sexta-feira, 21 de junho de 2013

Exame de Língua Portuguesa - 3º Ciclo

      Depois da primeira impressão de ontem, as certezas de hoje. Quem está a ser avaliado na prova de Língua Portuguesa de 3º Ciclo?

    Mal me confrontei com a prova de exame do 9º ano de Língua Portuguesa (da primeira fase), dei imediatamente a minha avaliação: tratava-se de um exemplar de resolução difícil, pela adoção de um texto poético fortemente metafórico, pela seleção de casos críticos (diria muito críticos) e pela complexidade de processamento exigida para os exemplos e exercícios do conhecimento explícito. A tudo isto acresce a proposta de produção escrita extensa (pela maturidade informacional que se requer na fundamentação e pela tipologia textual muito próxima de estratégias discursivas típicas de textos argumentativos).
    Presentemente a corrigir provas de Português de 12º ano, questiono-me mesmo quanto ao grau de complexidade de ambos os enunciados. Acho que preferia ter alunos de 9º ano a produzir um texto de opinião sobre o eixo temático sugerido no secundário (por ser mais acessível, claro e com progressão subtemática simples e linear, em termos de tratamento e desenvoltura informacional); daria dissertação mais consistente e problematizadora a produção apoiada na linha temática do terceiro ciclo (pela ambivalência proposta nas posições a defender e na síntese a construir).
    É já do conhecimento público que a Associação de Professores de Português (APP) se posicionou criticamente quanto à prova de exame em questão, mostrando perplexidade face às questões de gramática propostas (por o grau de exigência ser “mais elevado” do que o pedido no exame de 12.º ano); estranhando o excerto selecionado para a parte A do I grupo (por conter vários estrangeirismos); tomando o poema escolhido para a parte B - "Mar", de Miguel Torga - como exemplo textual com “um carácter metafórico elevado”; encarando a parte C como não apresentando informação suficiente sobre o episódio, a propósito do qual os alunos têm de produzir um texto restrito.
    Pela leitura feita da prova e pela tentativa de resolução que adiantei, não antecipo grande problema quanto à parte A, ainda que se requeira alguma concentração na leitura do texto e/ou no cumprimento de algumas instruções (como seja a de selecionar, contra as expectativas mais comuns, a única afirmação falsa).
     A parte B, de leitura e interpretação literária, apoia-se num poema de Miguel Torga, cuja complexidade se baseia essencialmente na associação de duas áreas conceptuais: a do mar e a do campo, transferindo de uma para outra propriedades similares, metaforicamente identificáveis. Até aqui nada de questionável, ainda que haja associações a convocar conhecimentos de mundo e/ou enciclopédicos que desconfio seriamente que alguns alunos tenham, para me situar numa representação média (não de excelência) dos estudantes do 3º Ciclo. Já a questão oito, na relação intertextual proposta com os dois versos finais de "Mar Português" (de Fernando Pessoa), satura definitivamente a complexidade exigida, a ponto de se induzir a associação 'céu' - sedução / atração / encantamento numa isotopia que considero algo inconsistente com o próprio poema pessoano (mais consentâneo com os tópicos da glorificação, do reconhecimento do esforço, da heroicização humana).
     Da C, refira-se a dificuldade de concentrar em 70-120 palavras, e num texto tripartidamente estruturado, sete tópicos relativos a uma experiência de leitura que se pretende transposta para uma exposição escrita, na qual se deverão abordar referências não só ao episódio contemplado mas também a conhecimentos intratextuais de Os Lusíadas (nomeadamente a Proposição, para não adiantar mesmo a caracterização do herói numa dimensão profética, não ajustada aos episódios programaticamente definidos para trabalhar no 9º ano).
        A nível do conhecimento gramatical, os exercícios 3, 4 e 6 apontam para resoluções de processamento complexo; de aspetos gramaticais de natureza assistemática e com elevado fator crítico para grande parte dos falantes da língua. Em 3, está em questão o reconhecimento do tempo e do modo verbal solicitado, além de uma evidente relação sintática com o processo de concordância a manter com os pronomes relativos 'quem' e 'que' (para não me referir ao domínio ortográfico implicado). Em 4, ativa-se um processo de pronominalização pouco habitual na utilização corrente da língua: mais associado a paradigmas sistemáticos de terminação verbal, o caso da prova envereda por conhecimentos ligados a uma sequencialização pronominal (a habitual referência à queda de '-r', '-s' ou '-z' finais nos verbos, quando acompanhados dos pronomes pessoais '-lo/-la/-los/-las' na forma de complemento direto, é preterida face ao que acontece com formas pronominais de complemento indireto, quando estas últimas terminam em'-s', e são seguidas dos alomorfes já mencionados). Em 6, pretende-se a transcrição de uma subordinada relativa (não restritiva) em posicionamento medial e integrada numa frase triplamente complexa (ainda mais intrincada no processamento, pela existência de dois 'que' completamente distintos). Tudo exemplos para evidenciar o necessário e sistemático trabalho do conhecimento explícito que interessa desenvolver, de modo a impedir  qualquer resposta que possa resultar de uma abordagem mais intuitiva e/ou induzida pelo contexto dos enunciados.
       Por fim, o grupo III, sob a etiqueta de 'texto de opinião', mais não é do que uma produção escrita cuja desenvoltura necessária ao escrevente passa por uma estruturação textual que requer gestão e sustentação informacional consistentes, competências lógicas de natureza argumentativa (com posicionamentos ambivalentes quanto ao tema) com estratégias discursivas muito diversificadas: entre sequências justificativas, concessivas, argumentativas e contra-argumentativas evidentes; com componentes típicas de raciocínio e progressão organizadas segundo uma tese, uma antítese e a construção de uma síntese final. Ou seja, um cenário interessante de construção de uma dissertação típica de 12º ano, não de produção textual para 9º ano (a não ser que se tenha como referência apenas turmas de qualidade).
       Como balanço final, registo o natural desequilíbrio na construção da prova, a complexidade assumida nas instruções e nas competências produtivas ativadas, bem como nos exemplos propostos para análise em termos gramaticais.

