segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Tudo é possível... sabendo!

     A questão não é estranha, mas tem algo a ver com o que não se sabe (mas que se pode vir a saber).

     Q: Como é possível dizer-se que há termos correferentes não anafóricos? Se fazem parte da cadeia de referência não devem ser simplesmente anafóricos face aos antecedentes?

     R: Pode ser que o mais típico na construção de enunciados coesos se associe a cadeias de referência construídas na base de termos anafóricos, o que significa que as relações de dependência entre antecedentes e termos subsequentes são diretamente comprováveis no discurso / no texto (investimento na própria recuperação do já mencionado) ou, então, verificáveis em conhecimentos de mundo partilhados, estabilizados, de relação biunívoca evidente, não discutíveis. O seu imediatismo associativo contribui para que se construam redes referenciais facilitadoras de mecanismos de memorização da informação e sua linearização progressiva na abordagem temática.
      Todavia, nem sempre acontece isto. Há antecedentes e anafóricos que só são compreensíveis na base de um conhecimento de mundo que, eventualmente, só alguns detêm e que, portanto, carecem de uma fundamentação, pesquisa, inferência face ao não dito (apoiada em implicaturas).
      Admitindo um enunciado do tipo de (i), poderá entender-se a necessária relação de Pedro / carro (a bem da possibilidade de coerência do enunciado:

      (i) Não sei onde está o Pedro, mas o carro está na garagem.

      Elipticamente, está a referir-se o carro do Pedro. O facto de o carro estar na garagem significará que o Pedro não está longe de casa, mas não é encontrado pelo sujeito falante. Neste sentido, a implicatura subjacente a este raciocínio permite inferir a relação correferencial dos termos 'o Pedro' e 'o carro'; só que, na verdade, esta relação é não anafórica, uma vez que a dependência dessas palavras se faz porque há o conhecimento, no mínimo, de que o Pedro tem carro e que o Pedro só sai de casa de carro.
     A coesão construída em termos lexicais, nomeadamente com as perífrases e as associações, é reveladora deste tipo de correferência, muito mais interessada em investir no conhecimento acrescentado / a explicitar do que principalmente na memória do já mencionado. Por exemplo, quando, para evitar repetições desnecessárias na escrita, se ensina um aluno que pode substituir Camões por 'o poeta português', na verdade está a estabelecer-se correferência não anafórica entre os termos, pois há muitos mais poetas portugueses além de Camões (o mesmo já não acontecerá tanto com a perífrase 'o épico quinhentista português', por consensualmente aquele ser o mais conhecido, se não for o único que cabe neste conhecimento). 
    Repare-se, entretanto, em (ii)

    (ii) O Pedro não estava em casa, mas o amigo do João não se esqueceu do encontro que havia marcado.

    Dizer que 'o Pedro' é 'o amigo do João' não é necessariamente verdadeiro para todas as situações (só para a enunciada), pelo que só um conhecimento extralinguístico admitirá a existência de correferencialidade (não anafórica) entre ambas as expressões. 

   Quando se passa a saber (o que não se sabia), até (passa a) faz(er) sentido aquilo que parecia aparentemente contraditório.

2 comentários:

  1. E assim se entretecem pontos que só fazem sentido(s), quando as "implicaturas" emergem num tecido textual, partilhado, no mínimo, por dois...

    Gostaria que esta "correferência não anafórica" se chamasse talvez "cumplicidade para-textual"! É um conceito muito menos árido!:-)

    Obrigada por nos ires esclarecendo, explicitando o que vive no/do implícito.
    Beijinho
    IA

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    1. Seria muito mais árido, minha amiga.
      As cumplicidades paratextuais desfazem-se. O texto é muito mais fiel nas relações, sob pena de se tornar incoerente (e isso seria a negação do próprio texto).
      Sempre às ordens e ao dispor.
      Beijinho.

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