sábado, 16 de fevereiro de 2013

Entre 'pois' e 'porque', mais alguns outros articuladores / conectores

    Pelo que se vai lendo, há mais zonas de aproximação do que distanciamento, para além de parecer que não há grande diferença entre 'O resultado foi bom, pois estudaste' e 'O resultado foi bom, porque estudaste'.

     Se a permuta de um por outro, nos discursos do dia a dia, parece válida, as gramáticas escolares pautam diferenças que muitos processos de regulação das práticas (como os exames) fazem persistir, para não dizer que alguns testes de verificação permitem diferenciar.

     Q: Pergunto-te se uma oração iniciada pela locução "visto que" poderá ser classificada como coordenada explicativa. Tenho lido algumas coisas sobre as diferenças entre as coordenadas explicativas e as subordinadas causais, diferenças essas ao nível semântico e sintático. Porém, em tudo o que tenho lido só me aparecem as conjunções "pois" e "porque", quando têm realização ora explicativa ora causal. 

      R: A questão não é completamente pacífica, alguns estudiosos veem mais aproximações do que diferenças no âmbito do significado (semântica). Na base da construção de inferências e da coerência textual, faz algum sentido falar em marcadores ou conectores discursivos de causalidade, sendo que, sob tal designação, se incluem diferentes formas de expressão e diferentes valores associados (relação causa-efeito, motivo - consequente, valor causa-conclusão, valor explicativo).
       Contudo, sublinho a necessidade de haver alguma contextualização do trabalho que se pretende fazer (no domínio semântico, sintático ou outro), nomeadamente aquele que diz respeito ao ensino de alunos de ensino não superior, com exploração desejável de regularidades nos mecanismos da língua, bem como a projeção de domínios gramaticais para a configuração dos textos (marcadores e conectores discursivos não deixam de pertencer a categorias gramaticais heterogéneas, com a mesma distribuição das classes de palavras).
      Começo por me referir às conjunções 'pois' e 'porque', associadas, típica e respetivamente, a relações de explicação e causa. Tradicionalmente, as gramáticas situam-nas, numa perspetiva sintática, no grupo das coordenativas explicativas (a primeira) e no das subordinativas adverbiais causais (a segunda).
     Outras perspetivas de estudo, como as da análise do discurso e da pragmática (na sua focalização argumentativa da linguagem), têm revelado outras conclusões, menos redutoras da que é proposta pela sintaxe. Num dos seus estudos, Carlos Vogt («Indicações para uma análise semântico-argumentativa das conjunções 'porque', 'pois' e 'já que'» in Linguagem, pragmática e ideologia, São Paulo, Hucitec, 1989) sublinha as especificidades de 'pois' na relação entre duas orações: 
        a) não é afetada pela negação;
        b) não cumpre o teste da interrogação; 
      c) não se presta a encadeamento, isto é, a tornar-se em bloco como subordinada de uma outra oração (subordinante);
       d) não se constitui como escopo de um quantificador, sem que tal acarrete uma rutura semântica.
    Considerando um enunciado como "Os trabalhadores pararam a produção, pois são cinco horas" e uma vez aplicados os testes, obtém-se:

        a) Os trabalhadores não pararam a produção, pois são cinco horas
        (só a primeira oração é afetada pela negação; a segunda orienta-se argumentativamente para a ideia de que não é expectável a paragem de produção às cinco horas, o que não sucede com o enunciado original)
        b) * Os trabalhadores pararam a produção, pois são cinco horas? 
          (só a primeira oração admite ser interrogada, não o bloco completo)
        c) Penso que os trabalhadores pararam a produção, pois são cinco horas
        (não é o bloco que é encadeado na subordinante 'Penso que', mas só a primeira oração do enunciado original, com a segunda a explicar não o facto de os trabalhadores terem parado a produção, mas a crença / o pensamento produzidos com a subordinante)
        d) Poucos trabalhadores pararam a produção, pois são cinco horas
          (o quantificador só afeta a primeira oração não o bloco)

