sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Um dia depois... Dylan (um Nobel para o Bob)

    Hoje começo a escrever em inglês (em ‘American English’), da pergunta à resposta: Are these times a-changing?! The answer, my friend, is blowing in the wind / The answer is blowing in the wind!
Bob Dylan num concerto há quatro anos 
(© KI PRICE / REUTERS)
   Comoção geral. Assim parece pela frequência do tema de conversa: Bob Dylan é Nobel da Literatura.
  Para o choque de uns, a satisfação de outros, sem deixar de mencionar os que indiferentemente olham para o assunto como mais um, no meio de tantos outros provavelmente mais críticos ou interessantes (porque mais determinantes na vida de cada um).
    Interessa-me particularmente a reação que vai sendo revelada pelos que no campo literário (ora por serem conceituados escritores ora por estarem relacionados com o ensino da literatura) se vão pronunciando sobre a questão.
   Entre as argumentações produzidas (música, canções não são literatura; os autores de canções não são poetas; chegou a banalização, a relativização ou menorização da literatura face a outras artes; há tempos de mudança na produção literária ou de falta de critérios para o que é literatura), quase todas esbarram em duas evidências: uma, a de que muitos poemas acabaram por ser musicados, tornando-se o suporte textual de belíssimas letras de canção (com autores tão diversos como Camões, Florbela Espanca ou Pessoa, para me ficar por Portugal e apenas por alguns poetas mais canónicos); outra, a de que muitas letras de canção refletem autênticas pérolas poéticas (pelos mecanismos de construção sonora, sintática, semântica, estilística; pela densidade metafórica associada aos motivos / temas [re]criados; pelos efeitos pragmáticos, cultural e simbolicamente reconstruídos nos planos da intervenção, da formação, da sugestão, da criação artística, do gosto, da emoção e da ficção, numa memória tão ou mais afetivamente coletiva quanto as que são reproduzidas de cor [ou, como dizem os ingleses, “by heart”]).
   Pelo cérebro ou pelo coração, chega-se ao estético, por mais variáveis que os tempos, as contingências históricas e os gostos sejam. Neste sentido, muitas letras de canção revelam conteúdos, trabalho de linguagem e processos de (re)construção poéticos, a ecoar outros textos / outras artes / outras realizações linguísticas / outras dimensões culturais. Encarados como poetas ou não, nomes como Carlos Tê, Sérgio Godinho, Chico Buarque, Vinícius de Moraes, Djavan, Dorival Caymmi marcam muita da escrita musicada na língua portuguesa “d’aquém e d’além mar”, numa qualidade reconhecida como literária.
    Uma letra de canção pode constituir-se como um belo poema, se for literalmente rica, (re)ativa na leitura que dela se faça. Escrita para ser acompanhada da música, ela não fica, por norma, no papel. O poema até poderá não sair dele; contudo, na sua leitura original, não anda longe da voz que, mais ou menos silenciosa, é bem distinta da representada na leitura de uma notícia de jornal ou da linha de uma comum prosa, em ritmo diferente do verso. Isto para não falar de alguma prosa que, de tão poética, está por certo mais próxima da entoação do canto.
    Entre a poesia feita canção ou a canção redigida em jeito poético, a história literária confirma essa interação que música e literatura sempre tiveram desde as origens. A tradição oral dos bardos, a homérica ou, ainda, na história da literatura portuguesa, as compilações dos cancioneiros são o exemplo dessa convergência, registando cantigas (de amor, de amigo, de escárnio e de maldizer) que são poemas produzidos para serem cantados no contexto de animação das cortes medievais.
    Por tudo isto, Bob Dylan ser o Nobel da Literatura deste ano é um dado que não me choca nem polemizo, enquanto cantautor de relevo na tradição cultural da música norte-americana, escritor de prosa poética e autor de uma obra autobiográfica. É mais conhecido como músico; ainda assim, mais influente na sua escrita do que muitos outros nomes agraciados com o mesmo prémio.
     Por mais marginais que possam ser perspetivadas no seio da obra literária, as letras de canção não deixam de ser um género de escrita entre os muitos que a literatura tem. No seu sentido mais elevado (‘stricto sensu’) ou no âmbito da paraliteratura / literatura popular (também “folk”) / infraliteratura, há sentidos estéticos de variação e variedade muito difusos, por certo; mesmo assim, literatura (no seu ‘lato sensu’), próxima que seja dessa proveniência derivante de ‘littera’ (letra) e da arte da escrita.

 Vídeo e letra de "Blowin' in the Wind", de Bob Dylan

     Parafraseando “Blowin' in the wind” (nessa metáfora dos anos sessenta do século XX, tão marcada pelo registo de protesto e intervenção, na procura da justiça social por que se lutava nesses tempos de inconformismo), apetece perguntar ‘How many roads must a man walk down / Before you can call him a ‘nobel’?


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