domingo, 3 de março de 2013

Desconstrução dos "western" e de uma visão da América

      Balanço para o visionamento de "Django Libertado" ("Django Unchained", no original).

    O filme de Quentin Tarantino, premiado com os óscares de melhor argumento adaptado e melhor ator secundário, é uma visão desconstruída dos westerns americanos, para não dizer mesmo de algumas referências culturais e históricas de um país que, no clamor da liberdade e da igualdade, conviveu com episódios pouco dignificantes para a causa.
    A intriga é localizada num período e numa coordenada geográfica marcantes da história dos Estados Unidos da América: dois anos antes da Guerra Civil e nos territórios do sul. Jamie Foxx é Django Freeman ('homem livre', no sobrenome), um escravo comprado por um exímio caçador de recompensas alemão (o "dentista" Schultz, interpretado por Christoph Waltz). Liberto da sua condição pela "qualidade" dos serviços prestados, Django mantém-se junto de Schultz, torna-se o seu "valet", perseguindo os criminosos mais procurados e ansiando resgatar a sua mulher Broomhilda, perdida muitos anos antes no comércio esclavagista do sul.
     Neste propósito, o encontro com Calvin Candie (um provocatório "doce", na construção do argumento, para uma personagem que Leonardo DiCaprio interpreta como mau da fita, proprietário da plantação "Candyland") e o seu escravo de confiança (Stephen, interpretado por Samuel L. Jackson) motivam o confronto de duas duplas, ambas compostas de negro-branco - Django-Schultz e Stephen-Candie -, mais o tratamento fílmico de temas como a escravatura, a vingança, a luta contra o racismo (seja entre brancos e negros seja no seio destes últimos), com os perseguidos a enfrentarem e a levarem a melhor face aos opressores.


      Impressivos e impressionantes são, por certo, o grafismo da película, por vezes a aproximar-se da banda desenhada, na cor e no registo de movimentos das personagens; os "banhos explosivos" de carne e sangue nas cenas de tiroteio, num tratamento de pormenor e de grandes planos que violentam o espectador; os registos orais de uma língua americana matizada da sonoridade sulista e  da apropriação negra simplificada; um fundo musical a auxiliar na desconstrução do que pudesse ser visto como um western dos anos cinquenta / sessenta do século passado.
      O toque humorístico de alguns diálogos e da representação sugestiva do "dentista" King Schultz compagina-se com as ações controversas de Django, a polémica visão do negro Stephen, que persegue os da sua cor e procura manter a sua posição, mais a dos seus mais próximos, junto de Candie, um egocêntrico que se compraz na luta de escravos; a cena dos irmãos Brittle e seus comparsas, a tocar o nonsense para uma irmandade a fazer lembrar uma «'ku klux klan' avant-la-lettre», mais preocupada com os sacos que enfiam na cabeça do que com o propósito dos seus atos.

      Não o vejo como filme que faça história; antes um exercício de desconstrução de algumas ideias feitas sobre a história do cinema, a escravatura, a visão sulista da América ou o jogo de interesses que persiste em qualquer fação ou causa que motive os homens. No final, a vitória do amor (Django-Broomhilda) suaviza alguma da violência, alimentando a lenda (também wagneriana) da libertação.
   

2 comentários:

  1. Django Unchained – o D inicial é surdo – é o último de Quentin Tarantino.
    Que dizer?
    Apreciei sobretudo a “subtileza violenta” (tocada de ironia) de grande parte das cenas. É, como tu dizes e bem, a desconstrução de um “mito”, neste caso, o dos velhos Western. Todo o flime de cowboys se constrói sobre a violência: os vilões são violentos; os heróis são violentos; só a violência destrói a violência; a do herói justifica-se porque repõe a justiça, aniquilando o caos e gerando a harmonia. Nem que para isso seja necessário destruir uma Candyland (outra subtileza irónica de Quentin), que de doce só tem o nome, porque nela se cometem as maiores atrocidades!
    Adorei o “dentista”!
    King Schultz é a figura que, a meu ver, melhor sintetiza a intenção de Tarantino. Violento por necessidade (faz parte do ofício de um caçador de prémios), subtil, delicado na interação social (parece que por natureza!). Ele alia o lado solar e o lunar, sem evidenciar qualquer conflito. É cordato nas relações sociais e comerciais, mesmo que o seu ponto final no diálogo se concretize num tiro certeiro!
    A sua faceta romântica manifesta-se no apoio a Django que busca a mulher amada, que, por acaso, até tem nome alemão, herdado de uma heroína de uma lenda bem conhecida de Schultz e a sua sensibilidade não resiste, quando “Für Elisa”, de Beethoven, é tocada à harpa na plantação de Calvin Candie! A evocação do esquartejamento gratuito , mas propositado, de D’Artagnan, um negro vítima dos cães de M. Candie (talvez a cena mais violenta do filme, que só não o é, porque nos é projetada em fragmentos) despoleta no alemão a indignação.
    A própria violência aqui é desconstruída. O banho de sangue é somente banho de sangue na tela branca, porque nós nunca o confundimos com o que poderia suceder na “vida real” (exatamente o oposto do que sucede no filme “A Paixão de Cristo”, de Mel Gibson, cuja violência incomoda mesmo! Enfim, o objetivo é outro).
    Isto é um filme! E o espectador tem consciência disso, porque essa é também intenção do realizador.
    Dizia eu, o doutor não resiste. E não sei o que mais o atormenta: se a ignorância de M. Candie, se a sua prepotência, se a própria incapacidade do Dr Schultz em controlar os seus impulsos/instintos, cedendo à voz sensata da razão e, enfim, apertar a mão do “monstro” que lha oferece, terminando o filme num final feliz, pacífico!
    Pobre Dr. Schultz! Diz ele que não resiste! E, como não resistiu, temos novo banho de sangue!...
    E toda esta violência é suportada, em contraste, por uma banda sonora demasiado “soft” (Outra subtileza do mestre Tarantino!) para argumento tão duro!
    Soft, ou não houvesse aqui dedinho de Ennio Morricone, esse grande compositor, responsável pelas bandas sonoras de tantos e tão grandes filmes, dos quais apenas evoco dois: “A Missão” e “Cinema Paraíso”.
    Só para ilustrar, estas são três das faixas da banda sonora de "Django" que têm o tal dedinho de Morricone. Uma beleza! Outra subtileza…

    http://www.youtube.com/watch?v=lP-wrI8G1bE
    http://www.youtube.com/watch?v=3aPtdNYoujk
    http://www.youtube.com/watch?v=b_7G2K6YWqc

    E tudo isto parece banda desenhada (como tu tão bem referes, Vítor), projetada num grande ecrã que nos hipnotiza, acompanhada pelo som também ele digital, que nos envolve!
    O impacto é desconcertante!
    Ah, Quentin, há tantos anos que te conheço e continuas a provocar-me e a fazer emergir o meu lado sombrio, sempre com um sorriso!
    “Django - Cora, say goodbye to Miss Laura.
    Cora - Goodbye, Miss Laura.
    Django - Goodbye, Miss Laura.”
    E Miss Laura leva um tiro que a projeta porta fora. Sai da vida. Sai de cena!
    Sai de cena, porque isto é um filme!
    Meu Deus, isto já vai tão longo! Desculpem-me, mas quando eu gosto, deixo-me ir!

    Quentin, estou ansiosa pela próxima provocação!
    Vítor, até ao próximo filme!
    Beijinho
    IA

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    1. Isto é o que se chama um tratado cinéfilo!
      Está visto que gostaste muito do filme!
      Eu mais ou menos...
      See you in the next movie!
      Beijo

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