segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Já não me sinto tão sozinho!

    Ontem, uma amiga fez-me chegar um texto que gostei de ler. Citando, "comme il faut", a fonte (para quem [re]conhece um argumento de autoridade), partilho-o pelo saber que evidencia.

     Não posso deixar de o transcrever - admitindo que se trate do texto original, pelo confronto feito com outros três pontos de referência com a mesma orientação / identificação argumentativa -, por se entrecruzar com outros registos / apontamentos que já figuram neste espaço.

Comentário ao Grupo I da Prova de Exame Português do 12º ano, 
Fase 1 - 2011,
 por Teresa Rita Lopes, especialista da obra de Fernando Pessoa

   «Pediram-me a minha opinião sobre a “Prova Escrita de Português”, a que os alunos do 12º ano de escolaridade foram recentemente submetidos. Hesitei em pronunciar-me publicamente mas a minha antiga costela de militante (sem Partido), obrigou-me a aceitar fazê-lo, perante a constatação de que os resultados obtidos foram catastróficos: alunos que tinham tido altas classificações durante o ano lectivo saíram do exame com negativa. O pior é que isso, para muitos deles, representa a impossibilidade de se habilitarem a entrar nos cursos para que se sentem vocacionados por ficarem, com essa nota a Português, com uma classificação inferior à requerida para o seu acesso. E isso é grave, porque está em jogo o futuro desses jovens. Por isso, arregacei as mangas e pus-me a analisar (como aliás sempre gostei de fazer com os meus alunos e espero que os professores o façam com os seus) o poema de Álvaro de Campos que lhes coube em sorte: um do penúltimo ano de vida, de 16.6.1934, que começa “Na casa defronte de mim e dos meus sonhos”.
    A escolha do poema foi infeliz: o seu bom entendimento implicaria um conhecimento aprofundado da poesia de Campos que não pode ser exigido a alunos deste nível. Além do mais, as perguntas não estão bem formuladas nem são as que conduziriam ao entendimento do poema que se quer averiguar se o aluno teve (e que duvido os próprios examinadores tenham tido, perante tais perguntas e os “cenários de resposta” que apresentaram).
    A primeira pergunta, sobre “as duas sensações representadas nas quatro primeiras estrofes”, distrai da verdadeira compreensão do poema, que é, do princípio ao fim, a taquigrafia de um monólogo a que Campos se entrega, como em muitos dos seus outros poemas. Através dele, vamos assistindo à marcha do pensamento do Poeta e ao desfilar dos sentimentos que desencadeia. Porque é de sentir sentimentos e não “sensações” que o poema essencialmente trata. Quer o examinador, nesta primeira pergunta, que o aluno fale “das sensações visuais e auditivas” presentes nas quatro primeiras estrofes do poema. É ter em pouca conta a sua inteligência querer apenas fazê-lo provar que o Poeta não é cego nem surdo, porque diz “que viu mas não viu” e que ouve vozes no interior da casa (como se explicita no “cenário da resposta”). Nada nos diz que o Poeta não está à sua secretária, a evocar apenas o que habitualmente vê e ouve: não assistimos a uma verdadeira reacção a um estímulo sensorial. Das pessoas que moram em frente diz, com um verbo no passado (portanto, evocando uma visão, não vendo): “vi mas não vi”. Também as ouve, aparentemente da mesma forma: das “vozes que sobem do interior doméstico” diz que “cantam sempre, sem dúvida”, o que mostra que não as está a ouvir mas a imaginar (logo, é imaginação, não sensação). O verso seguinte “Sim, devem cantar”, reforça a suposição. Seria preciso, ao formular as perguntas, respeitar o facto indesmentível do poema ser um monólogo que o Poeta murmura por escrito enquanto contempla, talvez só com a imaginação, “os outros”– esses vizinhos que vê sem ver porque lhe são inteiramente estranhos.