    Assim sendo, genericamente as transformações não afetam o conjunto do bloco 'X, pois Y'; quebram a aparente unidade do enunciado. 'Pois' assume-se como um articulador / conector que introduz uma explicação proferida pelo enunciador (ato de fala) para uma asserção anterior (evidenciada na primeira oração), inviabilizando sintaticamente a hipótese de inversão dos atos com o articulador à entrada (é agramatical a construção *'Pois são cinco horas, os trabalhadores pararam a produção). Reside aqui a natureza sintática da coordenação.
    Com a conjunção 'porque' (e respetivos sinónimos locucionais diretos: 'já que', 'dado que', 'visto que', 'uma vez que') a situação revela-se distinta, como se pode verificar pela aplicação dos mesmos testes ao enunciado 'Os trabalhadores pararam a produção porque são cinco horas'. Resultam desse trabalho de análise leituras distintas dos dados anteriores, podendo mesmo gerar-se duas linhas interpretativas (uma para toda a integridade do enunciado; outra para só uma das orações):

     a) Os trabalhadores não pararam a produção porque são cinco horas
     (todo o bloco pode ser afetado pela negação: não é por ser cinco horas que os trabalhadores pararam a produção, mas há outra razão / apenas a primeira oração é negada, separando-se a segunda da primeira por uma vírgula e entendendo-se as cinco horas como horário incompatível para a paragem de produção)
     b) Os trabalhadores pararam a produção porque são cinco horas? 
      (todo o bloco está implicado na interrogação, perguntando-se se a causa da paragem da produção é o horário - podendo ser uma outra / a primeira oração é objecto de questionação, a segunda também, com o horário a não parecer razão suficiente para a paragem de produção)
     c) Penso que os trabalhadores pararam a produção porque são cinco horas
     (todo o bloco é encadeado na subordinante: pensa-se que o motivo para os trabalhadores pararem a produção é o horário / só a primeira oração é encadeada na subordinada, a segunda surge separada por vírgula e apresenta o motivo não para o facto de os trabalhadores terem parado a produção, mas para a crença / o pensamento produzidos)
     d) Poucos trabalhadores pararam a produção porque são cinco horas
      (o quantificador afeta todo o bloco: poucos trabalhadores viram o horário como razão para parar a produção, tendo parado por outro motivo / o quantificador só afeta a primeira oração: poucos trabalhadores pararam a produção e tal aconteceu porque são apenas cinco horas)

   A duplicidade de leituras associada a 'porque' passa pela possibilidade de o foco incidir ora no bloco integral 'X porque Y' (tomando-o como um só ato de fala) ora apenas em 'porque Y' (encarando-o com um ato de fala distinto do que o antecede: X). Ao contrário de 'pois', 'porque' é articulador / conector que introduz uma causa, um motivo, uma razão e viabiliza sintaticamente a hipótese de inversão dos atos, com o articulador à entrada (é gramatical a construção 'Porque são cinco horas, os trabalhadores pararam a produção). Reside aqui a natureza sintática da subordinação.
    A gramática tradicional equaciona a questão explicativa / causal em termos de processo de construção de frases (complexas), respetivamente, para a coordenação e a subordinação (na primeira uma oração não funciona como termo integrante da outra; na subordinação, uma oração é função sintática da outra). Os atos de fala exploram também aspectos distintivos das conjunções / locuções, inclusivamente efeitos argumentativos nem sempre contemplados nas gramáticas. O aspeto da inversão creio que pode ser o mais imediatamente manipulável e oficinal para que os alunos diferenciem o explicativo 'pois' do causal 'porque' (com os devidos sinónimos deste último). Outros valores devem ser problematizados em níveis de ensino superiores.

       Eis um contributo para marcar como diferente o que muitos dizem ser igual. Estar próximo não é estar no mesmo lugar ou em vez de algo. Se explicar pode implicar apontar a razão, o motivo, a causa, também pode acontecer que dê lugar a outros processos lógicos e discursivos. Pode explicar-se descrevendo, exemplificando, comparando ou construindo analogias.

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