sábado, 15 de janeiro de 2011

Actos, objectivos e força... a propósito de fala

     A língua tem destas coisas: nem tudo o que parece é; e o que é depende de muito do que ela sozinha não tem.

     Q: Olá, Vítor. Estou com uma dúvida em relação a alguns exercícios de pragmática. Em relação aos actos de fala (tipologia dos actos ilocutórios), se tivermos uma frase do tipo "Fecha a janela, por favor", o objectivo ilocutório é levar o outro a realizar uma acção e a força ilocutória é a de um pedido. E se a frase for "É a revolução do 25 de Abril" ou "Declaro aberta a sessão"? 

    R: A propósito do exemplo "Fecha a janela, por favor", pode tratar-se de um enunciado cujo objectivo se prende com o facto de levar o alocutário (destinatário do locutor) a realizar um acto verbal ou não verbal (neste caso, não verbal dominantemente). Trata-se, por isso, de um acto ilocutório directivo. Como este tipo de actos se marca por diferentes graus em termos da relação locutor-alocutário, da autoridade exercida e ou da função comunicativa (caso se trate de uma ordem, de um pedido, de uma sugestão, de um conselho,...), a força ilocutória acaba por variar e se evidenciar conforme a conjugação de todos os dados de análise disponíveis. No caso, e em abstracto, a fórmula de cortesia 'por favor' tende a anular o grau máximo de exercício de influência sobre o alocutário, da força ilocutória pretendida. Tal faz com que pareça tratar-se de um pedido (e não de uma ordem). Todavia, há aqui muitos outros factores contextuais a considerar. Por exemplo, o tom de voz, a caracterização do próprio locutor e o tipo de poder que exerce: alguém muito irritado ou num registo próximo da ironia pode formular o enunciado em causa como se de uma ordem se tratasse.
     Já com "Declaro aberta a sessão", o acto que está em causa é o que se designa por "acto ilocutório declarativo" (ou simplesmente 'Declarações', para Searle); ou seja, o locutor é assumido como alguém que tem o poder institucional para legitimar a transformação de uma situação (antes a sessão não estava aberta; a partir do momento em que o locutor profere o enunciado, a sessão passa a estar aberta). É o que acontece no caso, por exemplo, de o locutor ser juiz, presidente de uma assembleia, professor - todos têm poder institucional para mudar um determinado estado de coisas. É ainda o que se sucede com um padre quando, num casamento, diz "Declaro-vos marido e mulher". A força ilocutória prende-se com o estatuto legal e legitimado do locutor e o objectivo relaciona-se com a correspondência que se intenta ver imediatamente estabelecida entre o que é dito e a situação criada por aquilo que é dito, dado o poder de quem o diz. De novo, há aqui todo um conjunto de condicionantes contextuais a considerar para a classificação  dos actos de fala (o que muito se prende com a abordagem que a pragmática introduz ao nível da análise de enunciados / discursos).
       Neste pressuposto, "É a revolução do 25 de Abril" parece-me um enunciado que, para ser caracterizado em termos de acto de fala, precisa de ser contextualizado: quem o diz, como o diz, quando o diz, a quem o diz. Sem isso, é algo difícil de concluir. Pode tratar-se de um acto de fala assertivo, pensando num comunicador que vai falar sobre o tema "revolução" e aborda aquela que, em Portugal, permite a passagem do estado de ditadura marcelista para o período democrático pós-marcelista; pode aproximar-se de um acto de fala expressivo, caso evidencie algum tipo de reacção, posição do locutor (favorável / desfavorável) face ao assunto abordado; pode, inclusivamente, tratar-se de um acto de fala directivo (neste caso indirecto), caso se considere que o enunciado é produzido por alguém que, vivendo no próprio dia 25 de Abril de 1974, pretende incitar outros elementos a participar  na revolução anunciada.
      Em síntese, não pode haver classificação de actos de fala (e respectivos objectivo e força ilocutórios) sem a consideração das condicionantes contextuais e das relações que o utilizador mantém com a língua que usa, dos comportamentos visados, da relação com os outros interlocutores ou das funções linguísticas pretendidas ao comunicar com alguém.
      Não sei se consegui ser claro na abordagem da dúvida, dada a complexidade desta. Também é certo que ela se integra numa das áreas mais ricas do estudo da língua, pelas relações, pelas construções e pelos comportamentos associados às realizações linguísticas, ao dito (explícito) e ao não dito (implícito), ao contexto e ao modo de dizer.
     Neste sentido, recomendo a leitura da Gramática da Língua Portuguesa, coordenada pela Professora Maria Helena Mira Mateus, para um aprofundamento mais fundamentado sobre o assunto dos "Actos de Fala".
  
    Já houve também oportunidade de aqui falar em actos e suas relações com os textos. Em suma, é o que acontece quando se passa das palavras aos actos (Isto faz-me lembrar qualquer coisa...!).


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