sábado, 9 de outubro de 2010

Que desassossego!

    Entre o Livro do Desassossego, de Bernardo Soares, e o Filme do Desassossego, de João Botelho, há uma janela de vidro com a cara de Pessoa reflectida.

    Depois de assistir ao filme, no Teatro Nacional de S. João, consciencializei-me de que fui ao 'teatro' ver 'cinema' - um exemplo da possível confluência na exploração de movimentos, expressões e sentidos estéticos partilhados na Arte.
    Desassossego foi a palavra de ordem no balanço final: pela sucessão fragmentária de imagens a espelhar o registo e o estilo do livro de Bernardo Soares (desse ser que, não existindo, deixou obra); pela abordagem a uma interarte (dança, música, cinema, teatro, literatura, fotografia, ...), a um entrecruzamento artístico inspirado a partir do intertexto e intratexto pessoano ortonímico e heteronímico; pelo devaneio que constituiu todo o intervalo de tempo entre a cena inicial e a final, num bar, onde Pessoa se encontra (numa sugestão dessa desafiante ambiguidade que persiste entre Fernando Pessoa e o duplo Bernardo Soares, entre a ortonímia e heteronímia pessoanas); pela identidade e actualidade que as geniais reflexões de Bernardo Soares mantêm face à existência humana (nomeadamente à do homem moderno, cuja identidade está contingencialmente marcada pela alteridade); pela evocação fílmica da consciência e da inconsciência, do sensível e do inteligível pessoanos, a ponto de estes serem visibilizados no dialogismo dos discursos reflexivos.


     Se, como é citado no filme, a Literatura é a arte que casa com o pensamento, este não deixa de se alimentar do que toda uma herança cultural lhe oferece; do que as experiências vividas permitem reconhecer. Quanto ao sonho, há que libertá-lo do enleio que a vida às vezes (nos) apresenta.

    Entre o tédio, a angústia, a inquietação, tanto rasgo de lucidez chega a ser um desassossego; um filme feito do fragmentarismo e da profundidade de um discurso introspectivo não provoca desassossego menor.

1 comentário:

  1. Antigamente só fazia arte aquele que tinha um dom especial, mas agora faz arte aquele que tem sentimentos. E como esses todos nós temos, a arte deixou de ser especial para se tornar algo generalizado e que qualquer um pode fazer.

    A citação não está correcta, porque a informação era tanta que se tornava impossível conseguir reter tudo; mas a ideia essencial está presente. A banalização que tem sido feita ao longo dos tempos torna-nos cada vez mais comuns.

    Um filme difícil, mas muito bom.

    Um beijo,
    VS

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