        Como popularmente se diz, por estas e por outras antevejo o regresso à onda dos maus resultados nas provas de Português / Língua Portuguesa. Nada que possa espantar e por motivo consabido (não por causa dos professores corretores nem necessariamente pelos alunos, com certeza). Mais um caso em que deve ser assumida a claríssima distinção entre o que é, por um lado, a avaliação contínua e a avaliação sumativa interna e, por outro, a avaliação sumativa externa (feita em gabinete, no abstrato e com base em referenciais que não se moldam aos contextos nem ao público a que são destinados). É esta a prova para a grande consideração que o Ministério da Educação revela por todos os alunos. A resposta à questão inicial é, portanto, a seguinte: que seja avaliado quem elaborou esta prova, não quem a resolveu ou a corrigiu.

16 comentários:

  1. Subscrevo inteiramente a análise crítica feita à prova do 9ºano.

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    1. Obrigado, Cristina.
      Para infelicidade dos alunos, que estão no primeiro plano das preocupações do nosso ministério.

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  2. Inês Carolina Pinho24 de junho de 2013 às 13:55

    Boa pergunta! Tens resposta?

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    1. Inês,
      Tenho a resposta que todas as escolas deverão dar quando forem pedidas reflexões no momento de discussão dos resultados e se verificar o desfasamento entre o que é a avaliação contínua (sumativa interna) e a externa; ou seja, quando as escolas "acordarem" com os produtos finais e solicitarem aos professores explicações para os processos e para o balanço do trabalho (de que foram responsáveis) e, depois, não se revirem no que lhes é externamente devolvido (como se a prova de exame tivesse a leitura linear e de reflexo desse trabalho). A minha resposta, correndo no presente o risco de alguma futurologia, terá a indicação, para memória futura, de quem foi o responsável institucional pelos maus resultados. Antes assim não seja!

