quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Chegou a vez do (des)acordo

     Numa questão em que ninguém pediu opinião a ninguém, há quem o faça à minha pessoa (logo eu, que vou ter de aplicar o que nem sequer tenho de opinar).
     
    Q: O que o senhor pensa a respeito do Acordo Ortográfico? Sou brasileira e senti-me um pouco à vontade com o mesmo.

    R: Antes de avançar com a resposta, recupero uma foto tirada aquando de um passeio por terras de "Biana" (diga-se, Viana do Castelo):


     Uma pedra da memória para uma escrita que, hoje, passado mais de um século, ainda mantém realizações gráficas familiares: aquelas que jovens alunos e escreventes menos atentos às convenções ortográficas produzem, iludidos por alguma interferência fónica.
       Desde a data do registo da placa da "bica" (1885), muita água correu por baixo da ponte (numa imagem que não deixa de convocar o fluir do tempo e que faz lembrar o pré-socrático Heráclito, mais a ideia de que não nos banhamos duas vezes na mesma água). Daí até ao presente, vários foram os passos tomados para se estabilizar uma ortografia que foi problematizando o cariz etimológico dominante. Em 1910, com a implantação da República, uma Comissão estabeleceu uma ortografia simplicada e uniforme para as publicações oficiais e educativas; em 1911, houve uma primeira Reforma Ortográfica não extensiva ao Brasil; em 1931 foi aprovado o primeiro Acordo Ortográfico entre o Brasil e Portugal (todavia, não foi posto em prática); em 1943, é redigido o Formulário Ortográfico, na primeira Convenção Ortográfica entre Brasil e Portugal; dois anos depois, um novo Acordo Ortográfico tornou-se lei em Portugal, mas não no Brasil (que continuou a regular-se pela ortografia do Vocabulário de 1943); em 1990, surgiu uma "Nota Explicativa do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa", com as Academias de Ciências de Lisboa e a Brasileira de Letras a elaborarem a base do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (o documento entraria em vigor, de acordo com o seu artigo 3º, no dia "1 de Janeiro de 1994, após ratificação por todos os Estados junto do Governo português", mas dois anos depois só Portugal, Brasil e Cabo Verde o haviam feito); em 2008, após indicação de que apenas três membros da CPLP validariam o Acordo Ortográfico de 1990, este foi aprovado por Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Brasil e Portugal. A sua implementação no Brasil não é, porém, acompanhada em definitivo por Portugal, país que assumiu um período de moratória para a sua aplicação generalizada.
     Muitos dos argumentos aduzidos, em Portugal, para a defesa do acordo, revelaram-se inconsistentes, tendo-se chegado mesmo a redigir um manifesto de defesa da Língua Portuguesa e contra o acordo. Neste último caso, entrou-se na linha argumentativa de algum fundamentalismo, muitas vezes insensível ao que têm sido as variedades da língua e a projecção do Português no mundo.
     Num país cujos indicadores de iliteracia persistem em revelar alguns sinais preocupantes quanto ao domínio da escrita, considero que o acordo não deixará de trazer alguma instabilidade que, presentemente, se sente relativamente a alterações que já vêm de 1945 (mas que muitos escreventes, até instruídos, ignoram); numa língua viva, ainda em constante evolução, a questão do acordo será sempre aberta, a discutir num período mais ou menos alargado do tempo de uso dessa língua; um documento como o do acordo pouco mais é do que uma orientação para a acção que a realidade concreta e prática poderá ou não cumprir, a não ser que haja uma política de acompanhamento e uma acção convergentes para a valorização da língua, no reconhecimento das suas diferenças.
      Não sendo fundamentalista na posição a assumir, creio que esta é uma de um conjunto de questões que não deve ficar circunscrito à decisão política ou governamental (em contexto de defesa dos referendos, aqui está a possibilidade de um, acerca de um assunto sobre o qual os utilizadores se deveriam pronunciar); uma maior divulgação e uma consistência de argumentação face aos prós e contra do acordo permitiriam a construção de opiniões mais sólidas, menos emotivas e ou nacionalistas; a integração do acordo num programa de ensino, valorização e reconhecimento nacional e internacional da língua viabilizaria uma perspectiva de estabilidade e um sentido de acção mais fundamentado, menos propenso ao clima de insegurança vivido pelos falantes / escreventes (que convivem com uma multiplicidade de alterações cujo significado se revela crítico). Respeitados estes requisitos, talvez encarasse de forma mais confortável e menos condicionada um documento que procura normativizar algo sobre a língua.

     Acordo: entre a convenção e a homografia com o processo de acordar para um registo de consensos que está longe de ser obtido.

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