Ainda a propósito da visita de estudo a Mafra.
Do velho se faz novo; do antigo, o moderno - a inovação relativa.
A sensação das palavras já lidas, a das ideias comuns, a das que se desconstruem são alguns dos reflexos desse conceito já conhecido da intertextualidade: “(...) todo o texto se constrói como mosaico de citações, todo o texto é absorção e transformação de um outro texto.”[KRISTEVA, Júlia (1974: 64) in La Révolution du langage poétique - L’Avant-garde à la fin du dix-neuvième siècle: Lautréamont et Mallarmé]
Num encontro de amigos, há cerca de um ano, os olhos pairavam pelas lombadas de livros protegidos por capas de relevo, letra dourada e papel tipo pele de cobra. Autoria (à moda gráfica da altura, conforme consta no interior do livro): Camillo Castello Branco. Folheada uma obra intitulada Mosaico e Silva, de Curiosidades Historicas, Litterarias e Biographicas (Porto, Livraria Chardron, de Lélo & Irmão, sem data), lia-se:
"Um dia encontraram-se no paço o bispo D. Nuno da Cunha e o franciscano fr. Antonio de S. José.
O bispo capellão-mor disse ao frade:
O bispo capellão-mor disse ao frade:
– V. Reverencia encommende a Deus S. Magestade para que lhe dê successão. El-rei nosso senhor anda triste, porque a rainha nossa senhora lhe não dá filhos.
O servo de Deus respondeu:
– El-rei terá filhos, se quizer.
O fradinho sahiu. E o bispo inquisidor, reflectindo na resposta mysteriosa de fr. Antonio, perguntou ao marquez de Gouveia:
– Que conceito faz da virtude d'este arrabido?
– Tamanho, que o fiz padrinho d'um filho meu.
– Oh! – exclamou o futuro cardial.
Volvidos dias, tornou D. Nuno da Cunha a encontrar-se com o frade e a perguntar-lhe o sentido latente da sua resposta. O arrabido pôz os olhos no céo e disse:
– Prometa el-rei a Deus fazer um convento na villa de Mafra, que logo Deus lhe dará successão. Dito e feito, feito quero dizer não o convento, mas o fruto desejado. No mesmo anno de 1711 deu a rainha à luz uma menina."
Ecoavam, na mente, as palavras lidas em Saramago:
"... D. Nuno da Cunha, que é o bispo inquisidor, e traz consigo um franciscano velho. Entre passar adiante e dizer o recado há vénias complicadas, floreios de aproximação, pausas e recuos, que são as fórmulas de acesso à vizinhança do rei, e a tudo isto teremos de dar por feito e explicado, vista a pressa que traz o bispo e considerando o tremor inspirado do frade. Retiram-se a uma parte D. João V e o inquisidor, e este diz, Aquele que além está é frei António de S. José, a quem, falando-lhe eu sobre a tristeza de vossa majestade por lhe não dar filhos a rainha nossa senhora, pedi que encomendasse vossa majestade a Deus para que lhe desse sucessão, e ele me respondeu que vossa majestade terá filhos se quiser, e então perguntei-lhe que queria ele significar com tão obscuras palavras, porquanto é sabido que filhos quer vossa majestade ter, e ele respondeu-me, palavras enfim muito claras, que se vossa majestade prometesse levantar um convento na vila de Mafra, Deus lhe daria sucessão, e tendo declarado isto, calou-se D. Nuno e fez um aceno ao arrábido.
Perguntou el-rei, É verdade o que acaba de dizer-me sua eminência, que se eu prometer levantar um convento em Mafra terei filhos, e o frade respondeu, Verdade é, senhor, porém só se o convento for franciscano, e tornou el-rei, Como sabeis, e frei António disse, Sei, não sei como vim a saber, eu sou apenas a boca de que a verdade se serve para falar, a fé não tem mais que responder, construa vossa majestade o convento e terá brevemente sucessão, não o construa e Deus decidirá. Com um gesto mandou el-rei ao arrábido que se retirasse, e depois perguntou a D. Nuno da Cunha, É virtuoso este frade, e o bispo respondeu, Não há outro que mais o seja na sua ordem. Então D. João, o quinto do seu nome, assim assegurado sobre o mérito do empenho, levantou a voz para que claramente o ouvisse quem estava e o soubessem amanhã cidade e reino, Prometo, pela minha palavra real, que farei construir um convento de franciscanos na vila de Mafra se a rainha me der um filho no prazo de um ano a contar deste dia em que estamos, e todos disseram, Deus ouça vossa majestade, e ninguém ali sabia quem iria ser posto à prova, se o mesmo Deus, se a virtude de frei António, se a potência do rei, ou, finalmente, a fertilidade dificultosa da rainha."