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  3. Era bom que as/os iluminadas(os) das "cúpulas" lessem o teu parecer e refletissem nas tuas considerações (só lhes fazia bem).

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  4. Há vários anos, enquanto coordenador do Departamento de LR, assinei posição crítica e enviei ao GAVE por razões similares às desta análise. Mas, como seria de esperar, a resposta foi óbvia: estava tudo bem! A realidade é que estava errada.

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    1. Lembro-me bem!
      O ciclo do eterno retorno... "Somos invariavelmente românticos" e, pelos vistos, há quem não aprenda com os erros. Infelizmente, no que toca a exames, tem havido muitos sinais dessa incapacidade de ver o óbvio e da destreza em alguém se escudar com respostas óbvias.
      Felizmente, o tempo acaba por mostrar quem tem razão, para não ter de dizer que, de vez em quando, há vozes especialistas, especializadas e reconhecidamente autorizadas que acabam por mostrar onde estão as fragilidades.
      Nada de novo! Só descrédito, seja no básico seja no secundário. Uns anos melhores do que outros, é certo, mas sempre a pretensa ideia de que exames destes servem para avaliar o que os alunos sabem e/ou o que os professores trabalham.
      Já não tenho ilusões quanto a este capítulo e só espero que não me façam perder muito tempo a explicar resultados que se afastem da avaliação interna (e até estou à vontade, por não estar diretamente implicado na situação).

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  5. As provas de português do 9 e do 12 anos. Ou será ao contrário?!

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  6. Incrível essa história do texto escrito parecer mais difícil que o do exame do 12º ano! Como é possível?!
    Gostei de ler. Parabéns.

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    1. Citando palavras sobejamente conhecidas, prova-se que, com esta prova, os alunos não estão nada "reféns"... E não foi ninguém que nos contou a história. A própria prova contou-no-la (só para provar que esta pronominalização é do melhor que há na língua, ainda que não seja muito frequente).

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  7. Subscrevo integralmente as palavras, Vitor, acerca da prova de Língua Portuguesa de 9º ano: "com esta prova, os alunos não estão nada reféns... E não foi ninguém que nos contou a história. A própria prova contou-no-la". Será que trocaram os cabeçalhos e esta prova era para o 12º ano?????!!!!!!!

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    1. Ainda que assim fosse, não acho que os alunos de 12º fossem mais felizes com ela, particularmente pelos casos críticos nela contemplados.
      Já estou a ver, num próximo ano, os alunos a terem de conjugar o verbo ir na segunda pessoa do plural ,no presente do conjuntivo. Vai ser uma beleza ver nos critérios "...que vós vades...".
      Quo vadis?

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  8. O ministério que nos (des)governa passa-se ciclotimicamente

    do 8 ao 80. Os anteriores responsáveis, numa jogada de marquetingue educacional, havendo à cabeceira as «três sílabas de plástico, que era mais barato», do O' Neill, lavravam (o lavrar aqui fica bonito) testes do 9º ano baseados linguisticamente em programas do 6º, enquanto estes, mais papistas do que a exigência curricular, ajoelhando sob «a piolheira» de Dom Carlos, fazem os do 9º tomando como base estruturas argumentativas de programas do 12º ano. Gravidade... zero, se tudo é nivelado ou por cima ou por baixo, que é o modo mesmo de tudo se passar a tábua rasa.

    Mas vejam as coisas pelo lado positivo: estes, estando numa estação orbital, «so far away from home», sempre fornecem aos docentes mais desculpas,

    podendo, como os hebreus, lançar (des)programadamente o vaivém espacial com o bode expiatório no deserto.

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  9. No excesso ou no defeito, há "nesta Lusitânia" um Todo-o-mundo e Ninguém que nos põe gregos! Isto saiu muito vicentino, mas só prova a intemporalidade da obra na questão, com alguns diabos à mistura.

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