sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Povo, Pessoa e Fado

   Palavras de um poeta na voz de uma fadista.

   No cenário mítico de Belém, um dos sinais dessa Lisboa (pre)destinada ao "Quinto Império".


Há uma música do Povo,
Nem sei dizer se é um Fado
Que ouvindo-a há um ritmo novo
No ser que tenho guardado

Ouvindo-a sou quem seria
Se desejar fosse ser
É uma simples melodia
Das que se aprendem a viver

Mas é tão consoladora
A vaga e triste canção
Que a minha alma já não chora
Nem eu tenho coração

Sou uma emoção estrangeira,
Um erro de sonho ido
Canto de qualquer maneira
E acabo com um sentido!


                                                              Fernando Pessoa

   O tópico da música, pela harmonia e pela fluidez que sugerem, é para Pessoa um traço do universo idealizado, da inconsciência (pretendida) liberta dos sentidos. É a entrada para o plano do "sou quem seria / se desejar fosse ser". Porém, como ser não é desejar, é existir, a música é ouvida (captada pela dimensão física dos sentidos) e processa a transformação no ser: caminha da existência e consciência limitadoras para a essência, a alma inconsciente e libertadora. O coração, o sentimento, a emoção dão lugar à intelectualização do sentir ("uma emoção estrangeira") - não a emoção vivida, mas uma outra, imaginada, feita do "sentir com a imaginação". E, assim, o fingimento poético se afirma -  na construção de uma alternativa ao real.

   Silêncio: porque se cantou e orquestrou o fado, com voz alada, sobre um terraço virado para o Tejo (e sobre esse "outra coisa ainda. /Essa cousa é que é linda!", como o diria Pessoa em 'Isto').

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