Um espectáculo... (no duplo sentido).
Numa encenação de Nuno Carinhas e com o texto de Sófocles traduzido por Marta Várzeas, expõe-se ao público uma estrutura cénica de anfiteatro, sugestivamente fundacional da tradição grega; o visionamento de um cerimonial performativo de natureza cívica; a força de uma representação que se faz dos conflitos de critérios, do entendimento e do significado a dar a certas palavras; da abordagem trágica não tanto de situações (como em Ésquilo), mas, mais, de caracteres.
A força de um dever apoiado no sentimento e no laço familiar debate-se com as ordenações estabelecidas por um poder que, por mais que seja inicialmente legitimado e reconhecido, escapa ao entendimento moral. É o que sucede quando não se admite soluções e apenas se dá ordens (tal como Creonte); e assim se chega a ameaçar o Cosmos, lançando-se o mundo no caos.
A atitude de oposição da jovem Antígona, figura que o leitor / espectador mais guarda na memória (não obstante a reduzida presença no texto / na representação), culmina num diálogo intemporal, feito da legitimação da lei dos deuses em detrimento da lei humana. Torna-se admissível a questão de quem escreve as leis não escritas dos deuses. Nesta linha de reflexão, cresce o confronto de dois poderes, ao qual se junta outro: é posto em causa um acto humano de Creonte, enquanto porta-voz das razões de Estado, para se impor aquele assente numa plataforma moral, familiar - eticamente sustentado a ponto de ferir de morte alguns sinais de um mundo despótico.
No final, chegada a “anagnorisis” (reconhecimento), a força do tempo impera: é tarde. A “hamartia” (erro trágico) faz com que Antígona, num bailado de dor que a conduz a uma caverna escavada na rocha, acabe por pôr termo à vida. Também Hémon (o noivo de Antígona, o filho de Creonte) teve na espada com que se trespassou o acto sofrido do amante que - apesar de saber usar da palavra, do discurso apoiado num raciocínio aprovado - deixou na palavra dita toda a força que não alimentou o feito desejado ou a solução creditada.
Da quase ausência de Antígona (no texto ou no palco) se faz a presença forte de uma consciência liberta, mas ameaçada na condição e na existência; do tempo representado, já passado, se revê o presente com muitos poderes que, no jogo da pólis e do ethos, se degladiam.
“Não há ventura sem desdita” é máxima que Sófocles parece querer situar ao nível das forças do destino. Ao ouvir que “Há mortos de que os vivos são responsáveis”, impõe-se a acção do Homem, a origem de algum do sentido trágico e desventuroso traçado pelo próprio; mas também a fonte para poder salvar a vida.
Pela mensagem do texto dramático, pela qualidade arrebatadora da representação e encenação, pela(s) companhia(s) do momento, esta foi uma noite que deu em muita luz.
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