sábado, 6 de junho de 2009

"Eu não temo nem devo"

    Esta é frase histórica para um rei absoluto, a quem o Memorial do Convento retrata como alguém que, sem ironias, muito devia e muito temia.

     Entre a visão histórica (já por si uma construção narrativa)...


... e uma outra ficção narrativa construída, fica a afirmação real (porque dita e porque de uma figura da realeza) pautada pelo retrato de um monarca

a) que se cruza com o ridículo, o sarcasmo e o registo de um narrador que o vê como uma criança em ponto grande:

"Quase tão grande como Deus é a basílica de S. Pedro de Roma que el-rei está a levantar. É uma construção sem caboucos nem alicerces, assenta em tampo de mesa que não precisaria ser tão sólido para a carga que suporta, miniatura de basílica dispersa em pedaços de encaixar, segundo o antigo sistema de macho e fêmea, que, à mão reverente, vão sendo colhidos pelos quatro camaristas de serviço. (...) Agora só falta colocar a cúpula de Miguel Ângelo, aquele arrebatamento de pedra aqui em fingimento, que, por suas excessivas dimensões, está guardada em arca à parte, e sendo esse o remate da construção lhe será dado diferente aparato, que é o de ajudarem todos ao rei, e com um ruído retumbante ajustam-se os ditos machos e fêmeas nos mútuos encaixes, e a obra fica pronta." (I, págs. 12-13 da 43ª edição)

b) dominado pela mundanidade, pela profanação, pela fragilidade ironicamente denunciada:

"É contudo um tempo de contrariedades. Agora sairão a freiras de Santa Mónica em extrema indignação, insubordinando-se contra as ordens de el-rei de que só pudessem falar nos conventos a seus pais, filhos, irmãos e parentes até segundo grau, com o que pretende sua majestade pôr cobro ao escândalo de que são causa os freiráticos, nobres e não nobres, que frequentam as esposas do Senhor e as deixam grávidas no tempo de uma ave-maria, que o faça D. João V, só lhe fica bem, mas não um joão-qualquer ou um josé-ninguém." (IX, 97, idem) "El-rei anda muito achacado, sofre de flatos súbitos, debilidade que já sabemos antiga, mas agora agravada, duram-lhe os desmaios mais do que um vulgar fanico, aí está uma excelente lição de humildade (...) Enfim, el-rei abriu os olhos, escapou, não foi desta, mas fica cm as pernas frouxas, as mãos trémulas, o rosto pálido, nem parece aquele galante homem que derruba freiras com um gesto, e quem diz freiras diz as que o não são (...) se agora o vissem as amantes reclusas e libertas não reconheceriam neste murcho e apagado homenzinho o real e infatigável cobridor." (X, 116-117, idem)

c) feito da megalomania traduzida em egocentrismo, magnanimidade simulada, religiosidade demasiado profana:

"Medita D. João V no que fará a tão grandes somas de dinheiro, a tão extrema riqueza, medita hoje e ontem meditou, e sempre conclui que a alma há-de ser a primeira consideração, por todos os meios devemos preservá-la, sobretudo quando a podem consolar também os confortos da terra e do corpo. Vá pois ao frade e à freira o necessário, vá também o supérfluo, porque o frade me põe em primeiro lugar nas suas orações, porque a freira me aconchega a dobra do lençol e outras partes, e a Roma, se com bom dinheiro lhe pagámos para ter o Santo Ofício, vá mais quanto ela pedir por menos cruentas benfeitorias..." (XVIII, 234-235, idem)

d) dimensionado à escala de uma visão da História assumida como ludíbrio, simulação, anedota, paródia, anacronismo visando a desvirtualização do universo do poder:

"... ficou o rei, que está em sua casa, agora esperando que regresse o almoxarife que foi pelos livros da escrituração, e quando ele volta pergunta-lhe, depois de colocados sobre a mesa os enormes in-fólios, Então diz-me lá como estamos de deve e haver. O guarda-livros leva a mão ao queixo parecendo que vai entrar em meditação profunda, abre um dos livros como para citar uma decisiva verba, mas emenda ambos os movimentos e contenta-se com dizer, Saiba vossa majestade que, haver, havemos cada vez menos, e dever, devemos cada vez mais, Já o mês passado me disseste o mesmo, E também o outro mês, e o ano que lá vai, por este andar ainda acabamos por ver o fundo ao saco, majestade, Está longe daqui o fundo dos nossos sacos, um no Brasil, outro na Índia, quando se esgotarem vamos sabê-lo com tão grande atraso que podermos então dizer, afinal estávamos pobres e não sabíamos, Se vossa majestade me perdoa o atrevimento, eu ousaria dizer que estamos pobres e sabemos, Mas graças sejam dadas a Deus, o dinheiro não tem faltado, Pois não, e a minha experiência contabilística lembra-me todos os dias que o pior pobre é aquele a quem o dinheiro não falta, isso se passa em Portugal, que é um saco sem fundo, entra-lhe o dinheiro pela boca e sai-lhe pelo cu, com perdão de vossa majestade, Ah, ah, ah, riu o rei, essa tem muita graça, sim senhor, queres tu dizer na tua que a merda é dinheiro, Não, majestade, é o dinheiro que é merda, e eu estou com muito boa posição para o saber, de cócoras, que é como sempre deve estar quem faz as contas do dinheiro dos outros." (XXI, 293-294, idem)

e) caracterizado pelo poder absoluto e pela vaidade, cruzados com o caricato:

"... D. João V teve um pensamento negro, viu-se-lhe na cara, e faz rápidas contas, mentais, com a ajuda dos dedos, Em mil setecentos e quarenta terei cinquenta e um anos, e acrescentou lugubremente, Se ainda for vivo. (...) Todos esperavam. E então D. João V disse, A sagração da basílica de Mafra será feita no dia 22 de Outubro de mil setecentos e trinta, tanto faz que o tempo sobre como falte, venha sol ou venha chuva, caia a neve ou sopre o vento, nem que se alague o mundo ou lhe dê o tranglomango. (...) Foram as ordens, vieram os homens" (idem, 301-302, idem)

    À mentalidade da época setecentista, D. João V (o Magnânimo) deixou a sua marca na terra: no temor sério do que seria o esquecimento provocado pela morte, cumpre os prazeres do corpo sem renegar, à sua peculiar maneira de representante divino na terra, os da alma.

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