sexta-feira, 29 de março de 2013

Ai Dante... Dante..., nem divina nem comédia!

     Se o sentido original da palavra 'comédia' se associa ao Paraíso (não pela diversão, mas pelo final bom destinado aos que a vivem), a Tragédia, por contraposição, acaba mal.

Busto de Dante Alighieri, junto â Casa-Museu de Dante
Florença (foto VO)
   Dante assim o quis na sua Comédia, mais tarde rebatizada de A Divina Comédia (por Giovanni Boccaccio), uma vez que o término da obra coincide com a parte do Paraíso (depois de percorridos o Inferno e o Purgatório ).
    No início, quando Dante e Virgílio se deslocam até ao Inferno, deparam à entrada com um letreiro escuro: "Deixai, ó vós que entrais, toda a esperança" É este o terceiro verso da terceira estrofe do canto III, na primeira parte das três que compõem a obra (tanto três!).
   Há quem o cite para retratar o contexto crítico, paralisante e austero que hoje se vive em Portugal - como se quem faz a citação soubesse que a obra serve de modelo e combate ao adversário político. Os versos, contudo, são um pequeno átomo para toda uma orgânica da narrativa épica e surgem descontextualizados na associação feita: ao contrário de Dante, nós não entramos no Inferno; já nele estamos e alguém por certo abriu bem a porta. Mesmo na contingência (se não for certeza) de o caminho pelo Inferno e pelo Purgatório poder vir a ser pior do que o esperado, estamos em curso, sabe-se lá se com a fé ou a graça de uma Beatriz, a acalentar a possível esperança de atingir o Paraíso. Não será o mestre Virgílio, ou quem o represente no seu exercício de suposta racionalidade, a fazê-lo - talvez porque haja muitas razões, e não apenas uma, a considerar.
      Mais do que uns versos, citar o renascentista toscano implica saber que o também autor da Vita Nuova e partidário dos "guelfos" (uma das fações políticas da Florença dos séculos XIII-XIV, a par da dos gibelinos) vê a mulher amada levá-lo até ao rio Lete, aquele cujas águas, uma vez bebidas, apagam a memória e os pecados, como condição necessária ao renascimento. Esperar-se-á que também sejamos dominados por tal esquecimento?
    Selecionar o que se cita, sem considerar todo um contexto, é jogo que pode ser lido como falseador, ma-nipuladoramente re-dutor.

Fresco de 
Domenico di Michelino:  
A Comédia ilumina Florença
(na parede da 
Duomo de Florença 
de Santa Maria del Fiori
- foto VO)

     Se é criticável (porque desencorajador) o letreiro de entrada no Inferno, é bom reconhecer que nenhum Lete pode anular evidências herdadas de um passado ainda tão presente. Nem em tempo de Páscoa a redenção é possível, quando a "comédia" (desejada e em construção) está longe da ética de alguns protagonistas que nos têm governado nas últimas décadas, inclusive dos que têm reaparecido sem estarem isentos pelas (in)ações e pelas saídas que assumiram.

2 comentários:

  1. Em momentos de crise, muitos autores e obras de arte intemporais são nomeados. Nem sempre da maneira mais correta, é claro. Também versos de Luís de Camões e Fernando Pessoa são citados para os mais diversos fins e nos mais diferentes contextos.
    Pena é que tanto ruído e vozearia tenham ajudado a anular o prazer da leitura, nem que ocupasse apenas uns minutos do dia.
    Não percamos, contudo, a esperança (será que se pode ser otimista?!)
    feliz Páscoa!
    M.

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    1. Amiga,

      Tens razão. Daí que tenhamos de convidar à leitura dos textos na íntegra.
      Desde que se leu o Velho do Restelo na visão crítica aos Descobrimentos e à política expansionista muito ficou por dizer, também. O coitado do homem é visto como o que impede ir mais além. Como é possível?! Só quem não lê as várias propostas alternativas indicadas para o mesmo objetivo é que o pode ver como aquele que desaconselha qualquer avanço. Também aqui houve quem quisesse manipular o texto, segundo propósitos escusos ou no desconhecimento do que o texto / episódio integral dá a ler.
      Enfim...
      Não percamos a esperança, porque virá o tempo em que se voltará a sublinhar o interesse do que foi BEM escrito e BEM lido. O problema é mesmo ter tempo para ler tudo. Os consumos imediatos nunca deram bom resultado.
      Páscoa muito feliz para ti e para os teus.
      Até ao nosso reencontro.
      Beijinho.

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