Não fosse o bastante, surgia novo passo de Camilo:
"Ora, se o leitor quer vêr que nem piedade, nem generoso estipendio explicam o prodigioso afan n'aquelles treze annos de incessante trabalho, leia uma carta, inédita que um dom abbade benedictino escrevia a outro respondendo ao convite de irem com a côrte assistir á sagração da basilica em 22 de outubro de 1730. Esteve a carta archivada em Tibães até que o cartorio se desfez e espalhou. Lá guardavam os frades esta pagina do «jornal opposicionista» d'aquelle tempo. Frades eram então os politicos, os obreiros clandestinos das objurgatorias á laia d'esta. Justos ou injustos, imitantes dos modernos, aquelles publicistas ineditos lavraram os seus protestos diante da posteridade. Por isso ficaram, e formam hoje a historia. Se os atirassem aos prelos e os divulgassem ás paixões do dia, chegariam até nós sem força nem preponderancia na balança do bom e mau do seculo passado. Mas o peor para o frade, certo, não seria o descredito do seu artigo de opposição, caso algum editor lh'o estampasse. É bem de crêr que lh'o trasladassem para as costas a ferro em brasa, se á noticia do corregedor do bairro chegasse a seguinte carta:
«Meu amigo e snr. V. R. me convida para esta galhofa de Mafra [...]
«Finalmente, meu amigo, para vêr Mafra não é necessario ir a Mafra; por que ella por nossos peccados está em toda a parte do reino; pois não haverá n'elle pessoa que não tenha tomado entre dentes a Mafra, e a não traga atravessada na garganta e coração... No nome de Mafra temos descoberto o enigma. Vamos tirando a mascara. Repare bem que se compõe Mafra de cinco letras que todas denotam a nossa perdição. Denota o M que seremos mortos; o A – assados; o F – fundidos; o R – roubados; e o ultimo A – arrastados. E, se assolados, roubados, fundidos, arrastados e mortos são os termos a que nos achamos reduzidos, por pratica e experiencia de justiça, estamos obrigados a dizer mal de Mafra e desterral-a; pois desde o diluvio universal esteve reservada no calcanhar do mundo para ser o diluvio universal d'este reino.
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«Não posso, meu amigo, alcançar o odio que tem o rei aos seus vassallos, nem em que degenerassem para ser desherdados d'aquelle agasalho que mereceram aos reis seus predecessores; porque na constancia do soffrimento e lealdade dos affectos não os há mais dedicados. O certo é que este abatimento é disposição para nos fazer apostatar da lei, para o que é já princípio esta affectada quebra com a séde apostolica e serão os fins a mesquita de Mafra, onde por peccados nossos veremos as ceremonias da lei escripta. Deus nos dê da sua graça e tenha de sua mão para que não desesperemos da salvação e a V. R. dê luz para se retirar de vêr Mafra á qual eu não chamarei templo de Deus, mas sim espelunca de ladrões. E por não approvar o que não póde ser do agrado de Deus, não quero ir a Mafra etc.»
E não continha mais a insolente carta do dom abbade benedictino."
"Fazem alto os quadrilheiros, para que desta eminência possam os trazidos apreciar o amplo panorama no meio do qual vão viver, à direita o mar onde navegam as nossas naus, senhoras do líquido elemento, em frente, para o Sul, está a famosíssima serra de Sintra, orgulho de nacionais, inveja de estrangeiros, que daria um bom paraíso no caso de Deus fazer outra tentativa, e a vila, lá em baixo na cova, é Mafra, que dizem os eruditos ser isso mesmo o que quer dizer, mas um dia se hão-de rectificar os sentidos e naquele nome será lido, letra por letra, mortos, assados, fundidos, roubados, arrastados, e não sou eu, simples quadrilheiro às ordens, quem a tal leitura se vai atrever, mas sim um abade beneditino a seu tempo, e essa será a razão que tem para não vir assistir à sagração da bisarma, porém, não antecipemos, ainda há muito trabalho para acabar, por causa dele é que vocês vieram das longes terras onde vivíeis, não façam caso da falta de concordância, que a nós ninguém nos ensinou a falar, aprendemos com os erros dos nossos pais, e, além disso, estamos em tempo de transição, e agora que já viram o que vos espera, sigam lá para adiante, que nós, ficando vocês entregues, vamos buscar mais."
Quem diria: Saramago, o habitante de Lanzarote, não renegou os seus. Leu o romântico Camilo, que o inspirou naturalmente para a produção dessa obra-prima composta pela farsa palaciana, pela epopeia do trabalho bem como pelo domínio da virtuosa e virtual espiritualidade que faz dos homens mais humanos.
Camilo, devorador de livros «velhos», ex-seminarista, também deve ter lido alguma crónica seráfica...
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