), esta é a bênção e a vingança do anjo.

6 comentários:

  1. Obrigada, Vítor, pela partilha.

    Tenho mesmo de ler este autor. Como o outro disse, não sei é quando.
    Já contactaste com Carlos Ruiz Zafón?
    Estou em crer que ele gostaria.
    Um beijinho e boas (partilhas de) leituras!

    Dolores

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  2. Dolores,

    Nunca vi o homem; só por fotografia. Ainda fui até Barcelona. O encanto e a mística dos livros ainda lá estão, mas o autor...
    Eu é que gostaria de o conhecer, de o contactar, quanto mais não fosse para lhe perguntar quando é que sai o próximo romance. Mas isso já ele deve estar farto e cheio de responder, face aos milhões de leitores que já tem.
    Bjs

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  3. É caso para dizer "Louvado seja o senhor"! Há quanto tempo andava esta carruagem vazia! E agora é acções de formação, é paisagens e... um anjo que joga!
    Se este for como " A Sombra do Vento", vai "ser um tirinho"! O que significa que vais ter que mo emprestar. Isto é uma espécie de ultimatum.
    Tudo de bom e continuação de bom descanso!

    bjinhos
    Isaura

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  4. Ó amiga,

    Isto se não são as férias (digo, pausa... pausinha) para pôr ordem nos assuntos não sei como aguentar. Das duas uma: ou o tempo está a correr muito depressa ou eu não estou a aproveitá-lo convenientemente.
    Quanto ao ultimatum, está garantido. Com ou sem tirinho, instaura-se já uma revolução... muito COLTURAL!!
    Bjs

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  5. Caros "bloggers"

    Foi bom encontrar aqui Zafón.
    Li "A sombra do Vento" logo que saiu atraída pela capa, pelas referências aos livros e a Barcelona (uma das minhas cidades de eleição). E fiquei completamente seduzida. Aguardei impacientemente a tradução de mais um livro, quase me resolvi a ler um em Espanhol, mas na altura só encontrei umas publicações infanto-juvenis. Aguardei, portanto. Quando a notícia da publicação de "O Jogo do Anjo" saiu, corri para a livraria, coloquei o livro na carteira, sabendo que nos próximos dias ela pesaria mais um pouco, e, mal pude, abri-o.
    E li-o, mas fiquei um pouco decepcionada. Falta-lhe garra, falta História, falta aquilo que me prenderia a ele... Por isso, para mim, Zafón é ainda "A Sombra do Vento", cheio de História, de ruas, de livros, de mistério, de personagens cheias, fortes...
    Boas leituras.
    Luísa

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  6. É verdade. Da comparação dos dois, 'A Sombra do Vento' ganha também para mim.
    No final de 'O Jogo do Anjo' fica um pouco a sensação de querer mais; de ter ficado qualquer coisa por explicar no passado de David Martín ou até na benesse concedida pelo "patrão". Chega a ter fantástico a mais.
    O que falta em História tem em Geografia: Barcelona está lá, a antiga (um pouquinho mais do que a de "A Sombra do Vento", e dá para a recordar / respirar.
    Um bom livro, de qualquer forma.

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