    O que seria preciso entender – e sobre isso sim, questionar o aluno – é que o Poeta olha (ou se imagina olhando) para a casa fronteira à sua como um menino pobre para uma montra de brinquedos: tudo o que aí vê e ouve é uma manifestação dessa “felicidade” que ele não sabe o que é mas cobiça: crianças, flores, cantos, festas. “Que felicidade não ser eu!” Falando várias vezes o Poeta de “felicidade”, seria pertinente questionar o examinando sobre o sentido desse sentimento (bem mais importante do que as sensações ver e ouvir que querem que ele referencie).
   Pedir para caracterizar o tempo da infância tal como é apresentado na terceira estrofe do poema, e esperar, como se vê no “cenário da resposta”, que o aluno apenas fale “do ambiente de despreocupação feliz, sugerido pelo acto de brincar”é de uma profunda superficialidade …
     Quanto à pergunta seguinte sobre “a relação que o sujeito poético estabelece com os outros” percebe-se, pelo “cenário da resposta”, que o examinador quer que o aluno fale apenas da “diferença”que o Poeta sente que o separa dos “outros”, porque «os “outros” são felizes». O facto do Poeta exclamar “São felizes porque não são eu” mostra que essa “felicidade” é, não um verdadeiro sentimento que os outros experimentem mas o sentimento que o Poeta tem de que é uma sorte ser outra pessoa qualquer, que o verso seguinte “Que grande felicidade não ser eu!” exprime plenamente.
    Seria interessante, isso sim, fazer o aluno falar sobre o papel e o significado das interrogações súbitas, nomeadamente “Quais outros?” porque são elas que traduzem e nos fazem assistir ao evoluir do pensamento do Poeta, que se põe em causa a si próprio, isto é, ao que está pensando no decurso do seu monólogo interior. Assistimos, assim, à transição, desencadeada por essas perguntas, de um “eu” para um “nós”: do sentimento inicial de solidão total, de ser apenas um “eu”, uma ilha de solidão, ao de pertencer a um “nós” – a humanidade: “Quem sente somos nós, /Sim, todos nós” – embora cada um a sós consigo. Cada um sente e sofre sozinho mas isso não o impede de fazer parte de um “nós”. Seria demais esperar que o aluno soubesse dizer que é esta uma característica da atitude de Campos: o sentimento de que é uma ilha de solidão, quando diz “eu”, mas de que pertence a um arquipélago, quando pronuncia “nós”. Mas não seria excessivo esperá-lo do examinador.
    A última questão presta-se a muitas respostas, não apenas à que é indicada no “cenário de resposta”, que espera referências à “dor” e ao “vazio” “expressos na última estrofe, particularmente no verso «Um nada que dói…»”. Os examinadores não perceberam a sua subtilíssima ironia: depois de afirmar que “já” não está sentindo nada, o Poeta corrige-se, com um sorriso de vaga ironia triste: “um nada que dói”. Se o aluno conhecesse razoavelmente Campos – o que seria demais exigir-lhe mas não ao examinador– referiria que esse incómodo, essa vaga dor é o que, noutro poema, o Poeta chama “o espinho essencial de ser consciente”.
     Só uma nota: não estou a querer pôr ninguém em causa: não sei nem quero saber quem elaborou esta “prova”. Estou apenas a obedecer ao meu velho tropismo de querer ser útil. (Que, diga-se de passagem, muitos dissabores me tem trazido ao longo da minha já longa vida.)
Teresa Rita Lopes

   A sensação (ou será que é sentimento?) de estar sozinho é triste. Talvez não o tenha sido tanto, por se ter conseguido trabalhar com "alguns amigos críticos" que, no processo de correcção, partilhavam as mesmas angústias. Começa a ser menos, pelo que foi possível hoje descobrir e pelo que se pode aqui ler.
   No caso do texto citado, quem com tanta autoridade reconhecida assim se pronuncia pode não fazer coro; faz, por certo, aliviar-me (nos) a alma.

