quinta-feira, 24 de abril de 2014

A cantiga que esteve para ser arma

      A cantiga é uma arma - assim se diz das que estão comprometidas com atos revolucionários.

    Em contexto de véspera do 25 de abril, muito se fala de "E depois do adeus" (cantada por Paulo de Carvalho), "Tourada" (por Fernando Tordo), "Grândola Vila Morena" (por Zeca Afonso). Muitas outras poderiam ser mencionadas, entre as que soaram ora nos dias anteriores ora nos que sucederam à revolução que fez vingar a democracia, pondo fim a uma ditadura de quase cinquenta anos.
     Documentado com os registos (de há quarenta anos) para memória futura, o radialista Manuel Tomás evocou-os hoje em entrevista televisiva (no Jornal 2). Tornados presente, neles se relembra como a canção "Grândola Vila Morena" esteve para ser "Venham mais cinco". A primeira, que foi a senha para a saída das forças armadas dos quartéis, só o foi pelo exercício de censura previsível sobre esta última.


         VENHAM MAIS CINCO

Venham mais cinco
Duma assentada
Que eu pago já
Do branco ou tinto
Se o velho estica
Eu fico por cá

Se tem má pinta
Dá-lhe um apito
E põe-no a andar
De espada à cinta
Já crê que é rei
D'àquém e D'àlém Mar

Não me obriguem
A vir para a rua
Gritar
Que é já tempo
D'embalar a trouxa
E zarpar

A gente ajuda
Havemos de ser mais
Eu bem sei
Mas há quem queira
Deitar abaixo
O que eu levantei

A bucha é dura
Mais dura é a razão
Que a sustem
Só nesta rusga
Não há lugar
Pr'ós filhos da mãe

Bem me diziam
Bem me avisavam
Como era a lei
Na minha terra
Quem trepa
No coqueiro
É o rei

     De um passado de que nos libertaram, seria bom que o presente não revivesse sinais dele, para bem de um futuro com esperança. 

      Começa na noite de hoje a manifestação popular em memória dos 40 anos do 25 de abril. A associação homónima, dos militares que lideraram o MFA (Movimento das Forças Armadas), fará amanhã uma cerimónia pública no histórico Largo do Carmo, homenageando Salgueiro Maia. Com eles é que o povo deveria estar, deixando orgulhosamente sós aqueles que vão mutilando o exemplo e o modelo de liberdade conquistados (pois, como diz a canção, "...há quem queira / Deitar abaixo / O que eu levantei") e que gostam da retórica que já nada significa para os governados.

2 comentários:

  1. Voltando aos textos 40 anos depois... A primeira senha, do José Niza, parece-me a esta distância um texto poético superior. (O Paulo de Carvalho não a defendeu mal, embora este seja um pouco como o Ozzy Osboune, quando canta as letras do Geezer Butler para os Black Sabbath: não as percebe muito bem... A interpretação que ele fez aos jornalistas da Nini do Assis Pacheco é inenarrável.) Agora, a Grândola contém é um sonho coletivo «de fraternidade», maior do que nós, como diria Eduardo Lourenço, que acabaria por ser o labor de muitos no pós 25 de Abril, via «socialismo», em sentido marxista do termo. E claro: tem a voz do Zeca, e a orquestração do Zé Mário, que introduziu nos arranjos a estrutura de uma moda alentejana, com «o coro, o alto e o coro de resposta, procedendo também à inversão de quadras e à introdução de um elemento novo: os passos dos alentejanos quando caminham abraçados», que são outros microtextos superiores.

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