sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Faria noventa anos...

       ... se não tivesse partido para uma eternidade que começou a conquistar.

       O tempo do nascimento surge nas palavras do próprio escritor, num pequeno livro intitulado As Pequenas Memórias, aquelas que, independentemente do tamanho, sublinham a modéstia e a naturalidade da vida:

    À aldeia chamam-lhe Azinhaga, está naquele lugar por assim dizer desde os alvores da nacionalidade (já tinha foral no século décimo terceiro), mas dessa estupenda veterania nada ficou, salvo o rio que lhe passa mesmo ao lado (imagino que desde a criação do mundo), e que, até onde alcançam as minhas poucas luzes, nunca mudou de rumo, embora das suas margens tenha saído um número infinito de vezes. A menos de um quilómetro das últimas casas, para o sul, o Almonda, que é esse o nome do rio da minha aldeia, encontra-se com o Tejo, ao qual (ou a quem, se a licença me é permitida), ajudava, em tempos idos, na medida dos seus limitados caudais, a alagar a lezíria quando as nuvens despejavam cá para baixo as chuvas torrenciais do Inverno e as barragens a montante, pletóricas, congestionadas, eram obrigadas a descarregar o excesso de água acumulada. A terra é plana, lisa como a palma da mão, sem acidentes orográficos dignos de tal nome, um ou outro dique que por ali se tivesse levantado mais servia para guiar a corrente aonde causasse menos dano do que para conter o ímpeto poderoso das cheias. Desde tão distantes épocas a gente nascida e vivida na minha aldeia aprendeu a negociar com os dois rios que acabaram por lhe configurar o carácter, o Almonda, que a seus pés desliza, o Tejo, lá mais adiante, meio oculto por trás da muralha de choupos, freixos e salgueiros que lhe vai acompanhando o curso, e um e outro, por boas ou más razões, omnipresentes na memória e nas falas das famílias. Foi nestes lugares que vim ao mundo, foi daqui, quando ainda não tinha dois anos, que meus pais, migrantes empurrados pela necessidade, me levaram para Lisboa, para outros modos de sentir, pensar e viver, como se nascer eu onde nasci tivesse sido consequência de um equívoco do acaso, de uma casual distracção do destino, que ainda estivesse nas suas mãos emendar. Não foi assim. Sem que ninguém de tal se tivesse apercebido, a criança já havia estendido gavinhas e raízes, a frágil semente que então eu era havia tido tempo de pisar o barro do chão com os seus minúsculos e mal seguros pés, para receber dele, indelevelmente, a marca original da terra, esse fundo movediço do imenso oceano do ar, esse lodo ora seco, ora húmido, composto de restos vegetais e animais, de detritos de tudo e de todos, de rochas moídas, pulverizadas, de múltiplas e caleidoscópicas substâncias que passaram pela vida e à vida retornaram, tal como vêm retornando os sóis e as luas, as cheias e as secas, os frios e os calores, os ventos e as calmas, as dores e as alegrias, os seres e o nada. Só eu sabia, sem consciência de que o sabia, que nos ilegíveis fólios do destino e nos cegos meandros do acaso havia sido escrito que ainda teria de voltar à Azinhaga para acabar de nascer. Durante toda a infância, e também os primeiros anos da adolescência, essa pobre e rústica aldeia, com a sua fronteira rumorosa de água e de verdes, com as suas casas baixas rodeadas pelo cinzento prateado dos olivais, umas vezes requeimada pelos ardores do Verão, outras vezes transida pelas geadas assassinas do Inverno ou afogada pelas enchentes que lhe entravam pela porta dentro, foi o berço onde se completou a minha gestação, a bolsa onde o pequeno marsupial se recolheu para fazer da sua pessoa, em bem e talvez em mal, o que só por ela própria, calada, secreta, solitária, poderia ter sido feito.

    Assim escreveu, com a poesia vivida e no tempo da prosa, o Nobel  da Literatura português.
    Sem data. O espaço e a pessoa. Entre ambos, os rios, num fluir que os transformaria para todo sempre: o espaço, ganhando da pessoa uma glória lavada, limpa pela clareza e pelo espírito de humanidade; a pessoa, recebendo o barro do chão levantado à condição de grandeza criativa. 

      ... se estivesse limitado ao tempo que as memórias conseguem armazenar (Blimunda diria que morreu aquele que foi para nascer aquele que é).


2 comentários:

  1. Vítor,

    Há um poema de Saramago, muito próximo de "As Pequenas Memórias". Se me permites, deixo-o aqui!
    beijinho e bom fim de semana!
    IA


    Retrato do poeta quando jovem


    Há na memória um rio onde navegam
    Os barcos da infância, em arcadas
    De ramos inquietos que despregam
    Sobre as águas as folhas recurvadas.

    Há um bater de remos compassado
    No silêncio da lisa madrugada,
    Ondas brancas se afastam para o lado
    Com o rumor da seda amarrotada.

    Há um nascer do sol no sítio exacto,
    À hora que mais conta duma vida,
    Um acordar dos olhos e do tacto,
    Um ansiar de sede inextinguida.

    Há um retrato de água e de quebranto
    Que do fundo rompeu desta memória,
    E tudo quanto é rio abre no canto
    Que conta do retrato a velha história.


    (In OS POEMAS POSSÍVEIS, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1981. 3ª edição)

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    1. Cá está e cá ficará, pela beleza que tem. Prova de que o prosador tinha muito de poético, inclusive na formatação mais versificatória.
      De novo o rio, a memória, o tempo em destempo sem deixar de ser narrativo.
      Obrigado pela partilha.
      Bom fim de semana.
      Bj

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