     Só espero que, dentro de pouco tempo, não haja necessidade de voltar a este sentido de registos, face a resultados que estão a revelar-se indesejados e indesejáveis, com uma visão redutora das causas que lhes possam estar associadas.
(com agradecimento à Zazá)

6 comentários:

  1. A solidão dos professores é também a solidão de alguns alunos, mas o texto fala por si. Dizer melhor quase que seria impossível. Espera-se que nunca mais seja necessário produzir outro texto para condições semelhantes.

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  2. Percebo-te, mas atenção que eu falei em estar sozinho, não em solidão. A solidão é um momento de reflexão para a constatação da existência, uma forma especial de dialogarmos (ou melhor, monologarmos) connosco.
    Estar sozinho é mais triste: é estar e sentirmo-nos únicos, porque abandonados mesmo.
    Eu tive, tenho e quero ter muitos momentos de solidão, que até podem ser bastante criativos.
    Já não quero nem gosto de me sentir sozinho, especialmente quando vejo que não há razão para assim estar.

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  3. Então para que não te sintas tão só, porque sós estamos todos, aqui vai, amigo, o homem que deu origem a tanto estar só.

    "Quando estou só reconheço,
    Se por momentos me esqueço,
    Que existo entre outros que são
    Como eu sós, salvo que estão
    Alheados desde o começo.

    E se sinto quanto estou
    Verdadeiramente só,
    Sinto-me livre mas triste.
    Vou livre para onde vou,
    Mas onde vou nada existe.

    Creio contudo que a vida
    Devidamente entendida
    É toda assim, toda assim.
    Por isso passo por mim
    Como por coisa esquecida."

    9-8-1931

    Novas Poesias Inéditas. Fernando Pessoa. (Direcção, recolha e notas de Maria do Rosário Marques Sabino e Adelaide Maria Monteiro Sereno.) Lisboa: Ática, 1973 (4ª ed. 1993).

    Mudando de assunto.

    Espero que que essas férias lá para costas africanas tenham corrido bem e que venhas preparado para o próximo ano letivo e não só!

    Também para outros momentos de encontro com os amigos, onde todos os nossos pequenos sentires sós se desvaneçam numa boa gargalhada, solta à mesa, claro, que lá nisso (e noutras coisitas)somos portugueses de gema!

    bjinhos
    Za

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  4. Olá, Zazá.

    As férias foram ótimas, mas, como sempre, passaram rápido e souberam a pouco. Não venho preparado para o próximo ano letivo e, para ser sincero, nem me quero preparar. Vou ao sabor do momento, sem me envolver demasiado. Aliás, a intenção é nem me envolver em nada; fazer apenas o que tiver de ser e o que EU quiser fazer. O que não quiser não faço.
    A vida é pequena de mais para viver só crises, problemas, questiúnculas, coisas pequenas e sem interesse nenhum. Há muito ruído para limpar do caminho e demasiada escola.
    Por ora, aproveitemos o que ainda resta de férias, sempre muito melhor do que a segunda semana de Setembro prenuncia.
    Beijinhos e um passa-bem aos 'piquenos'.
    VO

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  5. Olá, Vítor.

    Ao longo do(s) dia(s) há momentos que superam outros, o que vai harmonizando a vida. Descansa mais um pouco e carpe diem.
    Beijinhos e abraços para vocês

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  6. Bem verdade, Dolores.
    Mas acredita que, neste momento, eu harmonizava bem sem a escola... Oh se harmonizava!
    O que vale é que estão lá alguns amigos e uns alunos impecáveis em termos humanos.
    Deixa-me lá ir ao 'Carpe Diem' (se Horácio soubesse... tinha aproveitado mais!), que tanto dá para 'aproveitar o dia' como para 'evitar gastar o tempo com coisas inúteis'. Seja uma seja outra, assim seja!
    Beijinhos.
    VO

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