quarta-feira, 20 de maio de 2009

Dúvidas... com desafio linguístico já conhecido

       Um pouco na sequência de uma outra questão que já apontava para este problema, recupera-se a complexidade da sintaxe.

       Q: Na frase: «Por aí, deixámo-nos fascinar por algumas raras personagens que, pela qualidade do que pensam...», «nos» tem função sintáctica de c. d. (complemento directo) ou de c.i. (complemento indirecto)?

      R: Trata-se de uma questão bastante complexa, implicando o trabalho com noções de subordinação, reflexividade, transitividade verbal e causatividade.
       Centro-me na abordagem do núcleo informacional proposto: ‘...deixámo-nos fascinar por algumas raras personagens’. Este corresponderá a uma sequência não pronominalizada do tipo ‘deixámos as nossas próprias pessoas fascinar por algumas raras personagens’. Isto significa que, da sequência subordinante ‘(Nós) deixámos’, se parte para uma subordinada não finita infinitiva: ‘as nossas próprias pessoas fascinar por algumas raras personagens’. No fundo, há uma oração ou frase superior (subordinante), com sujeito nulo subentendido [nós] e um predicado [deixámos X]; este último, com o núcleo verbal [deixámos] e o complemento directo X [correspondente a uma sequência frásica dependente: 'as nossas próprias pessoas fascinar por algumas raras personagens']. Este não deixa de ser também ele constituído por um sujeito [as nossas próprias pessoas] e um predicado que integra um complemento oblíquo [fascinar por algumas raras personagens].
       Por esquema, dir-se-ia que:

i - Sequência superior (subordinante)
     a) Sujeito (nulo subentendido): Nós;
     b) Predicado: Deixámo-nos fascinar por algumas raras personagens;
  c) Complemento directo: ‘nos fascinar por algumas raras personagens’ (cuja realização não pronominalizada seria ‘as nossas próprias pessoas fascinar por algumas raras personagens’);

ii - Sequência dependente (subordinada)
     a) Sujeito: as nossas próprias pessoas;
     b) Predicado: fascinar por algumas raras personagens;
     c) Complemento oblíquo: por algumas raras personagens.

       A partir daqui, a construção pronominalizada é explicada da seguinte forma: as sequências superiores marcadas por verbos causativos (como mandar, deixar, fazer) seguidos de uma completiva com sujeito lexicalmente marcado (neste caso, 'as nossas próprias pessoas') obrigam este último, ao assumir a forma de pronome clítico, a ligar-se ao verbo da sequência subordinante e não da dependente ou subordinada. Trata-se da chamada ‘subida de clítico’. Está aqui também parte da lógica causativa: SUJ causador (nós) + V causativo (deixámos) + CD obj/acontecimento (as nossas próprias pessoas fascinar por algumas raras personagens). Desta forma, é admissível a construção pronominal com ‘-nos’, configurando-se o sujeito da subordinada como parte integrante do CD da subordinante.
      É um bom exemplo do que Tesnière, na perspectiva de uma gramática de valências, considera ser a “diátese causativa”.
        Resta dizer que '-nos', neste caso, nunca poderia ser um complemento indirecto por duas razões:
      a) a realização pronominal está marcada pela natureza da reflexividade ([nós] deixámo-nos fascinar = [nós] deixámos as nossas próprias pessoas fascinar), com comportamento de CD;
      b) numa eventual transformação da frase e do pronome para contexto de terceira pessoa, não seria utilizada a forma "lhe(s)", mas sim "-lo(s)" ['deixámo-lo(s) fascinar por...'] - o que prova que estamos perante uma realização mais próxima do acusativo (CD) e não do dativo (CI).

    Sintaxe a vários níveis de análise é um cuidado a assumir, sendo de destacar se a análise se centra ao nível matriz ou dependencial dos constituintes maiores.


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