segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Para cada passo à frente (também) há dois ou mais atrás

    Em pleno domingo, conforme o previsto lá para as terras da Senhora da Agonia, lá se cumpriu o evento de uma tourada anunciada.

    A polémica impôs-se ao longo da semana; houve a tourada em praça e arena montadas em terreno particular (por mais que este faça parte de uma terra que tinha decidido afastar-se dessas práticas) e a agitação entre os partidários da tauromaquia (por eles encarada como arte e cultura) mais os que nela veem uma afronta direta aos direitos dos animais (sem arte, sem cultura; só tortura).
      Lembro-me sempre destes parágrafos de Miguel Torga, no conto "Miura" de Bichos (1940), quando o tema se impõe:

      "Estava, pois, encurralado, impedido de dar um passo, à espera de que lhe chegasse a vez! Um ser livre e natural, um toiro nado e criado na lezíria alentejana, de gaiola como um passarinho, condenado a divertir a multidão!"
...

    "Com ar de quem joga a vida, o manequim de lantejoulas caminhava sempre (...).
       Infelizmente, o fantasma, que aparecia e desaparecia no mesmo instante, escondera-se covardemente de novo por detrás da mancha atordoadora.(...)
       Mais palmas ao dançarino. (...)
       O espectro doirado lá estava sempre."
...



      "Quando? Quando chegaria o fim de semelhante tormento?
  Subitamente, o adversário estendeu-lhe diante dos olhos congestionados o brilho frio dum estoque.
  Quê?! Pois poderia morrer ali, no próprio sítio da sua humilhação?! Os homens tinham dessas generosidades?!
       Calada, a lâmina oferecia-se inteira.
       Calmamente, num domínio perfeito de si, Miura fitou-a bem. Depois, numa arremetida que parecia ainda de luta e era de submissão, entregou o pescoço vencido ao alívio daquele gume."
   
    Pior do que isto só a RTP1, quando passa largas horas, em serviço de canal público, a dar conta de espetáculos de "cor, brilhantismo, emoção, lide, força e pega" para o comum dos telespectadores que não deixa de assistir a jogos sangrentos entre vários animais, palmas para estocadas, "urras e vivas" para heróis que recebem flores pelas lutas que desencadeiam contra toiros instigados aos ferros tão desnecessariamente.

     Definitivamente, há espetáculos que deviam estar limitados a quem os aprecia por qualquer razão.

6 comentários:

  1. Sim, também não entendo como as televisões dedicam tanto tempo a este espetáculo em que a humilhação do animal é notória. Enquanto o sangue escorre pelo corpo exausto do animal, o toureiro vai espetando novos ferros para obter cada vez mais aplausos.

    Há muitos anos, fui a uma tourada, mas, nos dias de hoje, não iria. Se calhar porque já fiz algumas leituras (como os contos de Miguel Torga) que ajudam a lidar com todos os seres vivos com mais dignidade.

    Muitas pessoas que vão às touradas também o terão feito mas ainda são bastante atraídas pelo sangue. Neste caso, de inocentes.

    Beijinho
    Dolores

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    1. Só fui uma vez a uma pseudo-tourada, quando na vida académica (no período da queima das fitas), fui à 'Guerreada'. Pelo menos, aí a diversão não implicava sangue. Mesmo assim, a coisa revelou-se-me desnecessária.
      Hemingway que me perdoe, mas, no que toca à "Fiesta", não me tem como adepto, admirador ou tolerante. Há outras cores que trazem maior festa à vida de qualquer ser vivo.
      Obrigado pelo teu comentário.
      Beijinho e continuação de "bouas vacanças"!

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  2. Nunca gostei de Box. Quando em pequena me cruzava com algumas imagens televisivas, não conseguia entender o propósito de tanta agressividade, de tanta violência... Claro que, à medida que fui crescendo, fui percebendo que há desportos especialmente vocacionados para a sublimação de instintos mais básicos e que acabam por prestar "serviço público"!

    Também é verdade que cedo me apercebi que, salvo raras exceções, aqueles dois indivíduos a "dançar" no ringue estavam lá porque queriam. Fizeram uma escolha. Livremente, os dois, em mesmo pé (será caso para dizer mão, punho) de igualdade.
    Não se passa o mesmo com a tourada. O desequilíbrio de forças é evidente, pois, mesmo que o touro vença em força e em instinto, perde em estratégia, dado as regras estarem "humanamente" viciadas.
    Não me parece ético um tal "desporto".

    Também é certo que cedo tive a sorte de contactar com os contos torguianos, que me sensibilizaram muito para este tema e tantos outros, lembrando que nem sempre a tradição cultural justifica estes fins "pseudo-desportivos". Se assim fosse, seríamos, de igual modo, obrigados a aceitar o apedrejamento de mulheres e não só, muito vulgarizado em determinadas culturas!
    Não sei se este apontamento é pertinente, mas é certo que o domingo teria sido mais feliz se não fosse a dita tourada. Pelo menos para os touros!

    bjinhos
    IA

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  3. Reli o meu 'post': quando tratei de 'box'? Será uma caixa qualquer ou estará ela a lembrar-se metaforicamente daquela 'iris box' que me dá acesso a canais televisivos?
    Ri-me depois. Ah! Ela quer falar de boxe!!
    Entre boxe e tourada a coisa não anda longe, é certo: Lembrando os renascentistas, os clássicos e os humanistas, diria que o boxe tem a vantagem de o livre arbítrio antropocêntrico dos boxeadores permitir sempre a escolha da 'diuinitas' ou da 'feritas'. Há quem queira ficar por esta última. Nisso, o touro não tem culpa nem escolha.
    Apesar de tudo, valeu a pena por ter permitido o reencontro com "Miura".
    Bj.

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  4. Valha-me Deus, ando a comer letras! É bem certo que eu não gosto do dito cujo, mas não havia necessidade de lhe adulterar o nome!
    Continuo a precisar de férias!...
    Fiquemo-nos pelo pensamento e pelo "Miura"!
    bjinhos e continuação de boas férias!
    IA

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    1. É a crise! É a crise!
      Até as letras são comidas! Eh eh eh!
      Bom resto de vacanças.
      Bj.

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